domingo, 11 de dezembro de 2011



Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto


(...)
       À relação da obra com a realidade fora durante muito tempo dada uma ênfase exagerada por modos de abordagem mecanicistas, excluindo totalmente o leitor e atribuindo à obra literária um estatuto de realidade no segundo grau como reflexo. As modernas teorias do texto reagiram fortemente contra este ponto de vista; a sua atenção não se focou no movimento centrípeto de ficcionalização, mas antes no movimento centrífugo que acontece no processo de leitura. O olhar crítico não seguia o processo de escrita detendo-se no texto; ele começava onde outras abordagens se tinham detido e tentava seguir as diversas integrações do texto na realidade através dos leitores. O mais antigo problema da estética – a relação ficção-realidade – estava de novo a ser focado, mas desta vez pelo lado oposto: a realidade a considerar já não era a realidade reflectida no texto, mas sim a realidade gerada pelo próprio texto através do leitor. Não o texto como reflexo de uma realidade pré-existente, mas sim o texto como potencial acção na realidade. O processo de transformação do texto em realidade está sempre ligado à função geradora de sentido do texto; o texto atinge a realidade através da sua potencialidade de produzir sentido. O leitor tem agora um papel activo decisivo: se o autor se exprime no texto, o leitor tem de encontrar outras maneiras de integrar o texto na realidade, mesmo que seja através de um segundo texto, como pode ser o caso do leitor directamente criativo ou do crítico literário. O que interessa agora é o regresso do leitor à realidade, libertando o texto literário do seu isolamento e alargando a noção de obra através da integração do texto na realidade. A inserção do texto no processo de recepção que o transforma em obra implicaria a longo prazo uma nova reflexão sobre os próprios conceitos de arte e vida – mas tecer considerações teóricas sem sabor utópico sobre esta questão é, pelo menos, impossível por agora. Seja como for, as modernas teorias do texto depressa se transformaram em teorias da comunicação literária, focando o seu interesse na história literária como um processo que engloba três elementos: autor, texto e leitor[1].

       O texto exprime sempre e de um modo ou outro denota uma necessidade de diálogo, possui aquilo a que Iser chamou “estrutura apelativa”. Mas a comunicação com o leitor não é directa, estabelece-se através do texto. É essa a razão pela qual o autor foi, a princípio, deixado de fora da reflexão teórica, uma vez que ele permanece presente no texto e comunica com o leitor através do texto – daí o desvio da tónica para o eixo de relação texto-leitor, texto-acção (“Wirkung”). O que também quer dizer que a perspectiva hermenêutica tradicional seria ingénua ao assumir que a comunicação se estabelece directamente entre autor e leitor através do acto de expressão, através da co-genialidade – e tendendo a ignorar a especificidade da comunicação literária, estabelecida através do texto.

       O conceito de “ler mal” (“misreading”) proposto por Harold Bloom como leitura antitética, tentando sondar “as profundidades da influência poética”[2], remonta às investigações de Freud sobre os mecanismos de defesa, atribuindo à protecção do organismo contra estímulos um papel quase maior do que à “recepção de estímulos”[3]. Bloom vê a qualidade de processo de leitura, mas como reacção; o diálogo entre poetas fortes é um diálogo negativo e todos os textos mostram, na sua formulação, uma ou outra espécie de ratio “revisionista”. É de duvidar que a redução da leitura ao “ler mal”, “misreading”, e da leitura criativa à leitura antitética, tenha contribuído para dar à crítica literária um carácter mais humanista. O acesso do leitor à criatividade através da leitura é certamente uma coisa maravilhosa, mas o apelo do texto à criatividade não deveria limitar-se à espécie de criatividade que, por seu turno, encontra expressão em textos literários – e Bloom não aponta uma saída para fora dos próprios poemas, sendo a crítica literária para ele “a arte de conhecer os caminhos escondidos que vão de um a outro poema”[4]. Seja como for, a teoria das relações intrapoéticas de Bloom exprime uma reacção contra o rigor teórico e o “close reading” do texto: na perspectiva de Bloom, o crítico pode de igual modo ser um artista: “Não há interpretações mas apenas más interpretações, e assim toda a crítica é poesia em prosa”[5]. Exigir maior subtileza ao crítico literário e maior exactidão ao escritor não significa que, nas palavras de Bloom, “à medida que a história literária se desenvolve, toda a poesia se torna necessariamente crítica em verso, tal como a crítica se torna poesia em prosa"[6]. Enriquecimento da leitura e da escrita, bem como da crítica no processo da sua evolução, não significa ausência de diferenciação, pelo contrário. E reduzir a uma leitura ideal o número de leituras possíveis – uma vez que elas são o resultado não só da estrutura do texto, mas mais da qualidade histórica da recepção – significaria dar um fim artificial à história dos textos e da sua acção ou efeito (“Wirkung”).*

[1] Cf. JAUSS, Hans Robert, “Esthétique de la réception et communication littéraire”, in: Proceedings of the IXth Congress of the ICLA. Innsbruck 1979, vol. II, Literary Communication and Reception, ed. por Z. Konstantinovic, M. Naumann, H. R. Jauss. Innsbruck, 1980.
[2] Cf. Anxiety, p. 7.
[3] Cf. Map, p. 13: “’Protection against stimuli is an almost more important function for the living organism than reception of stimuli’ is a fine reminder in Beyond the Pleasure Principle, a book whose true subject is influence.”
[4] Cf. Anxiety, p. 96: “Criticism is the art of knowing the hidden roads that go from poem to poem”.
[5] Id. ibid., p. 95: “There are no interpretations but only misinterpretations, and so all criticism is prose poetry”.
[6] Cf. Map, p. 3: “As literary history lengthens, all poetry necessarily becomes verse-criticism, just as all criticism becomes prose-poetry”.
*Gostaria de exprimir ao meu então orientador de doutoramento, Prof. Doutor Manfred Naumann, alguns comentários que me ajudaram na reflexão sobre este tema.

