A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria
O
coleccionador opõe-se ao pintor / narrador. Interessou-o perseguir e adquirir,
comprar obras de arte, quadros de figuras femininas como um conquistador as suas
conquistas – é longa a lista de quadros de figuras femininas exibidas como
troféus, todas elas expressão da vaidade do coleccionador [1]
: “A partir de dada altura a minha aventura foi a luta pela conquista e pela
posse de certas obras, umas a preço de loucura, outras à custa de paciência,
persistência e alguma astúcia, outras impossíveis de conseguir.” (p. 20). O
fantasma trata a colecção de quadros como mulheres num harém:
Coleccionar é ser sultão não
de pessoas mas de coisas. É buscar uma harmonia entre as coisas de que nos
sentimos protectores, ainda que elas nos sobrevivam. De cada vez que comprei
uma peça, concedi-lhe um período de adaptação para perceber se ela e eu nos
pertencíamos. Cheguei a levar este noivado a extremos inimagináveis.(p. 45)
Mas
ao mesmo tempo trata os quadros, que para o artista eram expressão viva, como
meros objectos que ele persegue no intuito de coleccionar. O texto é muito
irónico, quando o coleccionador diz
preferir às naturezas-mortas as naturezas vivas, à maneira de todo o bom
conquistador. Recorda-nos aqui outro mediterrânico, em The Merchant of
Venice, Shylock, que confunde a filha e o dinheiro, chorando ao mesmo nível
a fuga da filha e a perda dos ducados.
O
ponto alto da ironia que envolve a personagem do fantasma é a interpretação
romantizada que faz do quadro de Fantin-Latour A Leitura:
Não me importaria de ter
sempre por perto as duas irmãs nele retratadas (...) Uma era a noiva do pintor,
a outra ficou por casar. Adivinha qual é qual? (...) A leitora é a noiva,
Victoria; a loura e futura cunhada é Charlotte. Eu teria escolhido a preterida;
Fantin, pelo contrário, casou com a outra, pintora amadora, frequentadora do
Louvre, amiga de artistas e recém-retratada por Degas, apesar de, quanto a mim,
ele adorar Charlotte, como o prova a quantidade de vezes que a retratou. Talvez
o sentimento fosse recíproco, embora seja difícil decidir pela altivez e o
olhar da bela solitária. (15-16)
O
fantasma de Calouste Gulbenkian fantasia a relação entre o pintor e a cunhada
Charlotte Dubourg, insinuando existir entre os dois uma ligação sentimental.
Num artigo sobre Victoria Dubourg [2],
Elizabeth Kane percorre as naturezas-mortas da pintora, que fez – tal como o
marido – um retrato da irmã Charlotte, do mesmo ano, 1870. Kane refuta com
argumentos vários a tese de Michael Hoog, co-autor do catálogo definitivo de Fantin-Latour
de 1983, principal defensor da existência de uma “complicité muette” entre Fantin
e a cunhada. Não será necessário reproduzir os argumentos da ensaísta, já que a
vida do pintor aponta para uma direcção diversa da sugerida por Hoog:
Fantin-Latour terá seguido critérios bem diferentes na escolha da noiva [3].
Regressando à constelação de personagens
de Vanitas, à história de posse e controle figurada no fantasma do
coleccionador – que também por isso é uma figura ilusória, fantasmática – e em
Poe, opõem-se com nitidez figuras de criadores e artistas, o próprio pintor / narrador,
o poeta Saint-John Perse e Simonsz van der Beeck, ou Torrentius. O pintor diz,
escutando o fantasma e respondendo no seu íntimo à pergunta “Acha que exagero
se lhe disser que os objectos vivem na alma do coleccionador, tal como a alma
do coleccionador permanece viva nos seus objectos?” (p. 47-8):
Cheio de má consciência dei
comigo a pensar que nem sequer me lembrava do paradeiro de muitos dos meus
quadros, que se separam de mim mal os termino e vão sem cerimónia à sua vida,
como se nunca me tivessem pertencido. Não me pertencem, realmente, mas duvido
que isto diga respeito a alguém.” (p. 48)
Não
dialogam, não se estabelece entre os dois comunicação, pois representam
princípios e perspectivas antagónicas. O aspecto de recepção contido na frase
do pintor / narrador corresponde às teorias do texto do séc. XX, que consideram
a obra como aberta à recepção do leitor, portanto livre, viva no momento da
escrita e no momento da leitura. O coleccionador auto-exclui-se deste processo,
pois está interessado em comprar, adquirir, ordenar, possuir, em resumo, em
coleccionar obras de arte. Coleccionar opõe-se neste conto claramente a criar.
Para o artista, cada obra é única, singular, reflexão narcísica do seu autor,
mas produzida também a pensar no seu efeito no leitor. Para o coleccionador, é
projecção narcísica pura. “Colligere” é escolher e juntar, mas falta-lhe o
elemento da comunicação: “Cette totalisation par les objets porte toujours la
marque de la solitude: elle manque à la communication, et la communication lui
manque” [4].
O pintor Jan Simonsz van der Beeck é
referido a primeira vez em Vanitas quando o pintor / narrador se surpreende
por o fantasma ler os seus pensamentos:
Só um espírito saberia o que
eu fizera antes de adormecer! Lia, com efeito, algumas páginas de Zbigniev
Herbert sobre Jan Simonsz van der Beeck, que se autocaracterizou assinando
Torrentius e foi admirado no seu tempo como mestre da mais perfeita imitação da
vida sensível, esquecido depois durante três séculos e recentemente
redescoberto.” (p. 31)
No
ensaio que dá o título ao livro de Herbert [5], o mesmo do quadro do pintor, Natureza-Morta com Brida, o autor
explica que o “nom de guerre” de van der Beeck, Torrentius, vem do latim torrens que significa a
um tempo tórrido e torrente. Este quadro existe no texto de Vanitas
no mundo do monólogo interior do pintor / narrador, e não na colecção do
fantasma, escapando assim à enumeração. Natureza-Morta com Brida, tal
como a exposição As Lágrimas de Eros – esta, naturalmente, por
imaginária, ficcional - está ausente do espaço directamente visual do conto,
não faz parte dos quadros reproduzidos na segunda edição e tem, não obstante,
uma importância central na narrativa.
(...)
Imagem: Fantin-Latour, A Leitura - Museu Calouste Gulbenkian
(a continuar neste blogue)
Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)
In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
Ler o texto completo aqui
[1] Coleccionar
é sempre uma actividade narcisista, e cada objecto coleccionado retrata, de
certo modo, o coleccionador. Cf. a este respeito Jean Baudrillard, Le système des objets. Paris:Gallimard, 1968, p. 128.
[2] Cf. Elizabeth Kane, “Victoria Dubourg: The Other Fantin-Latour”. In: Woman’s
Art Journal, vol. 9, nº 2 (Autumn, 1988 – Winter, 1989), pp. 15-21.
[3] Seria, aliás, curioso recordar neste contexto o critério estipulado em
The Merchant of Venice pelo pai de Portia para selecção dos candidatos à
mão da filha, resumido na “sentença” ditada pelo último cofre, acompanhada do
retrato de Portia, o cofre de chumbo, escolhido por Bassanio: “You that choose
not by the view / Chance as fair, and choose as true”. A distinção entre “ser”
e “parecer” está, de resto, na base da mundivisão barroca e percorre toda a
obra de Shakespeare.
[4] Jean Baudrillard, op. cit.,
p. 150.
[5] Zbigniev Herbert, Still Life with a Bridle,
Essays and Apocryphus. Hopewell ,
NJ : The Ecco Press, 1991.