sábado, 27 de abril de 2013



 





Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock

(...)






       Miss Froy não corresponde minimamente ao tipo de heroína dos filmes de espionagem, ela não é nenhuma Mata Hari. É mais uma anti-heroína, uma pessoa comum, que serve o seu país num momento difícil. Ela não triunfa dos seus inimigos conspiradores da Axis (as potências principais do Eixo foram a Alemanha, Itália e Japão durante a Segunda Grande Guerra) nem pela juventude, nem pela beleza física, nem pelo uso de tecnologia avançada. Ela vence o Mal absoluto, que aqui se delineia nas personagens do grupo conspirador, pela sua humanidade, poder de comunicação e porque está do lado do Bem. Depois do caso Dreyfus em França, reinava na época uma espécie de pânico moral contra estrangeiros e espiões[1] – a personagem de Miss Froy de algum modo serve para humanizar a figura do espião e o aproximar do público. Quando ela se apresenta a Iris no comboio, diz: “Froy... rhymes with joy.”[2] As personagens reunidas à volta do Dr. Hartz e da conspiração, pelo contrário, agem mercenariamente (vemos o ilusionista Doppo a exigir mais dinheiro ao médico). O Dr. Hartz diz mesmo a Iris e Gilbert que tenciona matar Miss Froy durante uma operação que será mal sucedida, revelando-se um profissional de Medicina a fazer um uso radicalmente errado da sua vocação e profissão. Quanto a Iris e Gilbert, eles são o par romântico do filme mas, em termos da intriga, são heróis acidentais, detectives amadores por necessidade das circunstâncias. As personagens de Miss Froy e de todos os conspiradores agem sob disfarce, sob uma falsa identidade. Esta perturbação da identidade garante a modernidade das personagens e é um tema constante na obra de Hitchcock, sempre preocupado com a perda da memória e/ou identidade[3].

 

       O triângulo de personagens centrais do filme está ligado entre si numa história de solidariedade e entreajuda, que é simultaneamente uma história romântica de amor, uma aventura da qual Iris sairá modificada e rejeitará um casamento de fachada, sem amor, optando por ficar com Gilbert. A música é o elo que liga as personagens de Miss Froy e Gilbert: Miss Froy apresenta-se como professora de música, Gilbert é um jovem etno-musicólogo interessado em estudar a música e dança de Bandrika, e poderá por isso memorizar facilmente a canção de Miss Froy. A melodia que, no final, se revela como sendo a chave do filme, está presente logo no início do genérico, sublinhando sobretudo o título do filme e o nome do realizador. Reaparecerá numa longa cena que começa no restaurante do hotel, e se prolonga pela serenata que Miss Froy escuta atenta à janela do seu quarto, repetindo e parecendo tomar nota. A música de Levy estará ausente de toda a sequência do comboio, para apenas voltar a aparecer quando Miss Froy pede a Iris e Gilbert para transmitirem a mensagem codificada na canção ao Foreign Office em Londres. Na cena que já citámos na carruagem-restaurante com o Dr. Hartz, Gilbert trauteia por breves instantes as primeiras notas da canção, mas é como se fosse um comentário musical do realizador, já que Gilbert não conhecia ainda a melodia. Mas a música continua presente em toda a sequência do comboio, apesar de estas cenas apenas terem som ambiente: “But even as the film eschews conventional movie music, it absorbs us in musical jokes, games, stratagems, and atmospheres.”[4]

 

      A música continua a ser o elemento que liga tudo em The Lady Vanishes: “Like The 39 Steps, The Lady Vanishes is a giddy combination of love story, comedy, and spy suspenser, all connected by music”[5]. Tal como a personagem principal que desaparece, a música seria o elemento mais importante do filme. Quando reaparece contém o “MacGuffin”, e fará a transição para o final do filme: Iris e Gilbert estão juntos no Foreign Office para transmitir a mensagem de Miss Froy, quando para seu desespero Gilbert verifica que se esqueceu da canção reveladora – nesse momento ouve-se a melodia ao piano, a porta abre-se e as três personagens principais dão as mãos. A música é assim elemento de revelação e de reunião, bem como a principal força e instrumento do grupo que se opõe à conspiração. Opondo-se à conspiração, opõe-se também ao silêncio ligado ao silenciamento, secretismo e morte, ao esquecimento e ao caos, atributos ligados à conspiração. A música neste sentido é memória e ordem, tal como noutros filmes de Hitchcock do período britânico, nomeadamente em Young and Innocent e em The 39 Steps. Neste filme, a personagem de Mr. Memory, que actua durante um espectáculo de music-hall, permitirá repor a ordem e provar a inocência do herói, falsamente acusado; e é também durante a actuação de uma orquestra num salão de baile que se detecta o verdadeiro culpado de um crime de que o protagonista era erradamente acusado, em Young and Innocent. Nos dois casos a música é a pedra-de-toque, o meio que permitirá avaliar a inocência das personagens ou a sua culpabilidade. Esta preocupação com a memória está bem patente em alguns dos mais conhecidos filmes do realizador, Spellbound e Marnie, ambos casos de amnésias ou de perturbações da memória, e em Vertigo, história de uma fobia e de uma obsessão.

