segunda-feira, 1 de outubro de 2012






(...)

É uma natureza-morta invulgar, com um invulgar fundo negro e um conjunto invulgar de objectos, um jarro de água e outro de vinho, um copo meio-cheio, uma pauta de música, dois cachimbos e uma brida com correntes, como se usavam para domar cavalos especialmente nervosos. Herbert interpreta a composição como uma alegoria da moderação, da temperança e do equilíbrio:

 

In ethical categories Torrentius’s “Still Life” is not at all an allegory of Vanitas if my suppositions are correct, but an allegory of one of the cardinal virtues called Moderation, Temperantia, Sophrosyne. This interpretation is suggested by the represented objects: a bridle, the reins of the passions, vessels that give shape to formless liquids, and also the tumbler only half-filled as if recalling the praiseworthy custom of the Greeks of mixing wine with water.” [1]

 

Há ainda uma inscrição em pauta de música, escrita em holandês, que diz: “What exists beyond measure (order) / in over-measure (disorder) will meet a bad end.” Herbert observa, com razão, que esta interpretação do quadro contradiz a vida do pintor: “A painter with such a scandalous life could not be an apologist of restraint.”[2]

       No final do ensaio, Herbert duvida que tenha conseguido decifrar o homem incompreensível, o pintor enigmático: “I did not manage to break the code” [3]. O pintor / narrador interroga-se também sobre o significado do quadro: “Natureza-Morta com Brida, o seu único quadro conhecido ou sobrevivo, provável alegoria da temperança, da áurea mediocridade e do domínio sobre os instintos – tudo o que lhe terá faltado em vida – está em Amesterdão no Rijksmuseum.” (p. 58) [4].  Receio que sejamos induzidos em erro ao ler o texto da inscrição da pauta de música como a “mensagem” do pintor – esta inscrição parece na verdade uma apologia da temperança, mas creio que o texto do pintor deve ler-se no todo da composição.

       Vanitas encena oposições, algumas delas centrais no pensamento ocidental: clássico / barroco, Apolíneo / Dionisíaco, claro / escuro, frio / quente, vida / morte. Estas oposições binárias culminam na oposição, proposta pelo fantasma, entre “natureza viva” e “natureza-morta” (género em pintura). “Natureza viva” parece uma repetição inútil, enquanto “natureza-morta” parece conter um paradoxo. A designação “natureza-morta”, “still life”, terá surgido em meados do séc. XVII na Holanda, como contrário de vrouwenleven, um modelo feminino que precisava de se mexer durante a pose, enquanto  stilleven – frutos, flores, etc – designava um modelo que permanecia quieto[5]. A expressão em língua portuguesa, natureza-morta, contém um oxímoron, já que a natureza como sucessão de vida e morte é um processo de vida infinito. O título do quadro de Torrentius, Natureza-Morta com Brida, é um título enigmático e incomum, por isso será legítimo questioná-lo para além da sua lógica normal: é um título paradoxal, pois se a natureza é ou está morta não precisa de brida, e a brida por seu lado aponta para uma natureza que é, por natureza, viva, ou não precisaria de brida. A brida é o freio que permite ao cavaleiro manobrar o cavalo, guiando-o através da boca, em conjunto com as rédeas, refreando-o se for demasiado depressa. O que não está no quadro,  mas sobressai ao ser sugerido pela falta de cor do fundo profundamente negro e pelo poderoso símbolo de repressão da brida, é não só o cavalo, mas o prado verde, a velocidade do cavalo e a beleza de um ser selvagem, indomado, livre [6].

        Há uma semelhança entre Torrentius e o pintor / narrador, como o próprio explica:

 

pintor enigmático e clandestino que me faria companhia nesta mansão onde vou expor As Lágrimas de Eros, que não imaginei num ambiente tão solene. Quando me convidaram a apresentar toda a série e acentuaram a palavra toda, aceitei sem hesitar porque me apetecia vir a Paris e passar alguns dias no Louvre. (...) Agora movia-me também o desafio do contraste entre os meus desenhos escandalosos, nunca expostos, e a sóbria seriedade do vestíbulo do pequeno olimpo da avenue d’Iéna (p. 32-3).

