Música e conspiração em The Lady
Vanishes de Alfred Hitchcock*
Iris: Bandrika may have a dictator but tonight
we’re painting it red.
Quando
Alfred Hitchcock dirige em 1938 The Lady
Vanishes[1],
tinha já realizado uma longa lista de filmes na Grã-Bretanha e recebia, por
aqueles dias, um convite de David Selznick para trabalhar em Hollywood, que
viria a aceitar. The Lady Vanishes
representa de algum modo o auge e o final da carreira britânica de Hitchcock[2].
Ocupando este lugar-charneira, The Lady
Vanishes cruza temas e motivos com outros filmes desta primeira fase,
nomeadamente a primeira versão de The Man
Who Knew Too Much (1934), The 39
Steps (1935), e Young and Innocent
(1937), temas e motivos esses que irão percorrer toda a produção da fase
hollywoodiana de Hitchcock. Esse período áureo do cineasta torná-lo-ia conhecido
do grande público e marcaria decisivamente a história do cinema – basta pensar
na segunda versão de The Man Who Knew Too
Much (1950) e em North by Northwest
(1959), a variação americana de The 39
Steps[3]. Um
destes temas que percorre toda a obra de Hitchcock é a conspiração.
O género novo que Hitchcock estava a
criar em cinema era o filme de suspense ou thriller[4],
sob influência do cinema expressionista de F. W. Murnau e de Fritz Lang[5]. A
rigor, o seu primeiro filme deste género é The
Lodger. A Story of the London Fog (1927). Mas o mais conhecido filme destes
primórdios da sua carreira é Blackmail,
por ser simultaneamente o primeiro filme sonoro (“talkie”) que realiza, em 1929. E será com a primeira versão de The Man Who Knew Too Much – o primeiro
thriller sinfónico de Hitchcock[6] - que
o realizador começa a usar mais incisivamente o tema da conspiração na sua
obra.
A conspiração parece, no entanto, não
lhe interessar tanto em si, mas antes como pano de fundo da intriga. A
conspiração, e o secretismo que a acompanha[7]
tomam, na obra de Hitchcock, a forma daquilo que o próprio realizador denominou
“MacGuffin”. Este estranho termo tem origem numa anedota, segundo ele conta,
envolvendo dois escoceses num comboio de Londres para a Escócia. Um deles pergunta
ao outro o que contém um embrulho na bagageira, ao que este responde ser um
“MacGuffin”. À pergunta sobre o que é um “MacGuffin”, responde ser uma
armadilha para apanhar leões nas terras altas da Escócia. Mas, observa o
companheiro de viagem, não há leões nas terras altas da Escócia – então,
replica, também não há nenhum “MacGuffin”[8]. E Hitchcock terá concluído, ao narrar
esta anedota a Truffaut: “So you see that a MacGuffin is actually nothing at
all.”[9]
Em toda a sua extensa filmografia
baseada no tema da conspiração e usando “MacGuffins”, Hitchcock não identifica
o país ou países envolvidos, nem especifica qual a causa nacional em questão –
o “MacGuffin” é um mero pretexto para despoletar a acção do filme. Hitchcock
prefere concentrar-se nas emoções das personagens, que sabe serem perenes e
encontrarem mais ressonância nos espectadores, do que nas intrigas políticas,
demasiado marcadas temporalmente[10] -
como o próprio cineasta declara, “Melodrama is the only thing I can do”[11].
Mas este estranho estratagema denominado “MacGuffin” tem um papel central em
muitos dos seus principais filmes, nomeadamente The Man Who Knew Too Much, The 39 Steps, The Lady Vanishes, Notorious,
North by Northwest, e Torn Curtain[12].
Segundo alguns críticos, Hitchcock terá
subvertido, através das intrigas baseadas nos “MacGuffins”, o género fílmico
predominante na época (“mainstream”),
ao desestabilizar a convenção segundo a qual o espectador deveria conhecer a intriga
do filme a que assiste[13].
Em vez disto, o cineasta usa o “MacGuffin” como pretexto para se concentrar nas
complexidades das personagens, nos seus sentimentos e contradições, na imagem e
na música, na fruição estética, opondo-se a um cinema comercial baseado quase
exclusivamente na acção exterior e num uso banal da banda sonora, feita para
acompanhar as imagens sem qualquer distanciamento ou reflexão sobre elas. A
crítica psicanalítica também situa o cinema de Hitchcock como opondo-se ao
cinema mainstream, por privilegiar a
pulsão em relação ao desejo, a insatisfação em vez da satisfação, e assim o
suspense em vez da surpresa[14].