 

       O título do romance no qual o filme se baseia, The Wheel Spins, alude ao movimento das rodas do comboio. O comboio é um poderoso símbolo de liberdade e mobilidade por um lado, e de clausura e imobilismo pelo outro (a expressão “spin one’s wheels” significa desperdiçar tempo, ficar numa posição neutra, sem avançar nem recuar)[6]. Referimos já atrás neste nosso texto como Jack Sullivan faz remontar ao primeiro filme sonoro de Hitchcock, Blackmail, a imagem da “human psyche spinning its wheels, a central Hitchcockian concept”[7]. Esta imagem do círculo, do remoinho, ou da espiral significa a obsessão das paixões humanas, o tema central de Hitchcock, o seu traço melodramático, que encontrará a forma mais acabada em Vertigo (1958).

 

 Em The Lady Vanishes, o rodar da espiral das rodas do comboio está presente numa montagem que acompanha o primeiro desmaio de Iris ao entrar no comboio, dando o ponto de vista óptico dela: “The image blurs and dissolves into the superimposed images of a whirlpool and multiple shots of her friend waving goodbye that combine with images of a train conductor waving and the spinning wheels of the train, whose rhythmic sound accompanies the montage”[8]. Esta montagem aponta também para o poder hipnótico do comboio e das imagens do próprio filme, e do cinema em geral. Na cena em que Iris e Gilbert vasculham a carruagem-bagageira, encontram para além dos óculos de Miss Froy e de um cartaz do ilusionista Signor Doppo, uma caixa daquelas que os mágicos usam para fazer desaparecer e reaparecer pessoas. Gilbert diz então “In magic circles, we call it the disappearing cabinet, you get inside and vanish”. Os três objectos desta importante cena em termos simbólicos – os óculos, o cartaz e a caixa mágica do ilusionista – apontam para a arte do cinema e para o seu poder, e para este filme em especial, The Lady Vanishes. O realizador também é um ilusionista, que nos envolve no seu círculo mágico de imagens hipnóticas (o próprio projector de uma sala de cinema tem esses cilindros que fazem rodar as bobinas com a película e projectar o filme). Trata-se de uma reflexão sobre a arte do cineasta, do cinema, e o poder das imagens, como que alertando para o carácter ilusório do mundo do cinema. Mas enquanto que, por ex., em The Wizard of Oz (1940) a montagem durante a qual também Dorothy desmaia nos conduz a um mundo de ficção e de sonho, o do cinema por excelência, passando mesmo das imagens a preto e branco para o filme a cores, em The Lady Vanishes a visão de Iris permanece bem real, afirmando-se esta realidade no decurso da busca conjunta com Gilbert e no final.

 

       Poderemos, pois, interrogar as referências do filme ao tempo histórico. Bandrika (ou Bandrieka), o país ficcional onde a acção se desenrola durante a maior parte do filme, poderá ser uma variação de um nome jugoslavo, de um vale nas Montanhas Pirin, na Bósnia, o Vale de Banderica. Miss Froy diz que Bandrika é “One of Europe’s few undiscovered countries”. De facto, Hitchcock acabou por aceitar realizar esta adaptação do romance The Wheel Spins, depois de uma tentativa de rodar o filme na Jugoslávia ter falhado, porque os habitantes receavam que o filme desse uma visão negativa do país. Bandrika poderá ainda aludir ao perigo de uma nova Guerra Mundial que se desenhava na época, no imediato pré-Segunda Grande Guerra, pela ligação da ex-Jugoslávia e da Bósnia ao incidente que foi a causa próxima para o eclodir da Primeira Grande Guerra, o assassínio do Arquiduque Franz Ferdinand da Áustria, herdeiro do trono austro-húngaro, e de sua mulher Sophie Duquesa de Hohenberg, a 28 de Junho de 1914 em Sarajevo, por um grupo de conspiradores e assassinos bósnios. Nomes de outras estações de caminho-de-ferro que aparecem durante o filme são Zolnay, Dravka e Morsken – Zsolnay é uma localidade na Hungria, Dravka na Croácia, e Morsken uma localidade sueca, tanto quanto consigo verificar.

 

Vejamos finalmente quais são os sinais que apontam neste filme para o perigo do fascismo em ascensão na Europa da época. O grupo de conspiradores liderado pelo Dr. Hartz alude à Alemanha, embora a língua que falem os habitantes de Bandrika seja um vernáculo ficcional. Hitchcock consegue isto sobretudo através da representação da “Englishness” da época, no retrato, também ele muito crítico, de personagens britânicas. A freira que vigia Miss Froy acaba por trair o grupo de conspiradores, por solidariedade, ao saber que a senhora de idade é inglesa: “You didn’t tell me the old girl was English?”, pergunta ela, censurando o Dr. Hartz. O marido adúltero, um pacifista ingénuo, resolve sair do comboio empunhando uma bandeira branca e é imediatamente morto a tiro, mostrando a opinião de Hitchcock quanto às tentativas de “appeasement” da Inglaterra de então com a Alemanha. Last but not least, fica-nos o estranho sintoma no meio do discurso no vernáculo de Bandrika proferido pelo gerente do hotel, Boris, sobrecarregado de trabalho pela afluência de hóspedes na sequência da avalanche[9]: “Oy vei zmir”, uma expressão em yiddish (a língua hebraica falada pelos judeus na Europa Central e de Leste, uma mistura de alemão com hebreu, línguas eslavas e outras línguas). Esta expressão significa “woe is me”, mostrando temor ou ansiedade em relação ao que aconteceu ou está para acontecer, e pode ser interpretada no contexto histórico do filme como sério aviso em relação ao Mal absoluto que se avizinhava com a Segunda Grande Guerra e o Holocausto.