sábado, 19 de novembro de 2011





Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto

 


 
 (...)
              Mas o destino das “lacunas” na crítica literária viria a ser diferente. De facto, as lacunas do texto, bem como os passos de indeterminação, são considerados por Wolfgang Iser[1] uma condição para a recepção do texto e um factor importante para a sua acção. As lacunas não são, no entanto, na perspectiva de Iser, espaços em branco a preencher arbitrariamente pelo leitor, um espaço vazio para exercícios de leitura arbitrários. A estrutura do texto determina as lacunas a preencher e contém assim em si mesma um leitor implícito. Isto não quer dizer que nada mais reste para ler ao leitor de Iser[2], uma vez que a proposta mais importante do papel atribuído ao leitor no texto é descobrir[3]. Além disso, as lacunas são para Iser uma parte da estratégia comunicativa do texto, indispensável para o contacto estabelecido entre texto e leitor: não é possível comunicação sem intenção comunicativa.

       Em suma, poderia dizer-se que reivindicar os direitos do texto ou do leitor, traçando linhas que vão unilateralmente de um ao outro, defendendo a primazia de um dos dois, torna-se desnecessário quando a leitura e a recepção são vistas como inter-relação e processo, uma vez que nenhum dos dois elementos vale por si só: defender a liberdade e a criatividade do leitor sem texto não faz muito sentido – e o texto sem leitor não passa de uma materialidade de sinais à espera de descodificação. Alguns críticos querem defender a “obra em si mesma”- mas qual é, na fórmula de Ingarden, o modo de existência da obra literária? O problema, contido nas contradições internas de Ingarden, é resolvido em cambiantes diferentes por Wolfgang Iser[4] e Manfred Naumann[5]: o texto torna-se obra no processo de leitura e através da leitura.

       Os dois livros de Harold Bloom sobre o “ler mal” (“misreading”) devem ser compreendidos como reacção ao tecnicismo da crítica literária, e como tentativa humanista de salvar a literatura dos métodos “formalistas” que vêem o texto ou obra como um organismo fechado em si mesmo. Bloom cai no extremo oposto, escrevendo que “não há textos, mas apenas relações entre textos”[6]. O fundamento para a sua doutrina poética é a influência, ou as relações intrapoéticas, que cuidadosamente separa do “estudo das fontes”, da “história das ideias” ou da “estruturação das imagens”[7]. Na sua nostalgia por um método de abordagem humanista que se teria perdido na crítica literária, Bloom tende a negligenciar o texto e a concentrar-se nos dois participantes do processo, autor e leitor.

       Erros causados pelo biografismo, bem como a concepção essencialista de obra literária, tinham conduzido no passado à exclusão do autor e do leitor e à concentração exclusiva no texto no seu “estado de pureza”, de estrutura separada e independente, depois de escrito e antes de ser lido[8]. A obra é então considerada como estrutura de sinais, e não no processo que constitui o seu verdadeiro modo de existência próprio, nos dois momentos da sua humanização, como produto da actividade humana, ao ser escrita – e lida. Isolar o texto no seu “estado de pureza” pode corresponder a uma estratégia metodológica num dado momento da evolução da crítica literária, ou numa dada fase do estudo de um texto; mas conferir valor absoluto a uma fase de um processo, elaborando teorias que isolam o texto literário numa hipotética esfera própria como tendo um estatuto ontológico à parte, é em si mesmo um paradoxo. Isolar o texto num mundo próprio inacessível não garante a realização de todas as suas potencialidades e da totalidade dos seus valores, pelo contrário, faz disso uma impossibilidade. Toda a afirmação sobre o texto implica a sua apropriação por parte do leitor e a sua reintegração na realidade; o que os diferentes “formalismos” fazem é cortar os diversos laços passados e futuros que ligam o texto à realidade e encerrá-lo na sua “prisão”, mas ao fazê-lo apenas estão, de facto, a integrá-lo negativamente na realidade.


(a continuar)


[1] ISER, Wolfgang, Die Appellstruktur der Texte. Unbestimmtheit als Wirkungsbedingung literarischer Texte. Konstanz, 1970.
[2] Cf. BARNOUW, Dagmar, “Is there anything left to read for Iser’s reader?”, in: Proceedings of the IXth Congress of the ICLA, Innsbruck 1979, vol. II: Literary Communication and Reception, ed. Por Z. Konstantinovic, M. Naumann, H. R. Jauss. Innsbruck, 1980.
[3] Cf. ISER, Wolfgang, Der implizite Leser. Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett. München, 1972, p. 9.
[4] Cf. ISER, Wolfgang, Der Akt des Lesens. München, 1976, p. 39: „A obra é a constituição do texto na consciência do leitor” (“Das Werk ist das Konstituiertsein des Textes im Bewusstsein des Lesers”).
[5] Cf. NAUMANN, Manfred, “Werk und Literaturgeschichte”, in: Weimarer Beiträge, 1, 1982, p. 59: „só o texto lido, quer dizer o texto a que se deu significado e, portanto, valoração, é a verdadeira obra” (“erst der gelesene, das heisst der bedeutete und damit bewertete Text ist das wirkliche Werk”).
[6] Cf. Map, p. 3: “there are no texts, but only relationships between texts.”
[7] Cf. Anxiety, p. 7.
[8] Cf., por exemplo, KAYSER, Wolfgang, Das sprachliche Kunstwerk. Bern e München, 51959, p. 138: „A obra de arte literária vive como tal e em si mesma” (“Das sprachliche Kunstwerk lebt als solches und in sich“).