 

Os quadros de As Lágrimas de Eros são então escandalosos, excessivos – como escrevia J. C. a Marta no Cavaleiro Andante, “só o excesso me interessa” [7].

       As Lágrimas de Eros é o título do último livro de Georges Bataille, de 1961, que esteve proibido pela censura em França. É com certeza uma homenagem de Almeida Faria a Bataille, segundo o próprio autor [8].  É difícil evitar a comparação do pintor / narrador de Vanitas com Mário Botas, quer pela ocasião que levou o escritor a Paris, Avenue d’Iéna, quer pelo conteúdo da exposição As Lágrimas de Eros, a que o fantasma se refere como “esses seus mistérios da morte e de Diónisos” (p. 50). Na Entrevista em Georgetown, Almeida Faria refere-se ao seu trabalho mais recente:

 

fascina-me mais uma ficção em que a invenção ou o onírico tenha um papel importante. É o que estou a fazer mais recentemente, também sobre desenhos do Mário Botas, desta vez desenhos altamente eróticos, que ele me pediu para guardar porque eram bastante chocantes até para os próprios pais do pintor e ele quis que eu os guardasse, que ficasse com eles e escrevesse a partir deles, se isso me interessasse. Para mim interessa-me, porque os desenhos dele são da natureza dos sonhos, de resto já  Shakespeare dizia que somos feitos da natureza de que os sonhos são feitos.

 

Penso que o escritor se refere ao romance O Conquistador, que se seguiu aos Passeios do Sonhador Solitário, e que glosa sete desenhos de Mário Botas. Nada mais natural do que Vanitas retomar essa recordação, mesmo que tal não seja muito do domínio consciente do autor. A liberdade de expressão é uma preocupação dos escritores que ainda escreveram num regime dominado pela censura, e a “literatura de transgressão” certamente um sinónimo dessa liberdade.

       Susan Sontag, ao escrever sobre o tema da pornografia, diz que tem origem numa sociedade hipócrita e repressiva, que precisa de uma efusão de pornografia como a um tempo sua expressão lógica e seu antídoto, e entende a pornografia como fazendo parte de uma crise da imaginação contemporânea, desde finais do séc. XVIII já não exclusivamente religiosa [9]. Para Sontag, a poesia de transgressão é também conhecimento, parte da consciência humana: “He who transgresses not only breaks a rule. He goes somewhere that the others are not; and he knows something the others don’t know.” [10] Não é a pornografia em si que é perigosa: “all forms of serious art and knowledge – in other words, all forms of truth – are suspect and dangerous” [11], e o artista é um explorador de limites: “a freelance explorer of spiritual dangers” [12]. A sua função não é só, como tradicionalmente, edificar e divertir, mas também fascinar e cativar: “His principal means of fascinating is to advance one step further in the dialectic of outrage.” [13] Em conclusão, Sontag não faz, obviamente, uma defesa da pornografia em si, mas propõe uma melhor compreensão de uma arte que possa conter elementos semelhantes à pornografia, incluindo, como argumenta: “the whole body of contemporary literature insistently focused on extreme situations and behaviour.” [14].  A literatura contemporânea inclui zonas de escrita estruturalmente semelhantes ao registo pornográfico, mas não podemos excluir esse registo do que é humano. O que está em causa é “an infinitely varied register of forms and tonalities for transposing the human voice into prose narrative” [15], bem como “the complexities of consciousness itself.”