 

       Embora alguns dos mais emblemáticos filmes de Hitchcock estejam ligados a uma simbologia de apagamento da figura feminina (Rebecca, de 1940, será marcado pela ausência radical de uma mulher[10]), The Lady Vanishes parte da tradição bem concreta dos espectáculos de magia de finais do séc. XIX, que consistia em fazer desaparecer senhoras. Esta temática foi tratada por Lucy Fischer no artigo de 1979 “The Lady Vanishes: Women, Magic, and the Movies” da perspectiva da teoria feminista, salientando a predilecção do cinema desde a sua origem por fazer desaparecer figuras femininas[11]. O pequeno filme de George Meliès intitulado Escamotage d’une Dame chez Robert-Houdin, em inglês The Vanishing Lady, de 1896, é um dos mais antigos exemplos de um truque cinematográfico que possibilitava a representação em filme desse número de ilusionismo. O próprio Meliès teria sido ilusionista antes de fazer filmes e teria comprado o Teatro Robert-Houdin em 1888[12]. Lucy Fischer acentua a violência simbólica destes números de ilusionismo e sua continuação na convenção cinematográfica, e relaciona-os com a definição de mulher de Simone de Beauvoir em Le Deuxième Sexe como “o outro” e como mistério para o homem[13]. No ensaio “Violent Vanishings: Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”[14], Karen Beckman faz remontar a origem desta tradição no cinema aos números de ilusionistas vitorianos, intitulados “Vanishing Lady Trick” ou “Vanishing Woman Act” como executados por Charles Bertram, o ilusionista preferido da Rainha Victoria, pela primeira vez em Agosto de 1886. Irá comparar The Lady Vanishes com um filme do mesmo ano do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte Spuren (The Footprints Blown Away), uma reescrita da lenda urbana do desaparecimento misterioso de uma senhora durante a Exposição Mundial de 1889 em Paris, ao que parece baseada numa história verdadeira, com a qual o filme de Hitchcock também está relacionado[15]. Beckman interrogar-se-á sobre o significado político do desaparecimento e como o desaparecimento de mulheres poderá estar ligado ao apagamento do “outro” no momento histórico que antecede a Segunda Grande Guerra.

 

       Os romances e filmes de espionagem deste período da História europeia entre as duas Grandes Guerras adicionam uma nova figura às já tradicionais de crime contra o indivíduo e a propriedade, o crime contra Estados soberanos[16]. Em The 39 Steps, o protagonista faz a defesa de um mundo melhor no discurso improvisado durante um comício político em que se vê envolvido durante a fuga, e no qual faz equivaler um mundo melhor a um mundo sem conspirações:

 

I ask your candidate and all those who love their fellow men to make this world a happier place to live in. A world where no nation plots against nation, where no neighbor plots against neighbor, where there is no persecution or hunting down, where everybody gets a square deal and a sporting chance, and where people try to help and not to hinder. A world from which suspicion and cruelty and fear have been forever banished.



[1] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 432, e MILLER, Toby, “39 Steps to ‘The Borders of the Possible’: Alfred Hitchcock, Amateur Observer and the New Cultural History”, in: Alfred Hitchcock. Centenary Essays, ed. Richard Allen e S. Ishii-Gonzalès, London: British Film Institute, 1999,  p. 321 ss.
[2] Significativamente a lista de alcunhas de membros dos serviços secretos britânicos da época denota essa “joie de  vivre”, como refere MILLER, Toby (1999, p. 323).
[3] Cf. id. ibid., p. 321.
[4] Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 52.
[5] Cf. id. ibid.
[6] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 444: “The train in both novel and film is a paradoxical object, a source of both prison and liberty, incarceration and flight.”
[7] Cf. p. 3 do presente texto.
[8] Cf. MCGILLIGAN, Patrick, op. cit., p. 173.
[9] Boris fala no telefone interno do hotel e pede aos empregados que levem mais uma garrafa de champanhe ao quarto de Miss Henderson (Iris), que festeja com as amigas a sua despedida de solteira: “Bandrika may have a dictator but tonight we’re painting it red.”
[10] Este apagamento da figura feminina acaba por ter o efeito contrário, e o filme é dominado pela presença/ausência obsessiva e fantasmática de Rebecca, que nunca chegamos a ver.
[11]  Vd. FISCHER, Lucy, “The Lady Vanishes: Women, Magic, and the Movies”, in: Film Quaterly Vol. 33, No. 1 (Autumn 1979), p. 30-40.
[12] Vd. id. ibid., p. 30.
[13] Lucy Fischer resume assim o seu ensaio: “In summary, then, the rhetoric of magic – in its theatrical and cinematic varieties – constitutes a complex drama of male-female relations. In the guise of the magician figure, the male enacts a series of symbolic rituals in which he expresses numerous often-contradictory attitudes toward woman: his desire to exert power over her, to employ her as decorative object, to cast her as a sexual fantasy, to exorcize her imagined powers of death, and to appropriate her real powers of procreation.”, cf. op. cit., p. 37.
[14]Vd. BECKMAN, Karen, Violent Vanishings: Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”, in: Camera obscura, September 13, 1996, p. 77-103.
[15] Vd. nota 27 do presente texto.
[16] Vd. MANDEL, Ernest, Delightful Murder: A Social History of the Crime Story. London: Pluto, 1984.