sábado, 15 de outubro de 2011



Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto*


       Nas suas obras The Anxiety of Influence [1] e A Map of Misreading[2], Harold Bloom propõe a categoria central de “misreading” – “ler mal” – para a compreensão da história da poesia, que não pode, a seu ver, distinguir-se da influência poética, “uma vez que os poetas fortes fazem essa história lendo-se mal uns aos outros” (p. 5). “Ler mal” aparece, na perspectiva de Bloom, no sentido positivo de “mal-entendido produtivo”. Poderia traçar-se a história do sugestivo termo proposto por Bloom: de facto, vários outros críticos usam expressões semelhantes para denotar leitura produtiva. Assim, Robert Escarpit fala de “’traição criativa’ como chave da literatura”[3] e, referindo-se a Julia Kristeva e ao seu conceito de entropia do discurso literário, toma a “predisposição da obra à traição” como um critério da sua especificidade literária[4]. As diferentes interpretações não significam, de igual modo, na perspectiva de Roland Barthes, uma tendência dos leitores para ‘errar’, mas antes uma “disposição da obra literária para a abertura”[5]. Umberto Eco também desenvolveu no seu já famoso livro Opera aperta[6] as noções de “obra aberta” e de “obra em movimento”. Para ele, a liberdade do texto – a sua abertura – deveria ser igual à liberdade do leitor. Concebendo a forma como um campo de possibilidades, Eco também atribui ao texto a razão das diferentes leituras, através da sua intenção de comunicar mais do que uma mensagem inequívoca.
       A noção de “ler mal” como leitura produtiva parece, à primeira vista, ser o contrário do conceito clássico de “ler mal” tal como é desenvolvido na obra mais importante de Roman Ingarden[7]. Considerando, no entanto, os dois conceitos de “ler mal” mais de perto, chega-se a outra conclusão, pois definir a qualidade literária de uma obra como a sua predisposição à traição é o último passo na linha essencialista de Ingarden, uma vez que a noção de “traição criativa” pressupõe que a obra possui uma imanência de sentido, um significado fixo que pode ser traído.
       Uma das maiores preocupações de Ingarden era defender a obra de leituras não-adequadas, de “mis-readings”. Por outro lado, tem-se desenhado entre os críticos literários uma tendência para sublinhar a criatividade do leitor, criticando o facto de o leitor ser levado pelo texto, com o argumento de que pouco restaria então ao leitor para ler. Os seguidores mais fiéis de Ingarden protestariam, por outro lado, contra o uso do texto como mero pre-texto por parte do leitor.
       O centro da aparente contradição contida nestas posições está já presente na tentativa de Ingarden de definir o modo de existência da obra literária: Ingarden deixa de fora autor e leitor, mas escreve que a obra existe nas diferentes concretizações e através delas[8]. No seu receio de concretizações inadequadas, Ingarden preferiria ver lacunas e passos de indeterminação da obra preenchidos no acto da sua composição; se restam ainda espaços abertos no texto, caberá ao leitor completar a polifonia da obra, preenchendo as lacunas. O problema é, evidentemente, que se as diferentes concretizações não passam de um resultado da estrutura polifónica da obra, pouco mais restaria ao leitor do que o papel de eco ou espelho do texto. Exagerar, por outro lado, a função das lacunas e dos passos de indeterminação do texto, poderia levar a concepções idealistas de comunicação através de pura intuição, de transmissão de energia através do mero acto expressivo.
       Mas o destino das “lacunas” na crítica literária viria a ser diferente.
(a continuar)



*O presente texto é a tradução da comunicação que apresentei ao X. Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada AILC/ICLA em Nova Iorque a 24 de Agosto de 1982, intitulada no original “A Note on Misreading, or: Filling the Author’s Gaps”, publicada nas Actas do Congresso, e a publicar a seu tempo também em língua inglesa aqui no Comparatista e Detective. Este texto é a versão revista do texto publicado em Cadernos de Literatura do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, Nº 19, 1984, p. 39-44.

[1] BLOOM, Harold, The Anxiety of Influence. New York, 1973 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[2] BLOOM, Harold, A Map of Misreading. New York, 1975 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[3] ESCARPIT, Robert, “’Creative Treason’ as a Key to Literature”. In: Yearbook of Comparative and General Literature, Bloomington, nº 10, 1961.
[4] ESCARPIT, Robert, Le littéraire et le social. Paris. 1970, p. 28.
[5] BARTHES, ROLAND, Critique et vérité. Paris, 1970, p. 50: “A variedade dos sentidos não revela uma visão relativista sobre os costumes humanos; ela designa, não uma predisposição da sociedade para o erro, mas sim uma disposição da obra para a abertura; a obra detém, ao mesmo tempo, vários sentidos, por estrutura, não por defeito daqueles que a lêem”.
[6] ECO, Umberto, Opera aperta. Forma e indeterminazione nelle poetiche contemporanee. Milano, 1962.
[7] INGARDEN, Roman, Das literarische Kunstwerk. Halle (Saale), 1931, p. 361 (tradução portuguesa com o título A obra de arte literária. Lisboa, 21979).
[8] Id. ibid., cap. 13, “Das ‘Leben’ des literarischen Werkes”, p. 342-389. INGARDEN escreve, por exemplo, „que se devem contrapor à própria obra as suas concretizações, que dela se distinguem em muitos aspectos” (“daß dem Werke selbst seine Konkretisationen entgegenzusetzen sind, die sich in mancher Hinsicht von ihm unterscheiden”, p. 342).

sábado, 21 de maio de 2011


Animatógrafo de Lisboa - Voltar atrás para quê?