A surpresa alia o prazer a um momento de presença, enquanto o suspense o alia a
um momento prolongado de ausência[15].
Para este crítico, além dos traços que situam Hitchcock na produção
cinematográfica predominante na época – a sua pertença ao sistema de estúdio, a
sua vontade de chegar a um público alargado - o que decisivamente o distancia
deste cinema é o modo como não direcciona exclusivamente a sua narrativa
cinematográfica para um final satisfatório, bem como o seu desprezo pelos
filmes “whodunit”, que concentram o
interesse do espectador no desenlace do filme, quando se descobre “quem é o
criminoso”[16].
Hitchcock tinha já realizado vários
filmes mudos quando o advento do cinema sonoro o surpreende a meio da
realização de Blackmail, que decide
transformar num “talkie”. Desde o
início que a música é na sua obra um elemento decisivo, quase uma assinatura,
como observou o compositor John Williams[17]. Jack Sullivan resume os aspectos do
tratamento da música presentes em Blackmail
e que se tornaram característicos na obra do realizador: “This revolutionary
1929 film, which he called a silent talkie, was among the first to blend sound
and visual techniques in a personal, sustained, and sophisticated manner that
became an intrinsic part of the atmosphere, psychology, and action.”[18] Sullivan
salienta ainda, no seu excelente estudo sobre a música de Hitchcock, como Blackmail exemplifica muita da
teorização de Sergei Eisenstein sobre o cinema sonoro e a relação entre imagem
e música, bem como a herança do cinema expressionista alemão na obra de Hitchcock.
A mente perturbada da protagonista, Alice, estabelece o modelo de um conceito
central em Hitchcock: “The human psyche spinning its wheels, a central
Hitchcockian concept, was set in motion by Hitchcock’s music in 1929”[19]. A mente humana em toda a sua riqueza
e complexidade e o omnipresente tema da obsessão são o cerne da obra do mestre:
“The vicious circle in Hitchcock, a Poe-like musical design connoting a mental
maelstrom, would continue to spiral into the collapsing waltz in Young and Innocent, the ‘Merry Widow’
dancers in Shadow of a Doubt, the
repeting theremin in Spellbound, the
convoluted ‘love’ theme in Strangers on a
Train, the obsessive spirals in Vertigo,
the lost highway in Psycho.”[20]
Sullivan
analisa como Hitchcock procurou uma maneira de fazer com que a música
“comentasse subtilmente” a acção em vez de a imitar, e sublinha a preferência
de Hitchcock pelo silêncio em muitos casos, dado o seu poder de salientar a
música antes e depois da pausa. Hitchcock procura “deslocar as imagens com a
música”, fazendo a música comentar a imagem, estabelecer um subtexto mais
profundo, naquilo a que ele chama o “uso psicológico da música”, “o som por
debaixo da cena”[21].
Tendo começado a filmar na era do cinema mudo, Hitchcock tinha preferido as
imagens às palavras: as imagens, como gostava de observar, são universais, ao
passo que o som é meramente local[22].
Com Waltzes from Vienna, Hitchcock
reconhece que a música é um tipo de som especial: redescobre o valor universal
da música, que é semelhante ao das imagens como porta do inconsciente[23].
A partir desta redescoberta do valor do som no cinema, Hitchcock vai usar a música
sobretudo como contraponto. A música em Hitchcock, ao mesmo tempo que capaz de
transmitir uma grande emocionalidade, será usada pelo cineasta com grande racionalidade
e inteligência de modo semelhante à montagem. The Man Who Knew Too Much, o filme que realiza a seguir a Waltzes from Vienna, será o seu primeiro
filme de suspense sinfónico, e também o primeiro no qual usa o tema da conspiração.
Centrar-nos-emos na análise do filme The Lady Vanishes para estudar a relação
da música com o tema da conspiração em Hitchcock. Este filme era, de entre os
filmes de Hitchcock, o preferido do realizador francês François Truffaut, por
considerar que continha todos os elementos característicos do cinema do mestre
de suspense. Conspiração e música usam ambas de modo decisivo o silêncio: a
conspiração, no secretismo entre os seus membros, e no silenciar das vítimas
(no assassínio); a música, no intervalo entre as notas, sem o qual não pode
existir. São naturalmente usos muito diferentes, até mesmo opostos, do
silêncio: enquanto o silêncio na conspiração está ligado à morte e ao
secretismo (silenciar, calar, matar; obrigação de segredo do grupo conspirador),
na música o silêncio é uma pausa, um intervalo entre sons, ligação, sequência, e
comunicação. Veremos também como a música está ligada neste filme à ordem e à
memória, por oposição ao caos e ao silêncio definitivo, ao esquecimento,
ligados à conspiração. Este esquematismo e maniqueísmo de The Lady Vanishes, bem como de outros filmes de Hitchcock, em que
forças do Bem se opõem e resistem vitoriosamente às forças do Mal, afastam-no
do film noir e da acusação que já lhe
tem sido feita de relativismo moral, e são plenamente justificados pela época
histórica que se vivia então na Europa, como teremos ocasião de analisar mais em
pormenor (e também pelo género que lhe subjaz como matriz, o romance inglês de
espionagem, cuja origem remonta a The Spy,
de James Fenimore Cooper, de 1821).