       Talvez o conto Vanitas, na sua procura da justa medida, do equilíbrio, acabe por funcionar como repressão de um outro texto, mesmo sem sabermos qual. O quadro de Torrentius seria uma verdadeira mise-en-abîme de Vanitas, de certo modo também uma natureza-morta com brida. A brida é a rigorosa moldura lógica dentro da qual está contido o texto como numa narrativa credível e verosímil: a mesma contenção narrativa do ensaio de Poe, para quem escrever é, como vimos, um exercício de precisão e cálculo quase matemático. Vanitas parodia estes processos, imitando-os ou executando-os aparentemente, mas com uma ironia soberana e grande prazer de narrar, apontando para além desses processos, para problemas de expressão e de liberdade na literatura e na arte [16]. E porque devemos seguir o texto mais do que o autor / narrador, como se, de certo modo, o texto o soubesse melhor do que ele ao texto, muito nesta Vanitas aponta para fora da brida, da suposta justa medida: a ironia, a construção do texto que questiona a própria desconstrução, tomando como referência central o período barroco, cuja mundivisão não pode compreender-se sem algumas das oposições binárias cuja suposta “hierarquia violenta” a desconstrução quer eliminar. É também assim que este belo texto pode tratar o tema de “vanitas”, tradicionalmente ligado à transitoriedade e à morte, sem estar ele mesmo sob o signo de Saturno e da melancolia – aqui reina outra lógica, a do sonho e da imaginação, e talvez seja essa a sua medida própria [17]. O que interessa a Almeida Faria é a reflexão metaficcional, a relação entre forma e conteúdo, primeiro como relação entre o palácio do nº 51 da avenida de Iena e a colecção de quadros da pinacoteca de Calouste Gulbenkian, e depois como adequação entre esse mesmo espaço e a exposição As Lágrimas de Eros.

       O ensaio de Poe sistematiza critérios rigorosos para a criação do belo, que resultam exteriores, artificiais, forçados. O belo ideal, para Poe, nega a morte, anula-a, pretende ultrapassá-la através da beleza, território privilegiado da imortalidade e transcendência. Vanitas distancia-se - colocando en-abîme o quadro Natureza-Morta com Brida - deste conceito de beleza e de criação, contrapondo ao modelo de Poe uma experiência viva que, para melhor compreendermos, está ausente do quadro – o seu fundo negro significa isso mesmo, ausência de cor – num outro universo, numa outra dimensão, num outro registo, sem limitação (sem brida). O contexto no qual em Vanitas aparece o quadro  de Torrentius, Natureza-Morta com Brida, faz-nos entendê-lo, este sim, como as verdadeiras lágrimas do criador – do artista – sobre uma beleza / natureza que se sente ser impossível e mesmo tornar-se inatingível se privada da sua liberdade e sujeita a regras, limites, critérios de exterioridade [18]. Como diz Susan Stewart, “In contrast to (the) model body, the body of lived experience is subject to change, transformation, and most importantly, death”[19].  É assim que a aceitação da morte resulta, de algum modo, na sua superação – a transformação permanente da natureza, com os seus ciclos de vida e morte, que é em última análise um processo de vida.

       O texto termina calma e despreocupadamente num tom de boa disposição com a recordação de um “jongleur de boulevard” que, em vez de estar quieto como as naturezas-mortas e outros artistas de rua, é um explorador, um funâmbulo. Este breve flashback narrativo faz terminar o conto regressando ao momento com que começara a narrativa, quando o narrador revê, antes de adormecer, o que fizera durante o dia,  dando deste modo ao texto uma circularidade perfeita.

 
Ana Maria Delgado (Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

Ler o texto completo aqui


Imagem: Jan Simonsz van de Beeck (Torrentius), Natureza-Morta com Brida, Rijksmuseum, Amesterdão