(a continuar)



Ana Maria Delgado
 
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

Ler o texto completo aqui


Imagens:


Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui

Para ver o filme: aqui

Georges Méliès, Escamotage d'une dame chez Robert Houdin 1896: aqui

sábado, 13 de abril de 2013







 
 
 
 


 
Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock
(...)

       A história é esta, adaptada do romance de Ethel Lina White The Wheel Spins [1]: nos primeiros trinta minutos do filme assistimos a várias cenas num hotel de um país ficcional, Bandrika, algures na Europa central, no imediato pré-Segunda Grande Guerra, onde se fala um vernáculo inventado por Hitchcock. Um grupo de passageiros britânicos em curso numa viagem de comboio transcontinental ficou retido devido a uma avalanche que bloqueou a linha férrea. O hotel da pequena localidade está superlotado, não há quartos nem comida suficiente para todos os hóspedes, e assistimos a várias cenas em tom de comédia envolvendo personagens que se vão distinguir em três grupos. As personagens centrais são uma senhora de idade, Miss Froy (Dame May Whitty), uma jovem que regressa a Londres para se casar, Iris Henderson (Margaret Lockwood), e um jovem etno-musicólogo que estuda a música e danças da região, Gilbert (Michael Redgrave, na sua estreia no cinema). Miss Froy trava conhecimento com Iris ainda no hotel e como Iris foi atingida por um vaso de flores na cabeça antes de embarcar no comboio, Miss Froy diz às duas amigas da jovem que ficam na estação, “I’ll look after her.” No comboio, e após tomarem chá na carruagem-restaurante e fazerem as apresentações formais (Miss Froy escreve o nome na janela porque o apito do comboio impede Iris de perceber o que ela diz), Iris adormece ou perde consciência pela segunda vez (a primeira, logo que entra no comboio) por causa da pancada na cabeça e, quando acorda, Miss Froy tinha desaparecido. A única pessoa no comboio que ajuda Iris a procurar a sua companheira de viagem é Gilbert. O segundo grupo é constituído por personagens à volta do Dr. Hartz, um neuro-cirurgião que se revelará como chefe do grupo de conspiradores, e seus mercenários a viajar no comboio. Estas personagens quase não têm desenvolvimento psicológico, todas são caricaturadas e grotescas. O terceiro grupo de personagens retrata a classe-média britânica da época, mostrando as contradições de género, classe e sexualidade[2] da sociedade inglesa de então. Ainda no hotel, Miss Froy escuta à noite, à janela, uma serenata, e vemo-la repetir, pensativa, a melodia. O que ela não vê é que o músico foi estrangulado (apenas vemos as sombras das mãos do estrangulador). Depois de variadas peripécias no comboio, Iris e Gilbert descobrem que Miss Froy, que se apresentara como professora de música e preceptora, foi raptada pelo grupo do Dr. Hartz e corre perigo de vida. Miss Froy acaba por conseguir fugir do comboio com a ajuda do jovem par, não sem antes lhes revelar que não é quem parece e pedir-lhes para levarem uma mensagem codificada numa melodia – a mesma da serenata – ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Londres. Os minutos finais do filme mostram-nos a Victoria Station, com uma muito breve “cameo-appearance” de Hitchcock, de fato preto, chapéu na mão e a fumar um cigarro, e Iris e Gilbert a dirigirem-se para o Foreign Office. Gilbert, na excitação de ter conseguido ficar com Iris, que desistiu de um casamento de fachada e por interesse, esqueceu-se da melodia e só consegue trautear a Marcha Nupcial. Mas de uma porta fechada ecoa ao piano a melodia reveladora, e ao entrarem encontram Miss Froy ao piano e juntam as mãos no reencontro.

       A primeira vez que Iris e Gilbert suspeitam de uma conspiração acontece na cena na qual Iris e Gilbert procuram Miss Froy no vagão de transporte de bagagem. Gilbert não está a princípio convencido da existência real de Miss Froy. Chega mesmo a dizer a Iris, na carruagem-restaurante: “You’re always seeing things!”, uma descrição que se adapta ao significativo nome de uma das heroínas deste filme e a identifica como foco narrativo principal, já que o espectador segue a perspectiva de Iris, que incorpora a visão do próprio realizador. Mas a partir do momento em que vê, por um feliz acaso e apenas por fugidios segundos, o rótulo da embalagem de chá que Iris lhe tinha dito ter sido dada por Miss Froy ao empregado de mesa para preparar o chá (visão que é o contraponto do nome que Miss Froy escrevera na janela do comboio e que desaparecera), Gilbert começa a acreditar na versão de Iris e iniciam uma busca conjunta à procura de Miss Froy[3]. Essa busca vai revelar-se proveitosa: descobrem que o italiano que viaja no mesmo compartimento é um ilusionista, e encontram um eloquente cartaz do espectáculo do Grande Doppo, mágico e ilusionista, intitulado “The Vanishing Lady”. Este pormenor, como tudo em Hitchcock, é igualmente revelador, e uma espécie de mise-en-abyme do filme The Lady Vanishes, que aliás assim se chama como homenagem do cineasta a um conto de Alexander Woollcott, “The Vanishing Lady”, do seu livro While Rome Burns (1934)[4]. Como que a confirmar estes dados novos, Iris e Gilbert encontram em seguida os óculos de Miss Froy. Na verdade, o terceiro grupo de viajantes, os indiferentes, mentem por razões meramente egoístas dizendo não ter visto Miss Froy com Iris: o casal adúltero não quer complicações, e o par homossexual não quer atrasos para chegar a tempo a um jogo de cricket. Os dotes detectivescos de Gilbert e Iris combinam-se complementarmente, a racionalidade e dedução masculinas e a intuição feminina[5], num delicioso diálogo:

Iris: You were about to tell me about your theory.

Gilbert: Oh, my theory. Well (pondo o boné à Sherlock Holmes) my theory, my dear Watson, is that we are in very deep waters indeed. (Iris estende-lhe o cachimbo) (…) In the first place a little old lady disappears. Everyone that saw her promptly insist that she never was there in the first place. Right?

Iris: Right.

Gilbert: We know that she was. Therefore they did see her. Therefore they are deliberately lying. But why?

Iris: I don’t know, I’m only Watson!

É Gilbert quem deduz que a paciente do Dr. Hartz cujo rosto está envolto em ligaduras deve ser Miss Froy; e Iris quem desconfia da freira (interpretada por Catherine Lacy na sua estreia em cinema) que está a tomar conta da doente, por usar sapatos de salto alto. Iris e Gilbert contam as suas descobertas ao Dr. Hartz, que se tem fingido muito solícito com eles:

Gilbert: How do you know it is not Miss Froy?

Iris: We believe there has been a substitution, Doctor.

Dr. Hartz: You really mean to say that you think that someone has -

Gilbert: (trauteia as primeiras notas da melodia reveladora) (...)

Iris: It’s a conspiracy, that’s what it is! All these people on the train say they haven’t seen Miss Froy, but they have.

(…)

(O Dr. Hartz faz um brinde aos dois, tentando que Iris acabe a sua bebida que tem supostamente um poderoso sedativo)

Dr. Hartz: Go ahead! And may our enemies, if they exist, be unconscious of our purpose!

(…)

(Já na carruagem com os dois)

Dr. Hartz: Yes, the patient is Miss Froy. She will be taken off the train at Morsken in about three minutes. She will be removed to the hospital there and operated. Unfortunately the operation will not be successful. Oh, I should perhaps explain – the operation will be performed by me. (Aponta um revólver a Gilbert) You see, I am in this conspiracy. You are a very alert young couple (…)

 
              Mas de que conspiração se trata, afinal, e porquê a perseguição a Miss Froy? Só quase no final do filme se revela a sua identidade. No hotel, ela apresenta-se como professora de música e preceptora, salientando de modo idealizado o carácter musical dos habitantes de Bandrika, em conversa com o casal gay, muito indisposto pela falta de comida no restaurante do hotel:


Miss Froy: I’m a governess and a music teacher, you know. (…) In the six years that I lived here I’ve grown to love the country. (…) Everyone sings here. The people are just like happy children, with laughter on their lips and music in their hearts.

Charters: It’s not reflected in their politics, you know.

Miss Froy: I never think you should judge a country by its politics.

 
Mas Miss Froy não é quem aparenta ser. Durante um tiroteio quase no final do filme ela chama à parte Iris e Gilbert e entrega-lhes uma mensagem destinada ao Foreign Office, no caso de não conseguir sobreviver, já que vai arriscar fugir do comboio:


Miss Froy: I just wanted to tell you that I must be getting along now. (…) Listen carefully: in case I’m unlucky and you get through, I want you to take back a message to a Mr. Callendar at the Foreign Office in White Hall.

Iris: Then you are a spy!

Miss Froy: I always think that’s such a grim word.

Gilbert: What’s the message?

Miss Froy: It’s a tune. It contains - in code, of course, the vital clause of a secret pact between two European countries. I want you to memorize it. The first part of it goes like this (trauteia).


“A cláusula vital de um pacto secreto entre dois países europeus”, contida em código numa canção, é o “MacGuffin” do filme, e a única revelação que temos sobre o mistério que envolve a personagem desaparecida. Tudo o resto é uma lacuna que o espectador tem de preencher. Miss Froy é a figura principal do filme, uma heroína diferente de Iris: ela pertence ao grupo de heroínas de Hitchcock que são auto-suficientes e se assumem como agentes secretas[6]. A relação que estabelece com Iris como figura de mãe – “I’ll look after her”, diz de Iris ao entrar no comboio, quase se inverte durante toda a sequência do comboio, em que é Iris quem cuida de Miss Froy. Mas o inverso não deixa de ser verdade, enquanto o seu trabalho secreto visa cuidar de todos. Ela é a senhora que desaparece, mas há algo de ambíguo no título do filme, pois é Iris que desmaia ao entrar no comboio, o primeiro de cinco desmaios durante a viagem. A vida de Miss Froy depende da recordação que Iris mantém dela, e por isso o seu desaparecimento ou reaparecimento depende de a sua jovem companheira de viagem ser capaz de provar a veracidade da sua versão/visão/recordação. Este poderá talvez ser interpretado como o traço mais moderno e contemporâneo do filme: “It’s tempting to seek topicality in the appeasement theme, the espionage plot and the film’s meditation on Englishness, but none of these elements resonate much today. What does is Hitchcock’s manipulation of Iris’ consciousness and, through the use of the train as a vehicle for dreaming, the idea that she, not Miss Froy (the literal disappearee), is the lady who vanishes.”[7]
 

