segunda-feira, 1 de outubro de 2012






(...)

É uma natureza-morta invulgar, com um invulgar fundo negro e um conjunto invulgar de objectos, um jarro de água e outro de vinho, um copo meio-cheio, uma pauta de música, dois cachimbos e uma brida com correntes, como se usavam para domar cavalos especialmente nervosos. Herbert interpreta a composição como uma alegoria da moderação, da temperança e do equilíbrio:

 

In ethical categories Torrentius’s “Still Life” is not at all an allegory of Vanitas if my suppositions are correct, but an allegory of one of the cardinal virtues called Moderation, Temperantia, Sophrosyne. This interpretation is suggested by the represented objects: a bridle, the reins of the passions, vessels that give shape to formless liquids, and also the tumbler only half-filled as if recalling the praiseworthy custom of the Greeks of mixing wine with water.” [1]

 

Há ainda uma inscrição em pauta de música, escrita em holandês, que diz: “What exists beyond measure (order) / in over-measure (disorder) will meet a bad end.” Herbert observa, com razão, que esta interpretação do quadro contradiz a vida do pintor: “A painter with such a scandalous life could not be an apologist of restraint.”[2]

       No final do ensaio, Herbert duvida que tenha conseguido decifrar o homem incompreensível, o pintor enigmático: “I did not manage to break the code” [3]. O pintor / narrador interroga-se também sobre o significado do quadro: “Natureza-Morta com Brida, o seu único quadro conhecido ou sobrevivo, provável alegoria da temperança, da áurea mediocridade e do domínio sobre os instintos – tudo o que lhe terá faltado em vida – está em Amesterdão no Rijksmuseum.” (p. 58) [4].  Receio que sejamos induzidos em erro ao ler o texto da inscrição da pauta de música como a “mensagem” do pintor – esta inscrição parece na verdade uma apologia da temperança, mas creio que o texto do pintor deve ler-se no todo da composição.

       Vanitas encena oposições, algumas delas centrais no pensamento ocidental: clássico / barroco, Apolíneo / Dionisíaco, claro / escuro, frio / quente, vida / morte. Estas oposições binárias culminam na oposição, proposta pelo fantasma, entre “natureza viva” e “natureza-morta” (género em pintura). “Natureza viva” parece uma repetição inútil, enquanto “natureza-morta” parece conter um paradoxo. A designação “natureza-morta”, “still life”, terá surgido em meados do séc. XVII na Holanda, como contrário de vrouwenleven, um modelo feminino que precisava de se mexer durante a pose, enquanto  stilleven – frutos, flores, etc – designava um modelo que permanecia quieto[5]. A expressão em língua portuguesa, natureza-morta, contém um oxímoron, já que a natureza como sucessão de vida e morte é um processo de vida infinito. O título do quadro de Torrentius, Natureza-Morta com Brida, é um título enigmático e incomum, por isso será legítimo questioná-lo para além da sua lógica normal: é um título paradoxal, pois se a natureza é ou está morta não precisa de brida, e a brida por seu lado aponta para uma natureza que é, por natureza, viva, ou não precisaria de brida. A brida é o freio que permite ao cavaleiro manobrar o cavalo, guiando-o através da boca, em conjunto com as rédeas, refreando-o se for demasiado depressa. O que não está no quadro,  mas sobressai ao ser sugerido pela falta de cor do fundo profundamente negro e pelo poderoso símbolo de repressão da brida, é não só o cavalo, mas o prado verde, a velocidade do cavalo e a beleza de um ser selvagem, indomado, livre [6].

        Há uma semelhança entre Torrentius e o pintor / narrador, como o próprio explica:

 

pintor enigmático e clandestino que me faria companhia nesta mansão onde vou expor As Lágrimas de Eros, que não imaginei num ambiente tão solene. Quando me convidaram a apresentar toda a série e acentuaram a palavra toda, aceitei sem hesitar porque me apetecia vir a Paris e passar alguns dias no Louvre. (...) Agora movia-me também o desafio do contraste entre os meus desenhos escandalosos, nunca expostos, e a sóbria seriedade do vestíbulo do pequeno olimpo da avenue d’Iéna (p. 32-3).

