domingo, 27 de junho de 2010

A procura da verdade na arte em "La Mise à mort" de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta vermelha"




Um dos primeiros autores a escrever sobre a faceta analítica do Rei Édipo de Sófocles foi Schiller. Segundo ele, esta tragédia é a recapitulação daquilo que já tinha acontecido quando a peça começa e, não podendo ser modificado, é analisado no decurso da acção. Aproximámo-nos gradualmente da questão central tratada no conto "Oedipe", que tinha já sido aflorada em Rei Édipo e Les Gommes: a realidade da literatura, a liberdade individual e o determinismo são temas que estão aqui intimamente ligados, tal como na tragédia de Sófocles e em Macbeth de Shakespeare. Podemos agora compreender o texto em epígrafe, uma citação do poema "In lieblicher Bläue..." de Hölderlin: o que falta a Oedipe é o direito a escrever a sua própria história, a sua própria vida. O início do conto mostra que o problema central não é aqui o assassínio - as estruturas do romance policial apenas têm significado pela sua ausência, tal como a "carta roubada" de E. A. Poe. Estas estruturas apenas estão presentes em "Oedipe" como um estratagema para mascarar e esconder o tema central do conto: a dignidade e o sentido da literatura, que não podem residir em ser cópia ou reprodução da realidade, como se fossem um "texto reescrito".
A rejeição de um destino pré-determinado corresponde em "Oedipe" à ausência do enigma. A esfinge não faz a Oedipe perguntas ameaçadoras, como no mito clássico (Édipo tem de decifrar o enigma ou morrer), e está em processo de decomposição. A procura da verdade, que no mito de Édipo corresponde ao decifrar do enigma da esfinge, poderá compreender-se neste terceiro "Conto da pasta vermelha" dentro do contexto intertextual.
A recepção do mito de Édipo torna-se clara nesta narrativa de Aragon através da recepção do romance de Robbe-Grillet Les Gommes. Robbe-Grillet transformou a história de Édipo num romance policial. Muitos dos elementos que tinham sido identificados pelos críticos como alusões ao romance da juventude de Aragon Anicet ou le panorama. Roman tornam-se compreensíveis através da mediação de Les Gommes. Robbe-Grillet desenvolveu a faceta policial do mito de Édipo e chamou a atenção na sua história policial para a relação entre a literatura e a realidade. Aragon volta a tratar em "Oedipe" problemas semelhantes, mas recusando a realidade intratextual acentuada por Robbe-Grillet. Neste contexto surge uma narrativa na qual os diferentes elementos do romance policial são utilizados a negativo. "Oedipe" é assim um modelo do género, já que não se sabe quem foi morto nem por quem. Ao passo que normalmente numa narrativa policial se procura o assassino, aqui é o hipotético assassino quem procura a vítima, o motivo, etc. O assassino não sabe quem é que assassinou, nem o motivo ou o local do crime, nem tem a arma.
Todas as expectativas do leitor em relação à tensão criada no romance policial são frustradas desde o início. O assassino nem sequer é um assassino autêntico, é apenas hipotético, e o leitor pode ler todos os seus pensamentos que andam à volta do problema da ausência dos elementos já enumerados. Todas as hipóteses que Oedipe formula acabam por se revelar falsas (o crítico Delf Schmidt interpreta-as como uma paródia das "cenas falsas" do "Nouveau Roman"). O mito de Édipo, que no seu significado mais profundo é tomado a sério, é parodiado no que respeita a pormenores. O Oedipe de Aragon usa óculos escuros, está cego desde o princípio do conto, procura uma vítima como maneira de recalcar a lembrança de ter assassinado o pai, chama-se Eddy, etc. O autor comenta no texto que nada disto tem qualquer verosimilhança. Assim, a paródia simultânea do mito de Édipo e do romance policial no terceiro "Conto da pasta vermelha" apontam para a mediação do romance Les Gommes de Alain Robbe-Grillet.
(a continuar)
Imagem e créditos: Alain Robbe-Grillet (halfaya.org)