(a continuar)

[1] WHITE, Ethel Lina, The Wheel Spins. London: Collins, 31937 (1ª edição 1936).
[2] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 442.
[3] Vd. a este propósito ALLEN, Richard, Hitchcock’s Romantic Irony. New York/Chichester: Columbia University Press, 2007, p. 84 ss., “The Joint Quest Narrative”.
[4] O próprio Hitchcock narra a Truffaut esta lenda urbana de uma conspiração internacional na Exposição Mundial de 1889 em Paris: duas inglesas, mãe e filha, em viagem de regresso da Índia para o Canadá, param em Paris para ver a Exposição. A mãe adoece, e o médico pede à jovem que vá buscar um medicamento. Quando volta ao hotel, a mãe tinha desaparecido. No final vem-se a descobrir que a mãe tinha tido peste. Hitchcock voltaria a adaptar esta lenda em 1955, num episódio de “Alfred Hitchcock Presents”, “Into Thin Air”, com Patricia Hitchcock no papel de filha. Vd. Truffaut/Hitchcock. Ed. Robert Fischer. München Zürich: Diana Verlag, 1983, p. 98 ss.  Vd. também MCGILLIGAN, Patrick, Alfred Hitchcock: a life in darkness and light. New York: Harper Collins Publishers, 2003, p. 207: “Changing the film’s title to The Lady Vanishes was a nod to Woollcott, one of the writers Hitchcock devoutly read in his favorite U.S. magazine, the New Yorker.”
[5] Cf. ALLEN, Richard, op. cit., p. 82 ss.
[6] Cf. ALLEN, Richard, op. cit., p. 82 e p. 86: “women in Hitchcock’s English thrillers are defined more by their agency  than by their sexual identity”, ao contrário do que sucede no período americano, dada a interpretação de feminilidade como maternidade ou como sexualidade, ditada pelo sistema de estrelato americano.
[7] Vd. FULLER, Graham, “Mystery Train”, in: Sight and Sound, January 2008, p. 37.

 
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 
 

Ler o texto completo  aqui


Imagens:


Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui

Para ver o filme: aqui

quinta-feira, 4 de abril de 2013





 

Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock*


Iris: Bandrika may have a dictator but tonight we’re painting it red.

 
       Quando Alfred Hitchcock dirige em 1938 The Lady Vanishes[1], tinha já realizado uma longa lista de filmes na Grã-Bretanha e recebia, por aqueles dias, um convite de David Selznick para trabalhar em Hollywood, que viria a aceitar. The Lady Vanishes representa de algum modo o auge e o final da carreira britânica de Hitchcock[2]. Ocupando este lugar-charneira, The Lady Vanishes cruza temas e motivos com outros filmes desta primeira fase, nomeadamente a primeira versão de The Man Who Knew Too Much (1934), The 39 Steps (1935), e Young and Innocent (1937), temas e motivos esses que irão percorrer toda a produção da fase hollywoodiana de Hitchcock. Esse período áureo do cineasta torná-lo-ia conhecido do grande público e marcaria decisivamente a história do cinema – basta pensar na segunda versão de The Man Who Knew Too Much (1950) e em North by Northwest (1959), a variação americana de The 39 Steps[3]. Um destes temas que percorre toda a obra de Hitchcock é a conspiração.

       O género novo que Hitchcock estava a criar em cinema era o filme de suspense ou thriller[4], sob influência do cinema expressionista de F. W. Murnau e de Fritz Lang[5]. A rigor, o seu primeiro filme deste género é The Lodger. A Story of the London Fog (1927). Mas o mais conhecido filme destes primórdios da sua carreira é Blackmail, por ser simultaneamente o primeiro filme sonoro (“talkie”) que realiza, em 1929. E será com a primeira versão de The Man Who Knew Too Much – o primeiro thriller sinfónico de Hitchcock[6] - que o realizador começa a usar mais incisivamente o tema da conspiração na sua obra.