 Reli por estes dias Começa uma vida e Voltar atrás para quê?, de Irene Lisboa. E neste segundo livro encontrei um passo no qual a autora descreve como era o Animatógrafo de Lisboa, por altura dos anos 1950 (o livro data de 1954):

"À noite, umas vezes por outras, Jóia e a mãe iam ao cinema e levavam-na.
 O animatógrafo, como então se chamava, era de fresca data. As fitas, de corridas e perseguições, de pratos quebrados e outras fantasias simples, jocosas, recreavam um público pouco exigente.
A meio de uma destas comédias sai-se de uma vez a velha: "Olha o expediente!"
Um tal dito franco, irreprimido, grande expressão naquela boca, retraiu-a. Sentiu-se envergonhada. "Olha o expediente!" ficou-lhe a ilustrar ridiculamente os primórdios do cinema, com aquelas artes e fugas saltadas, à custa de muitos obstáculos irrisórios.
Jóia foi-se embora, finalmente (...)"

Irene Lisboa, Voltar atrás para quê?, in: Obras de Irene Lisboa (vol. IV), organização e prefácio de Paula Morão. Lisboa: Presença, 1994, p. 49-50.

Recordei-me também eu de há quanto tempo não oiço no cinema aqueles comentários "à portuguesa", como só ouvi em Portugal, em Coimbra, no meio dos filmes, às vezes com muito humor, mas evidentemente interrompendo quem queria ver o filme.

E para quando, a recuperação do Animatógrafo do Rossio, de evidente e inestimável valor histórico e artístico, que serve desde 1994 para a triste função de "Sexilândia" com uma sex-shop e peep-shows? Em qualquer outra parte da Europa se estimaria esta verdadeira jóia de Arte Nova, quando é que a Câmara Municipal acorda para os valores que a cidade tem e estão sujeitos a um uso completamente degradado?

sábado, 14 de maio de 2011


Ciclo Sur l'écran noir de mes nuits blanches (5) - Boris Vian, "Cinématographe"

É muito mais fácil escrever sobre a música no cinema do que sobre o cinema na música, por razões óbvias: há muito mais que dizer e muito mais exemplos a que recorrer. Mas retomando hoje este ciclo dedicado às duas artes, gostaria de recordar um desses raros exemplos em que a música reflecte sobre o cinema.

A canção "Cinématographe", de Boris Vian, com música de Jimmy Walter, escrita em 1954 e gravada no ano seguinte, pertence a esse grupo. A sofisticada letra, como todas as letras escritas por Boris Vian, conta a história da arte então ainda muito jovem do cinema, através da reacção do público. Desde o cinema mudo, passando pelo sonoro e depois pelo cinemascópio, a importância da sétima arte mede-se pela perspectiva adoptada - narrar o curso de vida como se fosse toda passada numa sala de cinema ("le cinéma permanent"), contando com quem se vai ao cinema nas várias idades, como se reage aos filmes mais populares na época, quem eram os actores dos géneros mais vistos, quais as personagens-tipo, as peripécias narradas no écran, as reacções do público, qual o preço do bilhete, etc. A música, ao estilo de New Orleans, é especialmente adequada à velocidade desta então nova arte, marcada pela mobilidade da imagem, já que é isso o cinema, imagens em movimento.

Não posso deixar de recordar, neste contexto, as primeiras vezes que fui "ao cinema" - tinha 5 e 6 anos e não me lembro nada dos filmes, talvez muito vagamente de um ou outro Charlot, mais porque eram filmes que os adultos achavam que nos iam a nós crianças pôr a rir e o resultado era o oposto, pois o meu primo Pedro Manel, muito solidário, desatava sempre a chorar com pena daquela personagem desajeitada e sempre em apuros... Vivíamos então em Águeda e os meus pais tinham o hábito de ir uma vez por semana ao cinema na Escola Central de Sargentos, eram sessões familiares, de amigos, com aproximadamente 20 a 30 pessoas, e do que melhor me recordo é da máquina de filmar, que estava entre nós, no meio da sala. A minha mãe ainda se recorda dos filmes de que mais gostou, Casablanca e Sabrina, ambos com Humphrey Bogart.


O meu pai teria com certeza, como sempre, inúmeras histórias a contar sobre estas sessões de cinema...