domingo, 20 de junho de 2010

L'annee derniere a Marienbad Sculpture Scene

Francoise Hardy - Il n'y a pas d' amour heureux

GEORGES BRASSENS - IL N'Y A PAS D'AMOUR HEUREUX + LYRICS

Alain Resnais - Toute la mémoire du monde

Alain Resnais 1961 interview

Last Year at Marienbad (1961) re-release trailer with subtitles

Alain Robbe-Grillet, entretiens avec Benoît Peeters

GEORGES BRASSENS et PATACHOU - MAMAN, PAPA + LYRICS


A procura da verdade em "La Mise à mort" de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta vermelha"



3. O romance Les Gommes de Alain Robbe-Grillet. Paródia do romance policial


Alain Robbe-Grillet resumia assim, nos anos 1950, o seu romance Les Gommes, publicado em 1953: "Trata-se de um acontecimento exacto, concreto, essencial: a morte de um homem. É um acontecimento de natureza policial - quer dizer, há um assassino, um detective, uma vítima. Em certo sentido, os respectivos papéis são mesmo respeitados: o assassino dispara sobre a vítima, o detective resolve o caso, a vítima morre. Mas as relações que os ligam entre si não são assim tão simples. (...) Porque o livro é justamente a narrativa das vinte e quatro horas que decorrem entre o tiro e esta morte, o tempo que a bala demorou a percorrer três ou quatro metros - vinte e quatro horas 'a mais'" (B.M., p. 41). Estas vinte e quatro horas a mais dão, por ex., a tradução do título do romance em língua alemã: Ein Tag zuviel, ou Die Radiergummi.
A epígrafe de Les Gommes aponta, desde logo, para a tragédia grega: "Le temps, qui veille à tout, a donné la solution malgré toi." O crítico Bruce Morrissette aponta, no seu estudo sobre o romance, as semelhanças com o Rei Édipo de Sófocles: o romance tem aquilo que na sua estrutura se assemelha a um prólogo, cinco capítulos que podem corresponder aos cinco actos, e um epílogo. Todos estão recheados de alusões ao Rei Édipo. O destino da personagem principal, um homem que tenta descobrir a identidade de um assassino que é ele próprio, tem origem clara no mito grego. Morrissette enumera ainda outros pormenores que provam a recepção de Sófocles em Les Gommes: a alusão ao enigma da esfinge, o motivo da criança abandonada, os pés inchados de Wallas, e várias alusões ao nome Oedipe.
Robbe-Grillet acentuou neste romance os elementos que ligam Rei Édipo ao romance policial moderno. O crime cometido por Édipo é passado, mas mostrado como presente. Em Les Gommes não há nenhum crime que exista fora da história, nenhum facto que a preceda e que tenha de ser investigado e descoberto. São as vinte e quatro horas do relato que criam essa própria realidade. Robbe-Grillet pronunciou-se em vários escritos sobre esta questão, p. ex. no artigo "Du réalisme à la réalité", no qual se distancia da crítica académica, quer ocidental quer dos países à época comunistas, por empregarem a palavra "realismo" como se a realidade fosse um dado adquirido quando o escritor entra em cena. O papel deste seria assim apenas explorar ou exprimir a realidade da sua época. Ou ainda no artigo "Temps et description dans le récit d'aujourd'huit", afirmando que a obra não é um testemunho sobre a realidade exterior, mas sim ela mesma a sua própria realidade (ambos os textos em Pour un nouveau roman, 1963).
O problema que preocupa Robbe-Grillet é o mesmo tema de fundo de "Oedipe", ainda que a forma e as soluções apontadas pelos dois escritores sejam diferentes. Robbe-Grillet dá ao problema a dimensão da arte moderna: "O verdadeiro, o falso e o fazer-de-conta tornaram-se mais ou menos o assunto de toda a obra moderna. Em vez de ser um pedaço de realidade a fingir, a obra de arte moderna desenvolve-se como reflexão sobre a realidade (ou sobre o pouco de realidade, como se queira). Já não procura esconder o seu carácter necessariamente mentiroso, apresentando-se como uma história vivida." (PuNR) Atente-se nos paralelos com a concepção de Aragon em La Mise à mort da arte narrativa como jogo de "Let's pretend" ou como "Mentir-Vrai". Trata-se, assim, da acentuação do poder singular da literatura e do seu efeito. Ambas as figuras de Édipo, a clássica e a de Robbe-Grillet, são provas da arte de persuasão do "récit". O real e o imaginário estão aí indissoluvelmente ligados. O romance de Robbe-Grillet L'année dernière à Marienbad, do qual resultou, em colaboração com Alain Resnais, o filme com o mesmo nome (1961), seria disto o exemplo acabado. Todo o filme é a história de uma persuasão, o herói vai criando uma realidade através da palavra. O poder especial da narrativa em Rei Édipo é acentuado por Gérard Genette, que argumenta que se Édipo pôde fazer aquilo que todos apenas desejam, é porque um oráculo contou antecipadamente que ele um dia mataria o pai para casar com a mãe: "sem oráculo, não haveria exílio, nem Édipo estaria incógnito, não haveria parrícidio nem incesto. O oráculo do Rei Édipo é uma narrativa metadiegética no futuro, cuja enunciação vai desencadear uma 'máquina infernal' capaz de o realizar. Não é uma profecia que se realiza, mas antes uma armadilha em forma de narrativa, e que resulta."
(a continuar)
Imagem e créditos: Alain Robbe-Grillet (enjoyfrance.com)
Bibliografia secundária seleccionada:
Alain Robbe-Grillet, Pour un nouveau roman. Paris, 1963
Bruce Morrissette, Les romans de Robbe-Grillet. Paris, 1963
Gérard Genette, Figures III. Paris, 1972