 

Os quadros de As Lágrimas de Eros são então escandalosos, excessivos – como escrevia J. C. a Marta no Cavaleiro Andante, “só o excesso me interessa” [7].

       As Lágrimas de Eros é o título do último livro de Georges Bataille, de 1961, que esteve proibido pela censura em França. É com certeza uma homenagem de Almeida Faria a Bataille, segundo o próprio autor [8].  É difícil evitar a comparação do pintor / narrador de Vanitas com Mário Botas, quer pela ocasião que levou o escritor a Paris, Avenue d’Iéna, quer pelo conteúdo da exposição As Lágrimas de Eros, a que o fantasma se refere como “esses seus mistérios da morte e de Diónisos” (p. 50). Na Entrevista em Georgetown, Almeida Faria refere-se ao seu trabalho mais recente:

 

fascina-me mais uma ficção em que a invenção ou o onírico tenha um papel importante. É o que estou a fazer mais recentemente, também sobre desenhos do Mário Botas, desta vez desenhos altamente eróticos, que ele me pediu para guardar porque eram bastante chocantes até para os próprios pais do pintor e ele quis que eu os guardasse, que ficasse com eles e escrevesse a partir deles, se isso me interessasse. Para mim interessa-me, porque os desenhos dele são da natureza dos sonhos, de resto já  Shakespeare dizia que somos feitos da natureza de que os sonhos são feitos.

 

Penso que o escritor se refere ao romance O Conquistador, que se seguiu aos Passeios do Sonhador Solitário, e que glosa sete desenhos de Mário Botas. Nada mais natural do que Vanitas retomar essa recordação, mesmo que tal não seja muito do domínio consciente do autor. A liberdade de expressão é uma preocupação dos escritores que ainda escreveram num regime dominado pela censura, e a “literatura de transgressão” certamente um sinónimo dessa liberdade.

       Susan Sontag, ao escrever sobre o tema da pornografia, diz que tem origem numa sociedade hipócrita e repressiva, que precisa de uma efusão de pornografia como a um tempo sua expressão lógica e seu antídoto, e entende a pornografia como fazendo parte de uma crise da imaginação contemporânea, desde finais do séc. XVIII já não exclusivamente religiosa [9]. Para Sontag, a poesia de transgressão é também conhecimento, parte da consciência humana: “He who transgresses not only breaks a rule. He goes somewhere that the others are not; and he knows something the others don’t know.” [10] Não é a pornografia em si que é perigosa: “all forms of serious art and knowledge – in other words, all forms of truth – are suspect and dangerous” [11], e o artista é um explorador de limites: “a freelance explorer of spiritual dangers” [12]. A sua função não é só, como tradicionalmente, edificar e divertir, mas também fascinar e cativar: “His principal means of fascinating is to advance one step further in the dialectic of outrage.” [13] Em conclusão, Sontag não faz, obviamente, uma defesa da pornografia em si, mas propõe uma melhor compreensão de uma arte que possa conter elementos semelhantes à pornografia, incluindo, como argumenta: “the whole body of contemporary literature insistently focused on extreme situations and behaviour.” [14].  A literatura contemporânea inclui zonas de escrita estruturalmente semelhantes ao registo pornográfico, mas não podemos excluir esse registo do que é humano. O que está em causa é “an infinitely varied register of forms and tonalities for transposing the human voice into prose narrative” [15], bem como “the complexities of consciousness itself.”

