segunda-feira, 10 de setembro de 2012

 
 



A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria *
 

“Ce n’est rien que la vie soit atroce; le pire est qu’elle soit vaine et qu’elle soit sans beauté.”
Marguerite Yourcenar
 

       Publicado pela primeira vez na revista Colóquio-Letras de Abril-Setembro de 1996, este conto encena o encontro do narrador com o fantasma do mecenas e coleccionador de arte Calouste Gulbenkian em Paris, no número 51 da Avenue d’Iéna, sua residência em Paris desde 1923 no “faubourg de l’Étoile”, hoje em dia Biblioteca Particular de Calouste Gulbenkian. Almeida Faria dá continuidade a uma linha de escrita que já definira em 1984 [1] como “realismo fantástico”: na narrativa curta Os Passeios do Sonhador Solitário, diálogo com uma gravura de Mário Botas, encontramos as figuras tutelares dos escritores Jean-Jacques Rousseau e Jorge-Luis Borges. Em Vanitas, revisto e reeditado em 2007 com o título Vanitas - 51, avenue d’Iéna [2], a intertextualidade continua através não só da evocação de Calouste Gulbenkian, mas também com quadros por ele coleccionados, nomeadamente o quadro A Leitura, de Fantin-Latour. O registo fantástico pode detectar-se na obra de Almeida Faria desde muito mais cedo – veja-se o conto “Peregrinação”, de 1963 [3]. A intertextualidade de Vanitas reside sobretudo no diálogo com o poema “The Raven” e com o ensaio “The Philosophy of Composition”, de Edgar Allan Poe, e com o poeta Saint-John Perse, apenas brevemente referido na primeira versão de 1996. Central será ainda a referência a um quadro do pintor Jan Simonzs van de Beeck, Natureza-Morta com Brida, de 1614. Vanitas - 51, avenue d’Iéna coloca a questão central da justa medida na arte [4], e prima pela brevidade e contenção, reflectindo sobre questões de composição num registo metaficcional e num tom de grande distanciamento e ironia.

       A palavra vanitas conduz-nos ao coração do período barroco, revendo como conceito e como composição pictórica o momento essencialmente religioso da Idade Média e contrapondo-lhe o “lust for life” renascentista. Do confronto entre estes dois momentos antagónicos nasce uma mundivisão profundamente dinâmica e teatral, que culmina nas Vanitas, em que a ideia da beleza surge ligada à decadência física, à ruína. Encenando contrastantemente por um lado, grupos de objectos que representam a beleza, a fama, o poder e a glória, e por outro lado objectos que simbolizam a morte, a decadência e a transitoriedade, estas composições são um género específico das naturezas-mortas, em voga no séc. XVI e XVII em especial na Flandres e Países-Baixos, e significam um sério aviso sobre a fugacidade de tudo o que é humano.

       Não há nenhum quadro que exemplifique este género pictórico no conto. O fantasma de Calouste Gulbenkian refere nunca ter conseguido adquirir uma Vanitas: “Foi uma das minhas frustrações, tal como a de nunca ter conseguido uma daquelas misteriosas naturezas-mortas designadas por vanitas, que traduzem em imagens o memento, homo, quia pulvis es et in pulverem revertes” (p. 30), e faz ele próprio a descrição desse género na pintura:

 

          Aqueles fulgores de frutos e flores onde perversamente aparece a pétala fanada, a   polpa murcha, o podre; aquelas riquezas da Terra onde de súbito surge o bolor e o verme; os moluscos e insectos carregados de recados, a mosca simbolizando talvez o demónio ou o mal, e o caracol cuja casca alude, segundo alguns, ao vazio da fortuna, ao oco tambor da vanglória e da fama. Quanto me esforcei por obter uma dessas maravilhas! (p. 30)

 

J. C., a personagem masculina central de Cavaleiro Andante, fala da sua “tendência para achar que tudo tende ao inútil, ao nada, à doença e à morte” [5]. Esta obsessão com a temática barroca poderá reflectir aspectos recorrentes nas personagens de Almeida Faria, mas neste caso com grande distanciamento: trata-se de um fantasma e todo o seu discurso está impregnado de grande ironia. Faz o elogio das Vanitas e da opulência de formas típica do barroco; a sua colecção, sobretudo o grupo de retratos de figuras femininas, corresponde a uma figura de estilo recorrente neste período, a enumeração.

       Todos os quadros a que o conto alude são retratos ou naturezas-mortas, mas nenhuma Vanitas, à excepção daquela que encerra o texto, a versão contemporânea de Paula Rego. O tríptico da artista que ilustra a segunda versão do conto, à maneira de conclusão do texto, sublinha a temática barroca. Digo fechamento do conto, porque a pintora o contempla por seu turno como quadro acabado e com ele dialoga, o interpreta e  fixa num momento que o próprio escritor designou como “feliz” [6].