Aragon tel qu'en lui-même... enfin

Il n'y a pas d'amour heureux, di Louis Aragon

sábado, 19 de junho de 2010




A procura da verdade na arte em "La Mise à mort" de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta vermelha"

2. A recepção do mito de Édipo. Simbolismo da luz e sombra. A dimensão psicológica
A tragédia Rei Édipo de Sófocles contém um simbolismo que a liga não só a Oedipe, mas a todos os três contos da pasta vermelha (também a Murmure e a Le Carnaval): o simbolismo da luz e sombra. A luz significa no contexto dos três contos a verdade, a sombra significa o momento, em que, de olhos fechados, se acede à verdade. A escuridão significa, neste contexto, a ficção, que tem o poder de, por sua vez, criar luz.

No Rei Édipo a figura do adivinho Tirésias representa a sabedoria, que é capaz de ver mais claramente na sombra do que na luz. Todo um encadeamento metafórico à volta desta oposição percorre o trágico caminho de Édipo em direcção à verdade.

Desde Freud, é inevitável associar o nome de Édipo não só à peça de Sófocles, mas também ao "complexo de Édipo". Este consiste no desejo inconsciente do menino que desejaria matar o pai, para ficar com a mãe só para si. O terceiro e último conto da pasta vermelha, Oedipe, conclui convincentemente, como investigação do inconsciente, o conjunto dos três contos da pasta vermelha. A tentativa de Oedipe de se recordar do que aconteceu pode mesmo interpretar-se como ilustração irónica da conhecida máxima de Freud para o processo de tomada de consciência - "Wo Es war, soll Ich werden". A inclusão do conto na estrutura da história de amor do romance - Alfred tomou a decisão de matar o seu rival Anthoine - faz aparecer a uma luz irónica a dimensão freudiana do mito de Édipo. A mediação de Lacan, cujo Séminaire sobre o conto de E. A. Poe The Purloined Letter é igualmente importante em Oedipe, começa a tornar-se nítida no texto. Mas como a personagem de Édipo criada por Aragon deve ser vista sob uma perspectiva crítica, as claras alusões ao mito de Édipo no sentido freudiano devem ser entendidas como ironia. Se queremos chegar a uma interpretação adequada de Oedipe, temos de ultrapassar a perspectiva meramente psicológica.