* Gostaria de agradecer à Professora Doutora
Marina Ramos Themudo (Universidade de Coimbra) preciosas sugestões durante a redacção
deste texto; à Professora Doutora Ruth Fine (Universidade de Jerusalém) a
importante indicação relativa ao documentário de Hitchcock, as valiosas
referências bibliográficas quanto ao papel da classe médica alemã no
Holocausto, bem como a leitura da versão final; e à Professora Doutora Rosa
Maria Sequeira (Universidade Aberta) a leitura da versão final do texto.
[1] Em Portugal A desaparecida ou Desaparecida!,
no Brasil A dama oculta.
[2] Seguir-se-ia ainda Jamaica Inn, em 1939, um filme dominado pela presença de Charles
Laughton e pouco marcante na produção do realizador, embora tenha sido na época
um enorme sucesso de bilheteira.
[3] Cf.
SULLIVAN, Jack, Hitchcock’s Music. New Haven and London : Yale University
Press, 2006, p. 42.
[4] Cf. id. ibid., p. 21.
[5] Hitchcock tinha trabalhado nos anos 1920
com o realizador britânico Graham Cutts nos estúdios de Babelsberg em Potsdam,
perto de Berlim.
[6] A designação é de Jack Sullivan,
cf. id. ibid., p. 31.
[7] Vd.
BARKUN, Michael, A Culture of Conspiracy.
Apocalyptic Visions in Contemporary America . Berkeley ,
Los Angeles , London :
University of California Press, 2006.
[8] Cf.
SPOTO, Donald, Spellbound by Beauty. Alfred
Hitchcock and His Leading Ladies. London :
Arrow, 2008, p. 28-29.
[9] Cf. MCGOWAN,
Todd, “Hitchcock’s Ethics of Suspense: Psychoanalysis and the Devaluation of
the Subject”. In: A Companion to Alfred
Hitchcock. Ed. by Thomas Leitch and Leland Poague. Blackwell Publishing
Ltd., 2011, p. 514.
[10] Cf. SPOTO,
Donald, op. cit., p. 29.
[11] Cf.
SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 20.
[12] Cf.
SPOTO, Donald, p. 28: “Examples of Hitchcock’s MacGuffin: the stolen jewels in Number Seventeen; the planned
assassination in The Man Who Knew Too
Much; the design for a new aircraft engine in The 39 Steps; the espionage plots in Secret Agent and Sabotage;
the tune containing a diplomatic secret
in The Lady Vanishes; the
secret clause of a treaty in Foreign
Correspondent; the uranium ore in Notorious;
the international politics at stake in the remake of The Man Who Knew Too Much; the microfilmed secrets in North by Northwest; and the secret
formula in Torn Curtain.”
[13] Cf.
MILLER, Toby/KING, Noel, “Accidental Heroes and Gifted Amateurs: Hitchcock and
Ideology”. In: A Companion to Alfred
Hitchcock. Ed. by Thomas Leitch and Leland Poague. Blackwell Publishing
Ltd., 2011, p. 428.
[14]
Cf. MCGOWAN, Todd, “Hitchcock’s Ethics of Suspense: Psychoanalysis and the
Devaluation of the Subject”. In: op. cit.,
p. 508-528.
[15]
Cf. id. ibid., p. 508.
[16]
Cf. id. ibid., p. 510-513.
[17]
Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 1.
[18]
Cf. id. ibid.
[19]
Cf. id.
ibid., p. 10.
[20]
Cf. id. ibid.
[21]
Cf. id. ibid., p. 28-29.
[22]
id. ibid., p. 29.
[23]
id. ibid.
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012
Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
Ler o texto completo aqui
Imagem: Alfred Hitchcock e Margaret Lockwood (Iris) durante as filmagens de The Lady Vanishes
Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui
Para ver o filme: aqui