       A conspiração parece, no entanto, não lhe interessar tanto em si, mas antes como pano de fundo da intriga. A conspiração, e o secretismo que a acompanha[7] tomam, na obra de Hitchcock, a forma daquilo que o próprio realizador denominou “MacGuffin”. Este estranho termo tem origem numa anedota, segundo ele conta, envolvendo dois escoceses num comboio de Londres para a Escócia. Um deles pergunta ao outro o que contém um embrulho na bagageira, ao que este responde ser um “MacGuffin”. À pergunta sobre o que é um “MacGuffin”, responde ser uma armadilha para apanhar leões nas terras altas da Escócia. Mas, observa o companheiro de viagem, não há leões nas terras altas da Escócia – então, replica, também não há nenhum “MacGuffin”[8]. E Hitchcock terá concluído, ao narrar esta anedota a Truffaut: “So you see that a MacGuffin is actually nothing at all.”[9]

       Em toda a sua extensa filmografia baseada no tema da conspiração e usando “MacGuffins”, Hitchcock não identifica o país ou países envolvidos, nem especifica qual a causa nacional em questão – o “MacGuffin” é um mero pretexto para despoletar a acção do filme. Hitchcock prefere concentrar-se nas emoções das personagens, que sabe serem perenes e encontrarem mais ressonância nos espectadores, do que nas intrigas políticas, demasiado marcadas temporalmente[10] - como o próprio cineasta declara, “Melodrama is the only thing I can do”[11]. Mas este estranho estratagema denominado “MacGuffin” tem um papel central em muitos dos seus principais filmes, nomeadamente The Man Who Knew Too Much, The 39 Steps, The Lady Vanishes, Notorious, North by Northwest, e Torn Curtain[12].

       Segundo alguns críticos, Hitchcock terá subvertido, através das intrigas baseadas nos “MacGuffins”, o género fílmico predominante na época (“mainstream”), ao desestabilizar a convenção segundo a qual o espectador deveria conhecer a intriga do filme a que assiste[13]. Em vez disto, o cineasta usa o “MacGuffin” como pretexto para se concentrar nas complexidades das personagens, nos seus sentimentos e contradições, na imagem e na música, na fruição estética, opondo-se a um cinema comercial baseado quase exclusivamente na acção exterior e num uso banal da banda sonora, feita para acompanhar as imagens sem qualquer distanciamento ou reflexão sobre elas. A crítica psicanalítica também situa o cinema de Hitchcock como opondo-se ao cinema mainstream, por privilegiar a pulsão em relação ao desejo, a insatisfação em vez da satisfação, e assim o suspense em vez da surpresa[14]. A surpresa alia o prazer a um momento de presença, enquanto o suspense o alia a um momento prolongado de ausência[15]. Para este crítico, além dos traços que situam Hitchcock na produção cinematográfica predominante na época – a sua pertença ao sistema de estúdio, a sua vontade de chegar a um público alargado - o que decisivamente o distancia deste cinema é o modo como não direcciona exclusivamente a sua narrativa cinematográfica para um final satisfatório, bem como o seu desprezo pelos filmes “whodunit”, que concentram o interesse do espectador no desenlace do filme, quando se descobre “quem é o criminoso”[16].

       Hitchcock tinha já realizado vários filmes mudos quando o advento do cinema sonoro o surpreende a meio da realização de Blackmail, que decide transformar num “talkie”. Desde o início que a música é na sua obra um elemento decisivo, quase uma assinatura, como observou o compositor John Williams[17]. Jack Sullivan resume os aspectos do tratamento da música presentes em Blackmail e que se tornaram característicos na obra do realizador: “This revolutionary 1929 film, which he called a silent talkie, was among the first to blend sound and visual techniques in a personal, sustained, and sophisticated manner that became an intrinsic part of the atmosphere, psychology, and action.”[18] Sullivan salienta ainda, no seu excelente estudo sobre a música de Hitchcock, como Blackmail exemplifica muita da teorização de Sergei Eisenstein sobre o cinema sonoro e a relação entre imagem e música, bem como a herança do cinema expressionista alemão na obra de Hitchcock. A mente perturbada da protagonista, Alice, estabelece o modelo de um conceito central em Hitchcock: “The human psyche spinning its wheels, a central Hitchcockian concept, was set in motion by Hitchcock’s music in 1929”[19]. A mente humana em toda a sua riqueza e complexidade e o omnipresente tema da obsessão são o cerne da obra do mestre: “The vicious circle in Hitchcock, a Poe-like musical design connoting a mental maelstrom, would continue to spiral into the collapsing waltz in Young and Innocent, the ‘Merry Widow’ dancers in Shadow of a Doubt, the repeting theremin in Spellbound, the convoluted ‘love’ theme in Strangers on a Train, the obsessive spirals in Vertigo, the lost highway in Psycho.”[20]

       Sullivan analisa como Hitchcock procurou uma maneira de fazer com que a música “comentasse subtilmente” a acção em vez de a imitar, e sublinha a preferência de Hitchcock pelo silêncio em muitos casos, dado o seu poder de salientar a música antes e depois da pausa. Hitchcock procura “deslocar as imagens com a música”, fazendo a música comentar a imagem, estabelecer um subtexto mais profundo, naquilo a que ele chama o “uso psicológico da música”, “o som por debaixo da cena”[21]. Tendo começado a filmar na era do cinema mudo, Hitchcock tinha preferido as imagens às palavras: as imagens, como gostava de observar, são universais, ao passo que o som é meramente local[22]. Com Waltzes from Vienna, Hitchcock reconhece que a música é um tipo de som especial: redescobre o valor universal da música, que é semelhante ao das imagens como porta do inconsciente[23]. A partir desta redescoberta do valor do som no cinema, Hitchcock vai usar a música sobretudo como contraponto. A música em Hitchcock, ao mesmo tempo que capaz de transmitir uma grande emocionalidade, será usada pelo cineasta com grande racionalidade e inteligência de modo semelhante à montagem. The Man Who Knew Too Much, o filme que realiza a seguir a Waltzes from Vienna, será o seu primeiro filme de suspense sinfónico, e também o primeiro no qual usa o tema da conspiração.