[1] Id. ibid., p. 101.
[2] Id. ibid., p. 105.
[3] Id. ibid., p. 106.
[4] Das várias versões do mito de Eros, salientaria as de Platão, em O Banquete e Fedro. Neste último diálogo, o homem tocado pelo amor – Eros – é comparado ao condutor de um carro puxado por dois cavalos, um representando o equilíbrio e o outro o excesso. É um longo passo do qual destaco apenas o seguinte: “And now they are close to the beloved, and they see the beloved’s face, flashing like lightning. As the charioteer sees it, his memory is carried back to the nature of beauty and again sees it standing together with self-control on a holy pedestal; at the sight it becomes frightened, and in sudden reverence falls on its back, and is forced at the same time to pull back the reins so violently as to bring both horses down on their haunches, the one willingly, because of its lack of resistence to him, but the horse of excess much against its will.” Cf. Plato, Phaedrus.  London: Penguin, 2005, p. 35.
[5] Cf. Guy Davenport, Objects on a Table. Harmonious Disarray in Art and Literature. Washington, D. C.: Counterpoint, 1998, p. 3-4.
[6] Por alguma razão este quadro me sugere os versos de Lorca do “Romance Somnámbulo”: “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas. / El barco sobre la mar / y el caballo en la montaña”, e a frase surrealista que caracteriza o sonho como “chose de vitesse”; algumas belas páginas de Clarice Lispector no final de Perto do coração selvagem e em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: “Existe um ser que mora dentro de mim como se fôsse casa dêle, e é. Trata-se de um cavalo prêto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo (...)”; ainda o soneto barroco de Frei António das Chagas Ao cavalo do Conde de Sabugal, que fazia grandes curvetas, em que os movimentos do cavalo são comparados à música. Não se trata nestes exemplos de intertextualidades com Vanitas – 51, avenue d’Iéna, mas sim de associações e paralelismos com textos e autores que usam um simbolismo semelhante ao do quadro de Torrentius.
[7] Almeida Faria, Cavaleiro Andante, Lisboa: INCM, 1983, p. 199.
[8] A expressão encontra-se ainda num artigo de Eduardo Lourenço intitulado “Eros e Eça”, in: O Canto do Signo. Existência e Literatura (1957-1993). Lisboa: Ed. Presença, 1994, p. 251: “O mais erótico dos nossos autores é o único que entreviu entre os esplendores, os sortilégios, os êxtases, as felicidades sensíveis de que o Destino se reveste, a dor, a angústia, a tristeza, a miséria, em suma, o oceano não menos inesgotável que o da sensualidade e sua ofuscação, o das lágrimas d´Eros.”
[9] Cf. Susan Sontag, “The Pornographic Imagination”, in: op. cit., p. 205-233.
[10] Id. ibid., p. 232.
[11] Id. ibid., p. 233.
[12] Id. ibid., p. 212.
[13] Id. ibid.
[14] Id. ibid., p. 209.
[15] Id. ibid.
[16] O problema da obscenidade em literatura está exemplarmente tratado, a meu ver, por Marguerite Yourcenar no Prefácio a Alexis ou le traité du vain combat, que narra o caso de um homosexual numa época na qual não era ainda moda escrever sobre homosexualidade. Yourcenar diz que este problema da liberdade sensual é um problema de expressão, embora se distancie do uso de linguagem obscena, por incapacidade inovadora: “L’obscénité (...) est une technique de choc défendable s’il s’agit de forcer un public prude ou blasé à regarder en face ce qu’il ne veut pas voir, ou ce que par excès d’habitude il ne voit plus.” (p. 13-14) Mas esta solução brutal continua a ser exterior: “La brutalité du langage trompe sur la banalité de la pensée et (...) reste facilement compatible avec un certain conformisme.” (p. 14) Também para Marguerite Yourcenar é uma questão de voz e de registo: “Comme tout récit écrit à la première personne, Alexis est un portrait d’une voix (...) Il fallait laisser à cette voix son propre registre, son propre timbre” (p. 15). Cf. Marguerite Yourcenar, Alexis. Le Coup de Grâce. Paris: Gallimard, 1971 (1ª edição de Alexis 1929).
[17] Recordo sempre a propósito desta noção o poema de Emily Dickinson: “I aimed my Pebble - but Myself / Was all the one that fell - / Was it Goliah – was too large - / Or was myself - too small?”
[18] De certo modo, é a luta do criador pela forma, que implica quase sempre uma violência em relação ao assunto, tema ou objecto tratado. É Yourcenar, em minha opinião, quem melhor resume este dilema em O tempo, esse grande escultor: “Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.”
[19] Cf. Susan Stewart, On Longing. Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Durham and London: Duke University Press, 21993 (1ª ed. 1984), p. 133.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012







A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria
 
 
(...)

O coleccionador opõe-se ao pintor / narrador. Interessou-o perseguir e adquirir, comprar obras de arte, quadros de figuras femininas como um conquistador as suas conquistas – é longa a lista de quadros de figuras femininas exibidas como troféus, todas elas expressão da vaidade do coleccionador [1] : “A partir de dada altura a minha aventura foi a luta pela conquista e pela posse de certas obras, umas a preço de loucura, outras à custa de paciência, persistência e alguma astúcia, outras impossíveis de conseguir.” (p. 20). O fantasma trata a colecção de quadros como mulheres num harém:


Coleccionar é ser sultão não de pessoas mas de coisas. É buscar uma harmonia entre as coisas de que nos sentimos protectores, ainda que elas nos sobrevivam. De cada vez que comprei uma peça, concedi-lhe um período de adaptação para perceber se ela e eu nos pertencíamos. Cheguei a levar este noivado a extremos inimagináveis.(p. 45)

 
Mas ao mesmo tempo trata os quadros, que para o artista eram expressão viva, como meros objectos que ele persegue no intuito de coleccionar. O texto é muito irónico, quando o coleccionador diz  preferir às naturezas-mortas as naturezas vivas, à maneira de todo o bom conquistador. Recorda-nos aqui outro mediterrânico, em The Merchant of Venice, Shylock, que confunde a filha e o dinheiro, chorando ao mesmo nível a fuga da filha e a perda dos ducados.

        O ponto alto da ironia que envolve a personagem do fantasma é a interpretação romantizada que faz do quadro de Fantin-Latour A Leitura:


Não me importaria de ter sempre por perto as duas irmãs nele retratadas (...) Uma era a noiva do pintor, a outra ficou por casar. Adivinha qual é qual? (...) A leitora é a noiva, Victoria; a loura e futura cunhada é Charlotte. Eu teria escolhido a preterida; Fantin, pelo contrário, casou com a outra, pintora amadora, frequentadora do Louvre, amiga de artistas e recém-retratada por Degas, apesar de, quanto a mim, ele adorar Charlotte, como o prova a quantidade de vezes que a retratou. Talvez o sentimento fosse recíproco, embora seja difícil decidir pela altivez e o olhar da bela solitária. (15-16)

 
O fantasma de Calouste Gulbenkian fantasia a relação entre o pintor e a cunhada Charlotte Dubourg, insinuando existir entre os dois uma ligação sentimental. Num artigo sobre Victoria Dubourg [2], Elizabeth Kane percorre as naturezas-mortas da pintora, que fez – tal como o marido – um retrato da irmã Charlotte, do mesmo ano, 1870. Kane refuta com argumentos vários a tese de Michael Hoog, co-autor do catálogo definitivo de Fantin-Latour de 1983, principal defensor da existência de uma “complicité muette” entre Fantin e a cunhada. Não será necessário reproduzir os argumentos da ensaísta, já que a vida do pintor aponta para uma direcção diversa da sugerida por Hoog: Fantin-Latour terá seguido critérios bem diferentes na escolha da noiva [3].

       Regressando à constelação de personagens de Vanitas, à história de posse e controle figurada no fantasma do coleccionador – que também por isso é uma figura ilusória, fantasmática – e em Poe, opõem-se com nitidez figuras de criadores e artistas, o próprio pintor / narrador, o poeta Saint-John Perse e Simonsz van der Beeck, ou Torrentius. O pintor diz, escutando o fantasma e respondendo no seu íntimo à pergunta “Acha que exagero se lhe disser que os objectos vivem na alma do coleccionador, tal como a alma do coleccionador permanece viva nos seus objectos?” (p. 47-8):


Cheio de má consciência dei comigo a pensar que nem sequer me lembrava do paradeiro de muitos dos meus quadros, que se separam de mim mal os termino e vão sem cerimónia à sua vida, como se nunca me tivessem pertencido. Não me pertencem, realmente, mas duvido que isto diga respeito a alguém.” (p. 48)

 
Não dialogam, não se estabelece entre os dois comunicação, pois representam princípios e perspectivas antagónicas. O aspecto de recepção contido na frase do pintor / narrador corresponde às teorias do texto do séc. XX, que consideram a obra como aberta à recepção do leitor, portanto livre, viva no momento da escrita e no momento da leitura. O coleccionador auto-exclui-se deste processo, pois está interessado em comprar, adquirir, ordenar, possuir, em resumo, em coleccionar obras de arte. Coleccionar opõe-se neste conto claramente a criar. Para o artista, cada obra é única, singular, reflexão narcísica do seu autor, mas produzida também a pensar no seu efeito no leitor. Para o coleccionador, é projecção narcísica pura. “Colligere” é escolher e juntar, mas falta-lhe o elemento da comunicação: “Cette totalisation par les objets porte toujours la marque de la solitude: elle manque à la communication, et la communication lui manque” [4].