Em contrapartida, recordo-me muito bem da primeira vez que vi um filme num cinema a sério, e do filme que vi, mas isso fica para um próximo post.

quinta-feira, 5 de maio de 2011









Matisse em Baltimore, III - The Matisse Stories de A. S. Byatt




O último conto, "The Chinese Lobster", questiona o lugar de Matisse num mundo pós-moderno. A discussão gira à volta de questões de género - a representação do corpo feminino e a perspectiva feminina nos seus quadros. Gerda Himmelblau, Directora dos Estudos Feministas, almoça com o professor Peregrine Diss para conversarem sobre a queixa de uma aluna, Peggi Nollett, sobre Diss. Peggi quer escrever uma dissertação sobre "Matisse e o corpo feminino", e não se sente compreendida por Diss, além de que o acusa de assédio sexual. A perspectiva dela é ahistórica e de protesto, está interessada na distorção do corpo feminino na obra de Matisse e na imobilização da mulher, que ela relaciona com a representação de escravas e odaliscas na pintura. Peggi convidou Diss a ver o seu trabalho, no estúdio que lhe serve também de casa, e Diss descreve a Gerda as paredes forradas com cartazes de Matisse manchados com matéria orgânica, que parece ser sangue, ovos e tomate, e grandes suásticas desenhadas com fezes. Gerda argumenta que a arte recente contém elementos de protesto. Discutem a questão do assédio, e Gerda acredita que seja falsa, entre outras coisas, pela descrição de Peggi, feita por Diss, como muito pouco atraente - embora, reflicta ela, o assédio não seja uma questão de atracção, mas sim de afirmação de poder. Finalmente, interrogam-se sobre a razão que terá levado Peggi a escolher Matisse, se o detesta a tal ponto, justamente ela que é anoréctica, depressiva e tem tendências suicidas. Gerda explica que é exactamente essa a razão da escolha - Matisse pinta "luxe, calme et volupté" (título do quadro de Matisse reproduzido em cima). As críticas feministas não gostam do modo como Matisse "expande o erotismo masculino a panoramas plácidos de bem-estar" (MS, p. 116). Os marxistas, por outro lado, criticam a conhecida afirmação de Matisse de sonhar com uma arte feita de equilíbrio, pureza e serenidade, desprovida de qualquer assunto perturbador, uma arte que acalme, uma espécie de poltrona confortável que proporcione descanso. Diss considera esta declaração de Matisse mais provocadora que o trabalho de Peggi, Gerda argumenta tratar-se de uma visão muito limitada. Gerda decide transferir a orientação da tese de Peggi para um(a) professor(a) que seja mais sensível ao projecto dela, ahistórico e de protesto: "a sympathetic supervisor, who cares about political ideologies of that kind" (MS, 126).


Curiosamente, um dos autores que mais se ocupou de Matisse foi justamente um comunista, Louis Aragon. No texto "Apologie du Luxe", de 1946, Aragon refere-se ao ponto de partida de Matisse, os versos do poema de Baudelaire "Invitation au Voyage": "Luxe, calme et volupté". Aragon defende Matisse e diz que tudo depende daquilo que se entende por "luxo", que pode ser o "direito à preguiça" de Paul Lafargue (cf. o seu livro Le droit à la paresse, de 1887), ou talvez mais ainda aquilo que não tem preço. Em qualquer dos casos, se o que se entende por luxo é o contrário de trabalho, seria um crime aplicar o termo a Matisse, que durante 56 anos mais não fez do que trabalhar e criar. Aragon diz que Matisse trabalhava como respirava, quase sem tempo para dormir.


Crítica em relação a todas as personagens, A. S. Byatt deixa transparecer quão pouco exacto pode ser o "politicamente correcto". Interrogamo-nos, a partir do texto de Byatt, se a perspectiva de Diss não terá sido ultrapassada pelos tempos, e se a de Peggi - para além das características pouco originais e de grande agressividade evidentes no seu "artwork" - não será descontextualizada e superficial. Mas o texto de A. S. Byatt não fornece soluções. Apresenta as contradições da contemporaneidade e, num procedimento muito brechtiano, deixa que seja o leitor a tirar as suas próprias conclusões. O texto de Byatt pode ser entendido como catalisador para uma discussão sobre o que muda nos tempos que mudam sempre, e o que permanece.


A. S. Byatt afirma que desejaria escrever como Matisse pinta. É verdade que a autora escreve usando, tal como Matisse, aquilo a que poderíamos chamar uma paleta de cores muito vivas. Mas é difícil comparar o método de criação de autores/artistas que usam meios tão diferentes como a literatura e a pintura. A arte de Byatt é muito irónica e crítica, de uma ironia sempre impregnada de grande ternura pelas suas personagens, sempre muito humanas. As três personagens de "The Chinese Lobster", todas tão diferentes, em conflito entre si e consigo próprias, são irmanadas no final pela autora, já que todas elas lutam para se manterem vivas num mundo aparentemente sem sentido. Une-as um contacto mais ou menos directo com suicídio ou tentativa de suicídio nas suas vidas, e o sentido possível da existência, pelo menos para quem lê, parece ser a descoberta desse elo de ligação. A lagosta e os caranguejos, que parecem lutar também pela sobrevivência numa grande montra de vidro à entrada do restaurante chinês, têm no conto a função de metáfora da precária existência humana. As personagens de "The Chinese Lobster" estão tão isoladas e em situações aparentemente tão sem saída como esses animais - o que as distingue deles é só a consciência e o sempre difícil diálogo que a autora esboça entre elas. É interessante verificar que o "fiel da balança" em cada uma das situações de conflito dos três contos é sempre uma figura feminina - quer se trate de Susannah, Debbie ou Gerda, a perspectiva de A. S. Byatt é sempre, para além de irónica, humana e crítica, claramente feminista. O que Byatt mais partilha com Matisse será certamente o lado humano que observámos nas personagens que habitam estes contos, tão presente também no belo texto de Jazz do pintor, nomeadamente na secção dirigida aos jovens pintores.