       Centrar-nos-emos na análise do filme The Lady Vanishes para estudar a relação da música com o tema da conspiração em Hitchcock. Este filme era, de entre os filmes de Hitchcock, o preferido do realizador francês François Truffaut, por considerar que continha todos os elementos característicos do cinema do mestre de suspense. Conspiração e música usam ambas de modo decisivo o silêncio: a conspiração, no secretismo entre os seus membros, e no silenciar das vítimas (no assassínio); a música, no intervalo entre as notas, sem o qual não pode existir. São naturalmente usos muito diferentes, até mesmo opostos, do silêncio: enquanto o silêncio na conspiração está ligado à morte e ao secretismo (silenciar, calar, matar; obrigação de segredo do grupo conspirador), na música o silêncio é uma pausa, um intervalo entre sons, ligação, sequência, e comunicação. Veremos também como a música está ligada neste filme à ordem e à memória, por oposição ao caos e ao silêncio definitivo, ao esquecimento, ligados à conspiração. Este esquematismo e maniqueísmo de The Lady Vanishes, bem como de outros filmes de Hitchcock, em que forças do Bem se opõem e resistem vitoriosamente às forças do Mal, afastam-no do film noir e da acusação que já lhe tem sido feita de relativismo moral, e são plenamente justificados pela época histórica que se vivia então na Europa, como teremos ocasião de analisar mais em pormenor (e também pelo género que lhe subjaz como matriz, o romance inglês de espionagem, cuja origem remonta a The Spy, de James Fenimore Cooper, de 1821).
 
(a continuar)


* Gostaria de agradecer à Professora Doutora Marina Ramos Themudo (Universidade de Coimbra) preciosas sugestões durante a redacção deste texto; à Professora Doutora Ruth Fine (Universidade de Jerusalém) a importante indicação relativa ao documentário de Hitchcock, as valiosas referências bibliográficas quanto ao papel da classe médica alemã no Holocausto, bem como a leitura da versão final; e à Professora Doutora Rosa Maria Sequeira (Universidade Aberta) a leitura da versão final do texto.
 
[1] Em Portugal A desaparecida ou Desaparecida!, no Brasil A dama oculta.
[2] Seguir-se-ia ainda Jamaica Inn, em 1939, um filme dominado pela presença de Charles Laughton e pouco marcante na produção do realizador, embora tenha sido na época um enorme sucesso de bilheteira.
[3] Cf. SULLIVAN, Jack, Hitchcock’s Music. New Haven and London: Yale University Press, 2006, p. 42.
[4] Cf. id. ibid., p. 21.
[5] Hitchcock tinha trabalhado nos anos 1920 com o realizador britânico Graham Cutts nos estúdios de Babelsberg em Potsdam, perto de Berlim.
[6] A designação é de Jack Sullivan, cf. id. ibid., p. 31.
[7] Vd. BARKUN, Michael, A Culture of Conspiracy. Apocalyptic Visions in Contemporary America. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2006.
[8] Cf. SPOTO, Donald, Spellbound by Beauty. Alfred Hitchcock and His Leading Ladies. London: Arrow, 2008, p. 28-29.
[9] Cf. MCGOWAN, Todd, “Hitchcock’s Ethics of Suspense: Psychoanalysis and the Devaluation of the Subject”. In: A Companion to Alfred Hitchcock. Ed. by Thomas Leitch and Leland Poague. Blackwell Publishing Ltd., 2011, p. 514.
[10] Cf. SPOTO, Donald, op. cit., p. 29.
[11] Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 20.
[12] Cf. SPOTO, Donald, p. 28: “Examples of Hitchcock’s MacGuffin: the stolen jewels in Number Seventeen; the planned assassination in The Man Who Knew Too Much; the design for a new aircraft engine in The 39 Steps; the espionage plots in Secret Agent and Sabotage; the tune containing a diplomatic secret  in The Lady Vanishes; the secret clause of a treaty in Foreign Correspondent; the uranium ore in Notorious; the international politics at stake in the remake of The Man Who Knew Too Much; the microfilmed secrets in North by Northwest; and the secret formula in Torn Curtain.”
[13] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, “Accidental Heroes and Gifted Amateurs: Hitchcock and Ideology”. In: A Companion to Alfred Hitchcock. Ed. by Thomas Leitch and Leland Poague. Blackwell Publishing Ltd., 2011, p. 428.
[14] Cf. MCGOWAN, Todd, “Hitchcock’s Ethics of Suspense: Psychoanalysis and the Devaluation of the Subject”. In: op. cit., p. 508-528.
[15] Cf. id. ibid., p. 508.
[16] Cf. id. ibid., p. 510-513.
[17] Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 1.
[18] Cf. id. ibid.
[19]  Cf. id. ibid., p. 10.
[20] Cf. id. ibid.
[21] Cf. id. ibid., p. 28-29.
[22] id. ibid., p. 29.
[23] id. ibid.


Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012

Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

Ler o texto completo aqui


Imagem: Alfred Hitchcock e Margaret Lockwood (Iris) durante as filmagens de The Lady Vanishes


Para ver o trailer de The Lady Vanishesaqui

Para ver o filme: aqui