       Talvez o conto Vanitas, na sua procura da justa medida, do equilíbrio, acabe por funcionar como repressão de um outro texto, mesmo sem sabermos qual. O quadro de Torrentius seria uma verdadeira mise-en-abîme de Vanitas, de certo modo também uma natureza-morta com brida. A brida é a rigorosa moldura lógica dentro da qual está contido o texto como numa narrativa credível e verosímil: a mesma contenção narrativa do ensaio de Poe, para quem escrever é, como vimos, um exercício de precisão e cálculo quase matemático. Vanitas parodia estes processos, imitando-os ou executando-os aparentemente, mas com uma ironia soberana e grande prazer de narrar, apontando para além desses processos, para problemas de expressão e de liberdade na literatura e na arte [16]. E porque devemos seguir o texto mais do que o autor / narrador, como se, de certo modo, o texto o soubesse melhor do que ele ao texto, muito nesta Vanitas aponta para fora da brida, da suposta justa medida: a ironia, a construção do texto que questiona a própria desconstrução, tomando como referência central o período barroco, cuja mundivisão não pode compreender-se sem algumas das oposições binárias cuja suposta “hierarquia violenta” a desconstrução quer eliminar. É também assim que este belo texto pode tratar o tema de “vanitas”, tradicionalmente ligado à transitoriedade e à morte, sem estar ele mesmo sob o signo de Saturno e da melancolia – aqui reina outra lógica, a do sonho e da imaginação, e talvez seja essa a sua medida própria [17]. O que interessa a Almeida Faria é a reflexão metaficcional, a relação entre forma e conteúdo, primeiro como relação entre o palácio do nº 51 da avenida de Iena e a colecção de quadros da pinacoteca de Calouste Gulbenkian, e depois como adequação entre esse mesmo espaço e a exposição As Lágrimas de Eros.

       O ensaio de Poe sistematiza critérios rigorosos para a criação do belo, que resultam exteriores, artificiais, forçados. O belo ideal, para Poe, nega a morte, anula-a, pretende ultrapassá-la através da beleza, território privilegiado da imortalidade e transcendência. Vanitas distancia-se - colocando en-abîme o quadro Natureza-Morta com Brida - deste conceito de beleza e de criação, contrapondo ao modelo de Poe uma experiência viva que, para melhor compreendermos, está ausente do quadro – o seu fundo negro significa isso mesmo, ausência de cor – num outro universo, numa outra dimensão, num outro registo, sem limitação (sem brida). O contexto no qual em Vanitas aparece o quadro  de Torrentius, Natureza-Morta com Brida, faz-nos entendê-lo, este sim, como as verdadeiras lágrimas do criador – do artista – sobre uma beleza / natureza que se sente ser impossível e mesmo tornar-se inatingível se privada da sua liberdade e sujeita a regras, limites, critérios de exterioridade [18]. Como diz Susan Stewart, “In contrast to (the) model body, the body of lived experience is subject to change, transformation, and most importantly, death”[19].  É assim que a aceitação da morte resulta, de algum modo, na sua superação – a transformação permanente da natureza, com os seus ciclos de vida e morte, que é em última análise um processo de vida.

       O texto termina calma e despreocupadamente num tom de boa disposição com a recordação de um “jongleur de boulevard” que, em vez de estar quieto como as naturezas-mortas e outros artistas de rua, é um explorador, um funâmbulo. Este breve flashback narrativo faz terminar o conto regressando ao momento com que começara a narrativa, quando o narrador revê, antes de adormecer, o que fizera durante o dia,  dando deste modo ao texto uma circularidade perfeita.

 
Ana Maria Delgado (Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

Ler o texto completo aqui


Imagem: Jan Simonsz van de Beeck (Torrentius), Natureza-Morta com Brida, Rijksmuseum, Amesterdão



