quarta-feira, 26 de maio de 2010














A razão de um título - a propósito de Graça Pina de Morais


Queria escolher para este blogue um título que chamasse a atenção do leitor, em vez de algo muito clássico. Trabalho normalmente na área da literatura comparada, escrevi duas teses sobre Romantismo alemão e Surrealismo francês, escrevo também sobre a relação da literatura com as outras artes, nomeadamente com a pintura e com a música. Mas só muito recentemente, ao investigar para um ensaio que estou a terminar sobre a autora portuguesa Graça Pina de Morais, me apercebi da semelhança que tem a investigação científica com o trabalho detectivesco.

Há uns anos a esta parte, num dos meses de Agosto que passo em Portugal, procurava eu na livraria da Faculdade de Letras de Lisboa, enquanto esperava por colegas numa tarde cheia de sol, novidades para os meus cursos, quando dei com um livro de capas cor de laranja. Era um conto de Graça Pina de Morais, intitulado A mulher do chapéu de palha, escrito em 1986, durante umas férias da autora no Rio de Janeiro. Conhecia e admirava profundamente esta romancista, de que lera os admiráveis romances A Origem e Jerónimo e Eulália, e o volume de contos O pobre de Santiago. Li logo o livro, e descobri surpreendida que o texto era uma reescrita da parábola de Kafka Eine kaiserliche Botschaft, Uma mensagem imperial, publicada em 1919 na colectânea de contos Beim Bau der chinesischen Mauer. Tinha terminado nessa altura um outro ensaio sobre o conto de Borges Parabola del Palácio, em que analisava a relação desse texto de Borges com Uma mensagem imperial de Kafka. A narradora do conto de Graça Pina de Morais interrogava-se sobre o sentido da sua vida numa tarde de nortada na Foz do Douro, e imaginava-se como mensageira que tinha como missão levar uma carta de transcendente importância a uma personagem poderosa.

Mais tarde, novamente no estrangeiro, dedicando algum do meu tempo livre ao ensaio sobre Graça Pina de Morais, encontrei por acaso na internet um depoimento da escritora, publicado no livro de Manuel Poppe Memórias, José Régio e Outros Escritores. Esse depoimento fazia parte de uma entrevista televisiva para o programa de Manuel Poppe O livro à procura do leitor, mas a RTP não chegou nunca a transmitir essa entrevista. Li, deliciada, esta voz ainda mais próxima da autobiografia da autora, até chegar a uma descoberta relacionada com a minha investigação: Graça tinha lido na adolescência o romance de Jules Verne Miguel Strogoff, de 1876. Diz ela: "Esse destemido correio do Czar que leva uma carta através de perigos incomensuráveis encheu-me a imaginação e muitas vezes disse à minha irmã 'eu sou Miguel Strogoff, o correio do Czar'. Como ele era destemida e amava já profundamente a aventura."

Sendo assim, a intertextualidade primordial de A mulher do chapéu de palha era provavelmente outra, não uma reescrita de Kafka, mas sim de Jules Verne. Mas mais ainda, a própria parábola de Kafka, escrita em 1919, poderia muito bem ter sido escrita em diálogo com o correio do Czar de Jules Verne, entre outros textos.

Desenvolverei oportunamente o tema do ensaio sobre Graça Pina de Morais, mas a propósito deste pequeno episódio lembrei-me de quanto o trabalho de investigação, seja em que área for, se assemelha em muita coisa ao trabalho de um detective. Também nós seguimos pistas e indícios, analisamos vestígios, procuramos provas, investigamos, também nós descobrimos, nos enganamos, corrigimos raciocínios e conclusões, nos guiamos por ideias, teorias, teses, sínteses... voltamos atrás, seguimos personagens, a nossa intuição... se alguém se nos antecipa em alguma coisa, isso é sinal de que estamos na pista certa...

Alguém se lembra de mais semelhanças?

E assim me lembrei deste título para o blogue, em que será um gosto partilhar informalmente com o leitor pequenas notas críticas, comentários e reflexões sobre literatura e arte.
Para ler o ensaio de Ana Maria Delgado sobre "Polifonia em 'Parabola del Palácio' de Jorge Luis Borges", vd:

segunda-feira, 24 de maio de 2010





A imagem



A imagem, antes de mais nada. Antes mesmo de explicar o título do presente blogue, queria deter-me na fotografia de Luis Mariano Gonzáles, uma imagem tão bela, que dispensaria comentários, sendo mais apropriado talvez o silêncio face a ela, como modo de comunicação e comunhão com todo o universo que evoca. Quando outro dia procurava uma imagem para "ilustrar" a ideia de "Margem", encontrei a belíssima fotografia a preto e branco de Luis Mariano Gonzáles, "A equilibrista". Este fotógrafo espanhol, cuja obra pode ver-se, p. ex., em Flickr.com, tem uma série de fotografias de Noa, a sua filha, suponho, de um lirismo tocante acompanhado por uma rara qualidade técnica. Quando penso agora um texto, visualizo-o acompanhado pelas para mim já imprescindíveis fotografias de Luis Mariano Gonzáles.

Pensando bem, "Perdida en el país de las maravillas" dá-nos a ver o que Noa - talvez mais crescida - vê à sua frente ao caminhar sobre o muro, mas como que desfocado, flou, ao passo que em "La equilibrista" a víamos de frente e com uma enorme nitidez. O que Noa descobre (e nós com ela) é o próprio movimento, a própria energia, como iniciação na difícil arte de viver - um constante equilíbrio com o sentido de direcção, de caminho, e de altura. Ela dança em cima do muro, mais do que caminha, pela dificuldade do caminho em si, um muro estreito. O efeito etéreo da fotografia deve-se sobretudo (talvez mais ainda do que ao flou da imagem) a esta dança que é o caminhar de Noa um pouco acima do chão.

Decidir fazer um curso de fotografia para criar eu própria imagens para os meus textos é certamente uma boa decisão, mas quando conseguiria uma pequena parte da qualidade de Luis Mariano Gonzáles?

A imagem, ainda. "Perdida no país das maravilhas" chamou-lhe o seu autor, e com razão. Não é só Noa que está "perdida" no mundo da sua infância, também o espectador se perde na maravilha que é esta imagem, olha e torna a olhar sem se cansar, porque a imagem é de uma beleza "intoxicante". É também de uma beleza vertiginosa, pois nos faz mergulhar directamente numa emoção estética de intensidade e velocidade. Luis Mariano Gonzáles conseguiu criar uma Alice-Noa de vestido branco que, pelo fundo azulado da fotografia, continua a ser ainda o vestido azul com que sempre a imaginamos.

Quanto a tê-la escolhido para um blogue sobre literatura e arte, a ligação pareceria óbvia: Lewis Carroll e a sua eterna Alice, o mundo da fantasia e da ficção que evoca sempre e, através dela, os livros. Estar perdida no mundo dos livros, como isso pode saber bem! Mas é mais ainda do que o mundo dos livros, muito mais, pois não houve um único dia neste planeta azul e mesmo nos dias mais difíceis, em que não me tenha sentido perdida ou lançada num imenso mistério de que sou parte integrante mas que não compreendo totalmente... é então a nossa condição humana, e não só a minha condição de comparatista, de alguém que trabalha na área da literatura comparada, que está em jogo quando contemplo esta foto - e de certo modo contemplo-a agora sempre na minha memória, pois passou a fazer parte da minha vida - talvez seja esta a melhor homenagem que posso prestar ao seu autor.