Bibliografia:



- Aragon, Louis, Henri Matisse - a novel. NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1979



- Byatt, A. S., The Matisse Stories. NY: Vintage Books, 1996 (no texto como MS, traduções minhas)



- Flam, Jack, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001



- Gowing, Lawrence, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979



- Kelly, K. C., A. S. Byatt. NY: Twayne Publishers, 1996



- Matisse, Henri, Jazz. NY: George Braziller, 1992



Texto publicado na PNETliteratura a 3 de Julho de 2009

sábado, 30 de abril de 2011







Matisse em Baltimore III - The Matisse Stories de A. S. Byatt




A terceira artista da casa, que só no final se revela e é reconhecida como tal, é Mrs. Brown, a funcionária negra da Guiana, o verdadeiro espírito protector e tutelar da casa, o seu totem. Ela acaba por se tornar a personagem central e mais interessante do conto, aliada de Debbie e em constante conflito com Robin. Sheba Brown é descrita como "um génio da justaposição" (Kelly, 59) - ela veste-se de modo surpreendente, usa tecidos floridos, malhas de todas as cores, feitas de restos de lã. Mrs. Brown confecciona a roupa que usa com restos de tecidos e roupas usadas que lhe dão. Quando uma elegante e requintada galerista visita a família Dennison para eventualmente expor a obra de Robin, é Mrs. Brown quem capta a sua atenção e acaba por ser escolhida para expor o seu recém-descoberto "artwork". A família Dennison não fazia ideia de quão pouco ingénua era afinal a arte de tricotar de Mrs. Brown... Sheba Brown pode ser vista como "a recycler of culture, reversing the flow of Western appropriation of the Third World" (Kelly, 58), como recicladora da Cultura Ocidental, retribuindo o gesto ocidental de reciclar a cultura do terceiro Mundo.

Debbie vê, por acaso, a exposição de Mrs. Brown na galeria de arte, transformada numa "cave de Aladino de cores brilhantes" (MS, 77). Mrs. Brown juntou restos de coisas, roupas da família Dennison, um vestido usado de Debbie, uma gravata que Robin deitou fora, para produzir uma arte de forte conteúdo feminista. Os objectos principais desta cave de Aladino são um dragão enorme, meio animal meio aspirador, feito, entre outros materiais, do vestido usado de Debbie, e uma boneca de trapos, acorrentada em soutiens retorcidos e saiotes. Debbie ainda tenta não falar da exposição ao marido, mas Jamie, um dos dois filhos do casal, chama os pais para ver Mrs. Brown na "telly", descrevendo o que vê como bizarro: "Ela tem uma exposição de coisas que parecem os Marretas, com aquela senhora da galeria que veio aqui a casa, venham ver, Pai, que bizarro!" (MS, 81) Como reacção à exposição e arte de Mrs. Brown, Debbie regressa com sucesso à arte da xilogravura que abandonara, e Robin começa a pintar de modo diferente, usando finalmente alguma emoção. Ambos retratam o rosto de Mrs. Brown, Debbie transformando-a em fada boa / fada má, Robin pintando-a como Kali, a deusa hindu da morte, que pode também significar vida nova (Kelly, 59).


O conto sugere que a arte contemporânea é algo também de colectivo, produzida por indivíduos em interacção com outros indivíduos, com a sociedade e com as suas instituições de arte. O artista não produz arte só porque assim quer, mas sim quando a sociedade, através das várias instituições ligadas à arte, galerias, museus, críticos e professores de arte, reconhece esse trabalho como tal.


(a continuar)



Bibliografia:


- Byatt, A. S., The Matisse Stories. NY: Vintage Books, 1996 (no texto como MS, traduções minhas)

- Kelly, K. C., A. S. Byatt. NY: Twayne Publishers, 1996


Texto publicado na PNETliteratura a 3 de Julho de 2009

Henri Matisse prepara um dos seus famosos "cut outs"
ou colagens (ou ainda "gouaches découpés")

Henri Matisse fala de desenho e pintura


Katy Rothkopf, curadora de Pintura e Escultura Europeia no Museu de Arte de Baltimore, apresenta a Cone Collection


domingo, 24 de abril de 2011







Matisse em Baltimore II - The Matisse Stories de A. S. Byatt


Na loja do Museu de Arte de Baltimore encontro a minha trouvaille, ou vice-versa: trata-se do livro de contos The Matisse Stories, de A. S. Byatt, conhecida como autora do romance Possession, vencedor do Booker Prize em 1990 e adaptado ao cinema em 2002. Escritas em 1993, as Matisse Stories são uma homenagem de A. S. Byatt a Matisse, o seu pintor preferido. Na capa, o enigmático quadro do pintor francês Le silence habité des maisons (1947). Os três contos, "Medusa's Ankle", "Artwork" e "The Chinese Lobster", dialogam com três desenhos de Matisse, respectivamente La chevelure (1932), L'artiste et le modèle reflétés dans le miroir (1937), Nymphe et faune (1932), e narram situações do quotidiano - uma professora universitária que vai ao cabeleireiro, um casal de artistas que contrata uma empregada que gosta de fazer malha, e dois professores universitários que discutem o futuro de uma aluna enquanto almoçam num restaurante chinês. Nestes quadros desenham-se tensões que virão a revelar situações insólitas e facetas inesperadas das personagens, desconhecidas até de si mesmas. Os dois primeiros contos partem da descrição de quadros de Matisse, o terceiro discute os próprios fundamentos da arte do pintor.

"Medusa's Ankle" abre com uma descrição do quadro Pink Nude (1935) de Matisse, no texto designado como "Rosy Nude". Susannah, a professora de Linguística que confia ao cabeleireiro, Lucian, a "desintegração" (Byatt, 7) da sua cabeleira de senhora de meia-idade, não só tem os tornozelos inchados, mas também o poder da Medusa, contido já em potência no monumental nu pintado por Matisse no final de uma longa sequência de variantes. Na senda do ensaio de Hélène Cixous sobre o riso de Medusa, Byatt transforma a personagem de Susannah, no final do conto, numa figura afirmativa, positiva e - poderosa (Kelly, 56).