[1] Id. ibid., p. 101.
[2] Id. ibid., p. 105.
[3] Id. ibid., p. 106.
[4] Das várias versões do mito de Eros, salientaria as de Platão, em O Banquete e Fedro. Neste último diálogo, o homem tocado pelo amor – Eros – é comparado ao condutor de um carro puxado por dois cavalos, um representando o equilíbrio e o outro o excesso. É um longo passo do qual destaco apenas o seguinte: “And now they are close to the beloved, and they see the beloved’s face, flashing like lightning. As the charioteer sees it, his memory is carried back to the nature of beauty and again sees it standing together with self-control on a holy pedestal; at the sight it becomes frightened, and in sudden reverence falls on its back, and is forced at the same time to pull back the reins so violently as to bring both horses down on their haunches, the one willingly, because of its lack of resistence to him, but the horse of excess much against its will.” Cf. Plato, Phaedrus.  London: Penguin, 2005, p. 35.
[5] Cf. Guy Davenport, Objects on a Table. Harmonious Disarray in Art and Literature. Washington, D. C.: Counterpoint, 1998, p. 3-4.
[6] Por alguma razão este quadro me sugere os versos de Lorca do “Romance Somnámbulo”: “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas. / El barco sobre la mar / y el caballo en la montaña”, e a frase surrealista que caracteriza o sonho como “chose de vitesse”; algumas belas páginas de Clarice Lispector no final de Perto do coração selvagem e em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: “Existe um ser que mora dentro de mim como se fôsse casa dêle, e é. Trata-se de um cavalo prêto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo (...)”; ainda o soneto barroco de Frei António das Chagas Ao cavalo do Conde de Sabugal, que fazia grandes curvetas, em que os movimentos do cavalo são comparados à música. Não se trata nestes exemplos de intertextualidades com Vanitas – 51, avenue d’Iéna, mas sim de associações e paralelismos com textos e autores que usam um simbolismo semelhante ao do quadro de Torrentius.
[7] Almeida Faria, Cavaleiro Andante, Lisboa: INCM, 1983, p. 199.
[8] A expressão encontra-se ainda num artigo de Eduardo Lourenço intitulado “Eros e Eça”, in: O Canto do Signo. Existência e Literatura (1957-1993). Lisboa: Ed. Presença, 1994, p. 251: “O mais erótico dos nossos autores é o único que entreviu entre os esplendores, os sortilégios, os êxtases, as felicidades sensíveis de que o Destino se reveste, a dor, a angústia, a tristeza, a miséria, em suma, o oceano não menos inesgotável que o da sensualidade e sua ofuscação, o das lágrimas d´Eros.”
[9] Cf. Susan Sontag, “The Pornographic Imagination”, in: op. cit., p. 205-233.
[10] Id. ibid., p. 232.
[11] Id. ibid., p. 233.
[12] Id. ibid., p. 212.
[13] Id. ibid.
[14] Id. ibid., p. 209.
[15] Id. ibid.
[16] O problema da obscenidade em literatura está exemplarmente tratado, a meu ver, por Marguerite Yourcenar no Prefácio a Alexis ou le traité du vain combat, que narra o caso de um homosexual numa época na qual não era ainda moda escrever sobre homosexualidade. Yourcenar diz que este problema da liberdade sensual é um problema de expressão, embora se distancie do uso de linguagem obscena, por incapacidade inovadora: “L’obscénité (...) est une technique de choc défendable s’il s’agit de forcer un public prude ou blasé à regarder en face ce qu’il ne veut pas voir, ou ce que par excès d’habitude il ne voit plus.” (p. 13-14) Mas esta solução brutal continua a ser exterior: “La brutalité du langage trompe sur la banalité de la pensée et (...) reste facilement compatible avec un certain conformisme.” (p. 14) Também para Marguerite Yourcenar é uma questão de voz e de registo: “Comme tout récit écrit à la première personne, Alexis est un portrait d’une voix (...) Il fallait laisser à cette voix son propre registre, son propre timbre” (p. 15). Cf. Marguerite Yourcenar, Alexis. Le Coup de Grâce. Paris: Gallimard, 1971 (1ª edição de Alexis 1929).
[17] Recordo sempre a propósito desta noção o poema de Emily Dickinson: “I aimed my Pebble - but Myself / Was all the one that fell - / Was it Goliah – was too large - / Or was myself - too small?”
[18] De certo modo, é a luta do criador pela forma, que implica quase sempre uma violência em relação ao assunto, tema ou objecto tratado. É Yourcenar, em minha opinião, quem melhor resume este dilema em O tempo, esse grande escultor: “Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.”
[19] Cf. Susan Stewart, On Longing. Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Durham and London: Duke University Press, 21993 (1ª ed. 1984), p. 133.