       O pintor Jan Simonsz van der Beeck é referido a primeira vez em Vanitas quando o pintor / narrador se surpreende por o fantasma ler os seus pensamentos:


Só um espírito saberia o que eu fizera antes de adormecer! Lia, com efeito, algumas páginas de Zbigniev Herbert sobre Jan Simonsz van der Beeck, que se autocaracterizou assinando Torrentius e foi admirado no seu tempo como mestre da mais perfeita imitação da vida sensível, esquecido depois durante três séculos e recentemente redescoberto.” (p. 31)

 
No ensaio que dá o título ao livro de Herbert [5], o mesmo do quadro do pintor, Natureza-Morta com Brida, o autor explica que o “nom de guerre” de van der Beeck, Torrentius,  vem do latim torrens que significa a um tempo tórrido e torrente. Este quadro existe no texto de Vanitas no mundo do monólogo interior do pintor / narrador, e não na colecção do fantasma, escapando assim à enumeração. Natureza-Morta com Brida, tal como a exposição As Lágrimas de Eros – esta, naturalmente, por imaginária, ficcional - está ausente do espaço directamente visual do conto, não faz parte dos quadros reproduzidos na segunda edição e tem, não obstante, uma importância central na narrativa.

(...)
 

(a continuar neste blogue)
 

Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

Ler o texto completo aqui

 

Imagem: Fantin-Latour, A Leitura - Museu Calouste Gulbenkian


[1] Coleccionar é sempre uma actividade narcisista, e cada objecto coleccionado retrata, de certo modo, o coleccionador. Cf. a este respeito  Jean Baudrillard, Le système des objets. Paris:Gallimard, 1968, p. 128.
[2] Cf. Elizabeth Kane, “Victoria Dubourg: The Other Fantin-Latour”. In: Woman’s Art Journal, vol. 9, nº 2 (Autumn, 1988 – Winter, 1989), pp. 15-21.
[3] Seria, aliás, curioso recordar neste contexto o critério estipulado em The Merchant of Venice pelo pai de Portia para selecção dos candidatos à mão da filha, resumido na “sentença” ditada pelo último cofre, acompanhada do retrato de Portia, o cofre de chumbo, escolhido por Bassanio: “You that choose not by the view / Chance as fair, and choose as true”. A distinção entre “ser” e “parecer” está, de resto, na base da mundivisão barroca e percorre toda a obra de Shakespeare.
[4] Jean Baudrillard, op. cit.,  p. 150.
[5] Zbigniev Herbert, Still Life with a Bridle, Essays and Apocryphus. Hopewell, NJ: The Ecco Press, 1991.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

 
 
 
 
 
A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria
 
 
(...)
 
Para analisar o conto fazendo jus a este seu traço fundamental, partiremos de um outro texto de Poe de que já falámos, “The Philosophy of Composition”, de 1846. Neste ensaio, Poe revisita o seu poema “The Raven” e tenta explicar como chegou à sua composição. Trata-se de uma análise minuciosa, quase matemática, da génese do poema, transformando-o em caso exemplar de uma estética de efeito, extremamente construído e artificial [1]. Poe refere que a maior parte dos poetas preferem omitir o processo de composição e dar a entender que compõem “by a species of fine frenzy – as ecstatic intuition” [2], nisto residindo a sua vaidade autorial: “the autorial vanity has had more to do with the omission than any one other cause”[3]. Poe incorre na vaidade autorial contrária, descrevendo o processo criativo de “The Raven” e como “the work proceeded, step by step, to its completion with the precise and rigid consequence of a mathematical problem.” [4]
 
       A primeira consideração de Poe diz respeito à extensão, de que depende a unidade ou totalidade de impressão ou de efeito do poema. A brevidade terá como efeito a desejada intensidade, a excitação e elevação da alma. A segunda consideração diz respeito ao tema: a beleza é eleita como a única legítima província do poema, já que o prazer mais intenso e que eleva mais a alma provém da contemplação do belo. Para Poe, a beleza não é uma qualidade, mas um efeito – a pura e intensa elevação não do intelecto ou do coração, mas da alma. A terceira consideração diz respeito ao tom do poema: aquele que mais convém à beleza é a tristeza, e a melancolia é o mais legítimo dos tons poéticos. O mais melancólico dos assuntos é a morte, e nada mais poético que a morte de uma mulher bela, cantada pelo amante que sofreu a perda.
 