       O conto começa abruptamente com o despertar, a meio da noite, do narrador, que pernoita em Paris, no nº 51 da Avenue d’Iéna, hoje em dia sede do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, onde viveu o mecenas e coleccionador de arte. A ideia para o conto terá surgido a Almeida Faria, como consta da edição do conto em livro, durante “As noites que passei, em 1996, no quase-palácio que Calouste Gulbenkian reconstruiu na Avenue d’Iéna, em Paris” (p. 9). Nessa altura, o escritor apresentou o seu ensaio sobre Mário Botas “Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta”. O narrador de Vanitas é também um pintor, sem nome, que vai expor no espaço da antiga pinacoteca privada do mecenas uma exposição sua intitulada As Lágrimas de Eros (p. 32), título que no final do conto diz soar-lhe a patético (p. 59).

       Na cena de abertura alude-se a um dos quadros mais importantes neste conto, prefigurado no “busto da deusa Palas Ateneia numa coluna multiplicada pelos espelhos da galeria de acesso à parte nobre da casa” (p. 11). Posteriormente, o fantasma do coleccionador referirá o quadro como a sua aquisição mais “prestigiosa”: “a face severa e suave daquela andrógina figura de Rembrandt a que uns chamam Alexandre o Grande e outros Palas Ateneia, a tal que nasceu já armada e guerreira da cabeça de Zeus” (p. 42 e 53) [7]. Este quadro faz desde logo a ligação com os outros quadros da colecção, com o título do conto e o género pictórico que designa, vanitas, através do símbolo de poder temporal que é o elmo na cabeça da deusa. Mas a Palas Ateneia aponta ainda para uma outra intertextualidade que será decisiva para a compreensão do texto – logo a seguir o narrador refere “um bater de asas” que lhe recorda “um episódio semelhante que metia um monocórdico corvo numa agreste meia-noite” (p. 11-12). A referência é, claramente, ao poema de E. A. Poe “The Raven” (1845). Poe faz a ponte com os simbolistas franceses, nomeadamente com Baudelaire e Mallarmé, estando assim associado ao ambiente francês e a Mário Botas, que fez 51 desenhos para Le Spleen de Paris [8]. No ensaio “The Philosophy of Composition”, Poe escreve: “I made the bird alight on the bust of Pallas, also for the effect of contrast between the marble and the plumage” [9]. O fantasma repetirá, qual eco do corvo de Poe, a palavra “nevermore”, refrão do poema (p. 19), para não perdermos de vista a sugestão da ligação a Poe. Mas só no final do conto compreendemos que toda esta encenação textual do domínio do fantástico é, afinal, uma reflexão não só sobre o carácter vão de toda a arte – “Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a vanitas inerente a toda a arte?”- , mas ainda mais uma metaficção sobre a “justa medida dos mestres” (p. 59).
 
(...)
 
(a continuar neste blogue)
 

Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

 

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

Ler o texto completo aqui

 

Imagem: Rembrandt (1606-1669), Palas Ateneia - Museu Calouste Gulbenkian
 

*Comunicação apresentada ao Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) na Universidade de Yale em Outubro de 2008.
[1] Cf. Entrevista na Universidade de Georgetown em 1984 (gravação em vídeo: National Conference of the Teaching of Portuguese. Author Series 1984).
[2] Cf. Almeida Faria, Vanitas - 51, avenue d’Iéna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. (Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição).
[3] Almeida Faria, “Peregrinação”. In: Antologia do conto fantástico português. Ed. F. R. de Mello com introdução de E. M. de Melo e Castro. Lisboa: Ed. Afrodite, 1974.
[4] Cf. Eduardo Lourenço, “duas vanitas”. In: Almeida Faria, Vanitas, p. 5.
[5]  Almeida Faria, Cavaleiro Andante, Lisboa: INCM, 1983,  p. 207.
[6]  Cf. a imprensa diária da época,  Janeiro de 2007.
[7] O mito que relata o nascimento da deusa da cabeça de Zeus aponta para uma teoria masculina de criação do mundo, como a da Bíblia. Vd. neste contexto Erich Fromm, The Forgotten Language. Introduction to the Understanding of Dreams, Fairy Tales and Myths. NY: Grove Press, 1957, p. 231-235. É curioso o confronto com o final de “Peregrinação”, de Almeida Faria, no qual a ideia de criação é essencialmente feminina: “Ele era pois um homem que visitara outrora esses lugares e neles estava ela, a madre, a terra, a deusa, a fonte fundante e farta, fim e começo, imóvel, concentrada num trabalho difícil, total e infindável.” (p. 665)
[8] Cf. Harry Levin, “Journey to the end of the night”, in: The Power of Blackness. NY: A. A. Knopf, 1970, p. 103: “Poe, poète, poésie”.
[9] Cf. Poe, E. A., “The Philosophy of Composition”, in: Selected Writings. Harmondsworth: Penguin, 1982, p. 489.