

A música ambivalente de Spellbound

Nascido em Budapeste em 1907 e falecido em Los Angeles em 1995, Miklós Rózs
a desde cedo seguiu o exemplo de compositores de vanguarda seus conterrâneos, como Béla Bartók e Zoltán Kodály, anotando nas aldeias à volta de Budapeste canções populares húngaras que viriam a influenciar decisivamente a sua obra. Começa a estudar violino com cinco anos de idade, e em 1926 estuda música no Conservatório de Leipzig, onde tem como professor de composição Hermann Grabner, discípulo de Max Reger. A formação académica alemã, que se reflecte na predilecção pelo contraponto e fuga, liga-se até ao fim da sua carreira com o sentido melódico herdado da música popular húngara. Este sentido melódico canaliza igualmente outras influências na obra de Rózsa, tais como Richard Strauss, Claude Debussy e Maurice Ravel.

O Óscar recebido pela melhor composição granjeou a Rózsa o ressentimento de Hitchcock, já que Spellbound não obteve o galardão para melhor filme ou melhor realizador (no que se segue utilizarei o capítulo dedicado à música de Spellbound no livro de Jack Sullivan, Hitchcock's Music, New Haven and London: Yale University Press, 2006). Rózsa rapidamente compôs o tema principal, depois de ter visto o filme em Pasadena, numa sessão em que as imagens foram acompanhadas por música de outros filmes, uma prática estranha, mas comum na época. A elegância e sofisticação do tema de Spellbound resulta da capacidade perfeita de correspondência com a fotografia de George Barne, elemento crucial para a solução do enigma da história narrada no filme. A música de Rózsa, tal como a fotografia de Barne, consegue dar o contraste entre um mundo de escuridão e sombras e um outro mundo de brancura clínica. A música é simultaneamente claustrofóbica e sinistra, elevada e transcendente, combinando loucura e romance no seu expoente máximo. Rózsa soube interpretar na perfeição a noção de Hitchcock de que pouco separa a paixão e o terror.
Assim, podemos ouvir no excerto que se segue de Spellbound - um momento de cinema inesquecível - o instante no filme em que os dois temas surgem intimamente ligados, o tema da loucura nascendo do tema da paixão, como duas versões do mesmo tema, uma lírica e outra sinistra, correspondendo à predilecção de Hitchcock pelos duplos. O tema de amor, absolutamente resplandecente, e o motivo ameaçador tocado no teremim são, na verdade, variações um do outro.
O teremim, usado pela primeira vez num filme em Spellbound, é um instrumento musical electromagnético, cujos sons são produzidos por movimentos da mão aproximando-se ou afastando
-se do campo magnético. É um dos poucos instrumentos musicais que os músicos tocam sem contacto corporal com o instrumento. Foi inventado em 1919 pelo professor de Física russo L. S. Termen (1896-1993), que mais tarde adoptou o nome ocidental Leon Theremin. O teremim foi apresentado em 1921 em Moscovo ao 8º Congresso de Electrotecnia da União Soviética. Em 1928, Theremin conseguiu uma patente para o instrumento nos EUA. Em 1929 foi fabricado em Leipzig um "Aetherophon", uma outra designação para o teremim.

O enorme sucesso da banda sonora de Spellbound deve-se, em grande parte, à utilização deste novo instrumento musical. O teremim parece um instrumento mágico, quer pela maneira como o som é produzido, quer pela qualidade misteriosa do som (o "mágico" de Spellbound é Stanley Hoffmann, verdadeiro mago do instrumento, que continuou a tocar em muitos outros filmes). Não é magia, claro, apenas o resultado de um campo magnético, mas o teremim era o instrumento perfeito para o primeiro encontro entre ciência (a psicanálise) e música a que assistimos neste filme de Alfred Hitchcock. Nos anos 1920 e 1930, o teremim era considerado um instrumento revolucionário, que poderia mesmo vir a substituir o piano e o disco. O produtor David Selznick ficou entusiasmado com o ideia de usar o teremim e chamou a este tema do filme "white theme", "tema branco", seguindo a associação da cor branca ao terror que se encontra na cultura americana desde Melville (cf. o capítulo de Moby-Dick "Whiteness of the Whale", "A brancura da baleia").

A música acompanha as imagens praticamente do princípio ao fim do filme. E se Spellbound não é o primeiro filme de Hitchcock em que a música mostra e revela o mundo da psique humana, é o primeiro a fazer desse mundo psíquico o tema do filme. Jack Sullivan afirma que nunca se tinha ouvido no cinema antes de Spellbound uma tal música de desintegração mental (ambivalente, como vimos, pois corresponde simultaneamente à amnésia e paranóia, e à paixão). O poder da música, conclui Sullivan, reside precisamente nessa unidade, nessa capacidade de se desenvolver em poderosas ideias musicais a partir do pequeno núcleo que contém ambos os registos, o do amor e o do terror.
Como se os dois, amnésia e enamoramento, ligassem o ser humano a uma
época arcaica, primordial, que foi esquecida e reprimida e por isso se tornou "unheimlich", estranha, ameaçadora, inquietante (Freud foi na verdade buscar o termo "unheimlich", que designa o que foi outrora familiar, conhecido, íntimo, aos escritos do filósofo romântico alemão Schelling: o prefixo mostra, em língua alemã, a marca do recalcamento ou repressão), como se amnésia e enamoramento tivessem a mesma raiz psíquica, concluo eu...
Como se os dois, amnésia e enamoramento, ligassem o ser humano a uma

Fonte principal:
Jack Sullivan, Hitchcock's Music. New Haven and London: Yale University Press, 2006.