       Vanitas parece corresponder aos preceitos de Poe: é um texto curto e que prima pela contenção, rigorosamente construído na sua composição, como veremos. Não só o autor seguiu o ensaio de Poe, mas o conto parece glosar aspectos do poema “The Raven”, que é uma balada: o começo abrupto no meio da acção, a mistura dos géneros, o encontro fatídico aqui transformado na aparição do fantasma, envolvido numa moldura de quotidiano, como nas baladas modernas. A exigência da beleza como província do poema cumpre-se também: a escolha da pintura como tema adequa-se à representação da beleza exterior, física, ou para parodiar Poe, ou porque afinal o tema do conto é a vaidade, “vanitas”. Quanto à terceira exigência, a do tom, torna-se mais claro o tom irónico do conto de Almeida Faria – a alusão à perda da mulher amada, quer em “The Raven”, quer em outros textos de Poe como “Lenore”, “Ulalume”, “Ligeia” – aparece no título da exposição do pintor / narrador, “As Lágrimas de Eros”, talvez uma alusão à história de Eros e Psique (Eros perde repetidas vezes Psique antes de a recuperar). A ironia continua na maneira possessiva como o fantasma se refere à sua galeria de quadros de figuras femininas como se de mulheres vivas se tratasse.
 
       O lugar deve, segundo Poe, circunscrever o espaço como a moldura a um quadro: “a close circumscription of space is absolutely necessary to the effect (...) – it has the force of a frame to a picture” [5]. Vanitas segue à risca esta determinação, encenando todo o acontecer, o encontro do pintor / narrador com o fantasma, recordação de quando “o real descarrilara” (p. 56), na casa-palácio da Avenue d’Iéna.
 
       Quanto ao tom, Vanitas é um texto sobre a transitoriedade, mas sem verdadeira melancolia nem nostalgia. Os vivos estão contentes com a sua condição humana, o fantasma está igualmente satisfeito com o seu estado e nem sequer quer recomeçar a cadeia de renascimentos. Há uma grande ironia em relação à exigência do tom melancólico proposto por Poe: não há figuras femininas, só quadros de figuras femininas, que ocupam a vida do fantasma de modo aparentemente mais intenso, segundo ele próprio diz, do que as figuras reais do seu universo familiar. Não há luto, sentimento de perda ou desinvestimento no ego – fala da vaidade alguém que se situa não do lado da perda (luto) ou da depressão (melancolia). A vanitas (o que é vão, transitório) não se encontra neste conto sob o signo melancólico de Saturno [6]. Este texto parece antes retomar a tradição do conto fantástico, alemão ou vitoriano, ao colocar o monólogo do fantasma numa moldura credível, atribuindo o seu aparecimento a uma causa plausível, a um filtro contido na comida, ou à influência da leitura do livro de ensaios de Herbert [7]. A ideia de luto e melancolia, resultantes no ensaio de Poe da perda da mulher amada, é parodiada na figura do coleccionador transformado em fantasma – continua ligado aos quadros, às aquisições, como se de pessoas se tratasse [8].
 
       As personagens de Vanitas parecem ser um recurso de composição [9]. O fantasma do coleccionador Calouste Gulbenkian e o pintor sem nome que é o narrador do conto são as duas personagens desta ficção, na qual aquilo que acontece é, em termos de acção exterior, o aparecimento do fantasma. Mas há ainda a nível da reflexão metaficcional o implícito Poe, o pintor holandês Jan Simonsz van der Beeck, autodenominado Torrentius, e o poeta Saint-John Perse. Todos eles são uma espécie de duplos do autor, representando aspectos estruturantes da criação poética em conflito ou em acção entre si. Curiosamente, todos são inspirados em figuras que existiram na realidade, à excepção do pintor que narra – mas esse, naturalmente, está mais próximo do autor. O que estas personagens têm de curioso é que funcionam em constelação, reforçando-se ou contradizendo-se, iluminando-se reciprocamente e ilustrando o tema metaficcional do conto, a procura do tom justo na arte, seja ela a pintura ou a literatura. A reflexão de Poe sobre a composição encontra um paralelo na filosofia prática do coleccionador – a reflexão sobre o coleccionar faz parte da reflexão sobre Poe, equivalendo o desejo de ter e possuir do coleccionador à vontade de composição como domínio e controle no ensaio de Poe. No outro extremo temos Saint-John Perse e Torrentius, representando a predominância do conteúdo sobre a forma. O fantasma diz dos versos de Saint-John Perse: “Nem são bem versos, são versículos em tom oracular, de fôlego oceânico, de uma eloquência quente, comovente, frases como vagas demoradas” (p. 34-35).  Saint-John Perse está mais do lado da natureza, das coisas concretas, dos sentidos - representa uma liberdade e uma fluência na criação artística que faz recordar o primeiro romance de Almeida Faria, Rumor Branco, que segundo o próprio escritor diz “foi escrito de um jacto, sem correcções” [10].
 