Mais estrutural ainda é a relação do quadro Le silence habité des maisons com o conto "Artwork". O misterioso quadro de Matisse é descrito pela voz narrativa que nos introduz no espaço narrativo do conto: um interior que retrata uma mãe e filho debruçados sobre um livro, poisado sobre uma mesa onde há também uma jarra de flores. O insólito do quadro está no facto de as figuras não terem traços fisionómicos, e o livro desmesuradamente grande estar em branco, sem quaisquer caracteres impressos. Mais, todo o interior tem um fundo negro, no qual a custo se distingue o esboço a giz de um círculo em cima de uma haste - um totem? - por cima de uns tijolos. A janela, que ocupa o lado superior direito do quadro, abre para uma paisagem de folhagem e sol, que contrasta com o interior sombrio e estranho e apenas tem afinidade com a jarra de flores e o livro aberto. Interrogamo-nos com a voz que narra: "Quem é o totem que está de vigia por debaixo do tecto?"

O texto continua a descrever o silêncio da morada do casal de artistas, habitado por sons como o da máquina de lavar roupa e da TV ligada sem ninguém estar a ver. Nesta casa, numa subtil dança de espelhos entre as personagens, vai estar em jogo a criatividade de cada uma delas e no seu conjunto, e vai perspectivar-se uma discussão implícita sobre o conceito de "arte" na sociedade contemporânea (vd. gravura que antecede o conto, L'artiste et le modèle reflétés dans le miroir). Quem é o modelo de quem neste conto? Quem inspira quem, e quem é que estabelece novos padrões artísticos, e baseando-se em que valores? A dedicatória do livro sugere - na emoção: "For Peter, who taught me to look at things slowly - with love." Ver, complementado com sentir. Uma lição que não é de agora e me faz recordar, entre outros textos, a novela Tonio Kröger de Thomas Mann. Olhar as coisas para realmente as ver, significa para A. S. Byatt olhar com tempo, com vagar - na dedicatória parece equivaler a - com emoção. O conceito de obra / trabalho de arte como algo produzido em limites rigorosamente individuais aparece como que desfocado, desestabilizado neste conto, muito apropriadamente intitulado "Artwork".

"Artwork" usa-se em três acepções: de modo mais geral, "um objecto ou objectos produzidos por artistas"; mais especificamente, "desenhos, fotografias ou ilustrações incluídas num livro ou numa revista"; finalmente, na acepção que apenas encontrei num dos dicionários consultados, "trabalho de artes gráficas ou plásticas, especialmente pequenos objectos decorativos ou artísticos feitos à mão".



O conto de A. S. Byatt inclui descrições do "artwork" de três personagens: Robin, o marido, o artista mais tradicional, trabalha no andar superior da casa, transformado num estúdio de arte, com o melhor espaço e luz. Nos anos 1960, como o próprio texto diz, Robin era um neo-realista avant la lettre, numa época em que quase toda a pintura era abstracta. Pintava superfícies e objectos em cores neutras, mas nunca nada que tivesse vida. O texto resume a apreciação da arte de Robin: a dois passos do kitsch ("just this side of kitsch"). Debbie, sua mulher, trabalha como editora de design de uma revista significativamente - e em tom de provocação que dá que pensar - chamada A Woman's Place. É ela quem mantém a casa com um bom salário, permitindo a Robin pintar a tempo inteiro. Debbie teve, no entanto, de abandonar a sua própria arte, a xilogravura ("wood engravings") e em silêncio nutre sentimentos contraditórios pelo marido, sobretudo por ele nunca mencionar a arte dela, que assim vai ficando por realizar. Robin é egocêntrico, ocupado só consigo mesmo, sem interesse pelas questões relativas ao governo da casa ou à educação dos filhos (cf. Kelly, 57-59).



(a continuar)



Bibliografia:



  • Byatt, A. S., The Matisse Stories. NY: Vintage Books, 1996 (no texto como MS, traduções minhas)

  • Flam, Jack, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001

  • Gowing, Lawrence, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979

  • Kelly, K. C., A. S. Byatt. NY: Twayne Publishers, 1996 (no texto como Kelly)

Texto publicado na PNETLiteratura a 22 de Junho de 2009

domingo, 10 de abril de 2011

Matisse em Baltimore I - A Cone Collection









Sempre associei o texto de Herberto Helder sobre o pintor que tinha um aquário e lá dentro um peixe vermelho - com Matisse. O texto é de Retrato em movimento, de 1967, e conta a história do pintor e do peixe vermelho que se transforma em peixe amarelo, depois de passar por mutações negras, ensinando a lição da metamorfose. É que Matisse pintou variações do motivo do peixe vermelho (poisson d'or) em datas diferentes, de 1909 até 1921. No quadro Zorah sur la terrasse, de 1912, o aquário com peixes vermelhos parece estar fora do contexto mas, por ser um motivo recorrente na obra de Matisse e pela sua colocação no canto inferior direito do quadro, funciona como assinatura do pintor.


Hoje é da relação de Matisse com a literatura que gostaria de vos falar.