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Imagem: Louis Aragon
Créditos da imagem: http://www.leninimports.com/

segunda-feira, 7 de junho de 2010














A procura da verdade na arte em "La Mise à mort" de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta vermelha"


1. Introdução
O capítulo "Oedipe" encontra-se no longo romance de 1965 La Mise à mort (em Portugal traduzido como Condenação à morte), que marca o início da fase estruturalista na produção de Louis Aragon. O autor repensa todo o seu percurso literário desde o movimento Dada, passando pelo surrealismo e realismo socialista, até 1965. Traça um retrato ficcional do seu itinerário e reequaciona sobretudo a ruptura com o movimento surrealista. Para isso, recorre a um movimento que conhecia bem, o romantismo alemão. Aragon era médico de profissão, sabia falar alemão e era profundo conhecedor da cultura alemã, que irá defender nos anos da Resistência como a "Alemanha dos pensadores e poetas". Em La Mise à mort, esta temática será ilustrada através do uso e mudança de função de motivos tradicionais do romantismo alemão, nomeadamente o motivo do espelho, da sombra e do duplo ("Doppelgänger"). A redescoberta do passado surrealista e a investigação do seu significado assumem em La Mise à mort a forma de busca da verdade a três níveis: a verdade histórica no capítulo "Murmure", a verdade individual no capítulo "Le Carnaval", e a verdade da arte em "Oedipe".
O texto de "Oedipe" é tão difícil de ler, que uma das primeiras analistas deste romance, Sophia Bibrowska, afirma ser produto de um cérebro doente, interpretando o capítulo como "grito desesperado de loucura" e "mascarada louca de marionetas sem nexo". Wolfgang Babilas vê neste Édipo o homem típico da era (anos 1960), e Delf Schmidt acentua a dimensão política do conto e classifica-o como a peça mais hermética da produção tardia de Aragon. Devido a este carácter difícil de decifrar, "Oedipe" é normalmente visto como continuação do romance da fase surrealista Anicet ou le Panorama, Roman, e como regresso à escrita automática que era própria do surrealismo.
Tentarei mostrar na minha análise que a relação de "Oedipe" com Anicet é de ordem mais subtil do que o mero retomar da escrita e temática surrealista. Aragon trata em "Oedipe", de modo altamente elaborado, o problema da verdade na arte e traça a problemática do poder de invenção e antecipação da literatura. O complexo sistema interior de espelhos em "Oedipe" - i.e., os vários níveis simultâneos de alusões, e os diferentes contextos - fazem, de facto, este conto parecer um texto hermético, de interpretação impossível. No que se segue tentarei mostrar que "Oedipe" é uma obra-prima de reflexão meta-literária.
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Bibliografia secundária seleccionada:
Ana Maria Delgado, Aragons 'La Mise à mort' und die Rezeption romantischer Motive. Diss. Universidade Humboldt de Berlim, 1984
Delf Schmidt, Aragon. Zur Konzeption des sozialistischen Realismus in seinem Werk. Hamburg, 1980
Sophia Bibrowska, Une mise à mort. L'itinéraire romanesque d'Aragon. Paris, 1972
Wolfgang Babilas, Le collage dans l'oeuvre critique et littéraire d'Aragon. In: Revue des Sciences Humaines, 151, 1973
Imagens e créditos:
Max Ernst, Das Innere der Sicht (Ödipus), 1931 (O interior da visão, Édipo) (http://www.derkunstblog.blog.de/)
Gustave Moreau, Oedipe et le Sphinx (1864) (allposters.de)
Jean-Auguste Ingres, Oedipe et le Sphinx (1808) (allposters.de)