     É impossível não recordar um passo de Cavaleiro Andante em que se define deste modo a oposição entre clássico e barroco:
 
ou barroco até ao delírio, ou o mais clássico possível, nisto e no resto não gosto de purgatórios nem de sensatos meios termos. Os barrocos são mais estimulantes, a invenção verbal, o desmesurado discurso, quanto mais imprevisíveis, mais parecidos com a infinita variedade da vida. Os clássicos serão admiráveis mas não me inspiram, talvez por perfeitos em demasia; não tento sequer ser como eles, não sou da sua linha: toda a grandeza deles se situa no culto de medida, num certo menosprezo dos vocábulos isolados, sempre postos ao serviço do comum equilíbrio, do conjunto. Os meus barrocos, com risco de falhanço por excessivos, tornam o prazer de formular algo novo num fim em si, num puro gozo. [11]
 
Almeida Faria vê na oposição entre clássico e barroco a tensão entre por um lado a medida, o equilíbrio, a “perfeição”, e por outro a desmesura e a invenção do novo. Mas a tensão encontra-se também dentro do próprio conceito de barroco, que privilegia as antíteses e contrastes e vive de uma polaridade e tensão interior básica. Toda a grande mobilidade de pensamento própria do barroco se exprime numa moldura de regras formais de grande rigidez. Veremos como esta tensão interior ao próprio barroco se conformará em Vanitas.
(...)

 
(a continuar neste blogue)

Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

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Imagem: Retrato de Calouste Gulbenkian - Museu Calouste Gulbenkian



[1] Cf. Kindlers Neues Literatur Lexikon, Bd. 13, ed. W. Jens, München: Kindler Verlag, 1988, p. 496-7.
[2] E. A. Poe, op. cit., p. 481.
[3] Id. ibid.
[4] Id. ibid., p. 482.
[5] Poe, op. cit.
[6] Cf. a este respeito Jean Starobinski, “The idea of nostalgia”, in: Diogenes 54, Summer 1966; Julia Kristeva, Black Sun, Depression and Melancholia. NY: Columbia University Press, 1989; Susan Sontag, Under the Sign of Saturn. NY: Farrar. Starus. Giroux, 1980; Linda Hutcheon, “Irony, Nostalgia and Postmodernism”, in: http://www.library.utoronto.ca/util/criticism/hutchinp.html.
[7] A influência é também da personagem da mulher louca no sótão, em Jane Eyre, de Charlotte Brontë, segundo o próprio autor, numa sessão de leitura de Vanitas em Lisboa, na Livraria Bulhosa, a 18 de Dezembro de 2007.
[8] Cf. a este propósito o ensaio de Freud “On Transience”, de 1915; ainda “Mourning and Melancholia”, escrito alguns meses antes, mas publicado só em 1917. O tom de grande serenidade, bem como a reflexão sobre a beleza de “On Transience”, ligam Vanitas mais a este ensaio.
[9] Henry James define as personagens de um romance como “a compositional resource” – cf. Susan Sontag, “The Pornographic Imagination”, in: A Susan Sontag Reader. Toronto: McGraw Hill Ryerson Ltd, 1982, p. 210.
[10] Cf. Entrevista em Georgetown.
 
[11] Cf. op. cit.,  p. 199, cap. 51, carta de J. C. a Marta.