Desde o Romantismo que as artes estão interligadas e os artistas se inspiram e dialogam entre si, independentemente da forma de arte que praticam. O autor alemão E. T. A. Hoffmann, romântico tardio, publicou o seu primeiro livro em 1815, Peças de Fantasia à maneira de Callot, que logo no título mostra a influência e a ligação entre a música e a pintura. Na mesma época, o compositor Robert Schumann dialoga, por sua vez, com Hoffmann e Jean-Paul, quando compõe as peças Carnaval, op. 9 (1834) e Kreisleriana, op. 16 (1838). Os exemplos multiplicam-se, e a influência recíproca das artes entre si nunca mais deixou de se acentuar desde então. A intertextualidade é uma das características mais importantes da arte contemporânea - basta pensar nas adaptações cinematográficas de obras literárias, mas também em tudo aquilo em que o cinema influenciou a arte narrativa. No campo teórico, acentuou-se a importância da perspectiva comparatista, inter e transdisciplinar e intertextual.


Que me lembre, Matisse ilustrou as Poésies de Stéphane Mallarmé e as Cartas Portuguesas e publicou Jazz, com texto e gravuras suas (Jazz e Lettres Portugaises de Mariana Alcoforado foram tema de exposições na Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva em Lisboa em 1996 e 2004, respectivamente). Louis Aragon escreveu Henri Matisse, roman (1971), fruto do diálogo com Matisse durante 27 anos, de 1941 a 1968. Toda a obra de Matisse parece, além disso, ter partido, como o título do próprio quadro de 1904 indica, Luxe, calme et volupté, de versos do poema de Baudelaire "Invitation au voyage". Esse convite ao imaginário e ao sonho virá a transmitir na obra de Matisse toda a beleza da sua visão interior, muito longe, no entanto, do instinto de morte ligado á beleza que se encontra em Baudelaire. Na obra de Matisse é antes, tal como pode ler-se no catálogo da exposição permanente do Museu de Arte de Baltimore, a vida que se afirma em cores vibrantes, que "cantam", e padrões cheios de ritmo, que "dançam".

E a caminho de Baltimore, mais poderá surgir - vou pensando eu, dedicada seguidora daquilo a que os franceses chamam trouvailles, coisas que há muito procurávamos e que encontramos de repente, quando já não estávamos à espera, como por acaso. É nisto que vou pensando enquanto seguimos as indicações da auto-estrada 95, que liga a Flórida ao Canadá e nos leva de Washington, D.C., até Baltimore, em Maryland. O nosso destino é o Museu de Arte de Baltimore, onde desde 1957 existe a preciosa e prestigiada Cone Collection, a maior e mais importante colecção de obras de Matisse do mundo. A colecção é a jóia da coroa do BMA e inclui 500 obras de Matisse, entre as quais 42 óleos, 18 esculturas, 36 desenhos, 155 gravuras, 7 livros ilustrados, bem como 250 desenhos e gravuras do primeiro livro ilustrado por Matisse, Poésies de Stéphane Mallarmé. Algumas obras-primas da colecção são Mont Sainte-Victoire Seen from the Bibémus Quarry (c. 1897) de Cézanne, Vahine no te vi (Woman of the Mango, 1892) de Gauguin, Mother and Child (1922) de Picasso, e de Matisse os dois nus de 1907, Blue Nude, e de 1935, Large Reclining Nude, também conhecido como Pink Nude.

As coleccionadoras foram duas irmãs de Baltimore, Claribel e Etta Cone. Claribel (1864-1929), a mais velha, era médica e patologista, e Etta (1870-1949) era música amadora e tomava conta da casa. Claribel e Etta possuíam um rendimento anual generoso, proveniente da herança e dos bem-sucedidos negócios Cone, na área dos têxteis, que permitia às duas irmãs viajar e coleccionar obras de arte. Em finais dos anos 1890 travaram amizade com Gertrude Stein, que frequentava então a escola médica em Baltimore, na Universidade de Johns Hopkins. A família Stein encorajou as irmãs Cone a aprender mais sobre arte e estética, e apresentou em Paris Etta a Picasso em 1905, e a Matisse em 1906. Claribel e Etta mostraram uma intuição artística invulgar ao adquirir obras de rara qualidade de artistas inovadores, muito antes de serem reconhecidos e consagrados.

As duas irmãs apoiaram Matisse ao longo de mais de 40 anos. Desde a morte de Claribel em 1929, Etta aconselhava-se com o próprio Matisse para continuar a sua colecção de arte, e adquiriu óleos, esculturas, desenhos, gravuras e livros ilustrados, incluindo Interior with Dog (1934), Purple Rob with Anemones (1937), The Yellow Dress (1950). Como coleccionadora criteriosa que era, Etta quis dar um contexto histórico à sua colecção e comprou também obras de predecessores de Matisse no séc. XIX - Delacroix, Ingres, Corot, Degas, Cézanne, Toulouse-Lautrec, van Gogh e Gauguin. No testamento de Claribel estava estipulado que a colecção deveria ir para o Museu de Arte de Baltimore, se "o espírito de apreço pela arte moderna em Baltimore progredisse". Felizmente assim aconteceu, e a esplêndida Colecção Cone aí está para quem a quiser ver, atraindo a Baltimore visitantes interessados em ver a exuberante arte de Matisse.

(a continuar)

Bibliografia:



  • Louis Aragon, Henri Matisse - a novel. NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1971

  • Jack Flam, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001

  • Lawrence Gowing, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979

  • John Jacobus, Henri Matisse. NY: Abrams, 1973

Texto publicado na PNETLiteratura a 11 de Junho de 2009


Imagens: blogs.princeton.edu; christies.com; destination360.com;outandaboutnewspaper.com