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sábado, 13 de abril de 2013







 
 
 
 


 
Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock
(...)

       A história é esta, adaptada do romance de Ethel Lina White The Wheel Spins [1]: nos primeiros trinta minutos do filme assistimos a várias cenas num hotel de um país ficcional, Bandrika, algures na Europa central, no imediato pré-Segunda Grande Guerra, onde se fala um vernáculo inventado por Hitchcock. Um grupo de passageiros britânicos em curso numa viagem de comboio transcontinental ficou retido devido a uma avalanche que bloqueou a linha férrea. O hotel da pequena localidade está superlotado, não há quartos nem comida suficiente para todos os hóspedes, e assistimos a várias cenas em tom de comédia envolvendo personagens que se vão distinguir em três grupos. As personagens centrais são uma senhora de idade, Miss Froy (Dame May Whitty), uma jovem que regressa a Londres para se casar, Iris Henderson (Margaret Lockwood), e um jovem etno-musicólogo que estuda a música e danças da região, Gilbert (Michael Redgrave, na sua estreia no cinema). Miss Froy trava conhecimento com Iris ainda no hotel e como Iris foi atingida por um vaso de flores na cabeça antes de embarcar no comboio, Miss Froy diz às duas amigas da jovem que ficam na estação, “I’ll look after her.” No comboio, e após tomarem chá na carruagem-restaurante e fazerem as apresentações formais (Miss Froy escreve o nome na janela porque o apito do comboio impede Iris de perceber o que ela diz), Iris adormece ou perde consciência pela segunda vez (a primeira, logo que entra no comboio) por causa da pancada na cabeça e, quando acorda, Miss Froy tinha desaparecido. A única pessoa no comboio que ajuda Iris a procurar a sua companheira de viagem é Gilbert. O segundo grupo é constituído por personagens à volta do Dr. Hartz, um neuro-cirurgião que se revelará como chefe do grupo de conspiradores, e seus mercenários a viajar no comboio. Estas personagens quase não têm desenvolvimento psicológico, todas são caricaturadas e grotescas. O terceiro grupo de personagens retrata a classe-média britânica da época, mostrando as contradições de género, classe e sexualidade[2] da sociedade inglesa de então. Ainda no hotel, Miss Froy escuta à noite, à janela, uma serenata, e vemo-la repetir, pensativa, a melodia. O que ela não vê é que o músico foi estrangulado (apenas vemos as sombras das mãos do estrangulador). Depois de variadas peripécias no comboio, Iris e Gilbert descobrem que Miss Froy, que se apresentara como professora de música e preceptora, foi raptada pelo grupo do Dr. Hartz e corre perigo de vida. Miss Froy acaba por conseguir fugir do comboio com a ajuda do jovem par, não sem antes lhes revelar que não é quem parece e pedir-lhes para levarem uma mensagem codificada numa melodia – a mesma da serenata – ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Londres. Os minutos finais do filme mostram-nos a Victoria Station, com uma muito breve “cameo-appearance” de Hitchcock, de fato preto, chapéu na mão e a fumar um cigarro, e Iris e Gilbert a dirigirem-se para o Foreign Office. Gilbert, na excitação de ter conseguido ficar com Iris, que desistiu de um casamento de fachada e por interesse, esqueceu-se da melodia e só consegue trautear a Marcha Nupcial. Mas de uma porta fechada ecoa ao piano a melodia reveladora, e ao entrarem encontram Miss Froy ao piano e juntam as mãos no reencontro.

       A primeira vez que Iris e Gilbert suspeitam de uma conspiração acontece na cena na qual Iris e Gilbert procuram Miss Froy no vagão de transporte de bagagem. Gilbert não está a princípio convencido da existência real de Miss Froy. Chega mesmo a dizer a Iris, na carruagem-restaurante: “You’re always seeing things!”, uma descrição que se adapta ao significativo nome de uma das heroínas deste filme e a identifica como foco narrativo principal, já que o espectador segue a perspectiva de Iris, que incorpora a visão do próprio realizador. Mas a partir do momento em que vê, por um feliz acaso e apenas por fugidios segundos, o rótulo da embalagem de chá que Iris lhe tinha dito ter sido dada por Miss Froy ao empregado de mesa para preparar o chá (visão que é o contraponto do nome que Miss Froy escrevera na janela do comboio e que desaparecera), Gilbert começa a acreditar na versão de Iris e iniciam uma busca conjunta à procura de Miss Froy[3]. Essa busca vai revelar-se proveitosa: descobrem que o italiano que viaja no mesmo compartimento é um ilusionista, e encontram um eloquente cartaz do espectáculo do Grande Doppo, mágico e ilusionista, intitulado “The Vanishing Lady”. Este pormenor, como tudo em Hitchcock, é igualmente revelador, e uma espécie de mise-en-abyme do filme The Lady Vanishes, que aliás assim se chama como homenagem do cineasta a um conto de Alexander Woollcott, “The Vanishing Lady”, do seu livro While Rome Burns (1934)[4]. Como que a confirmar estes dados novos, Iris e Gilbert encontram em seguida os óculos de Miss Froy. Na verdade, o terceiro grupo de viajantes, os indiferentes, mentem por razões meramente egoístas dizendo não ter visto Miss Froy com Iris: o casal adúltero não quer complicações, e o par homossexual não quer atrasos para chegar a tempo a um jogo de cricket. Os dotes detectivescos de Gilbert e Iris combinam-se complementarmente, a racionalidade e dedução masculinas e a intuição feminina[5], num delicioso diálogo:

Iris: You were about to tell me about your theory.

Gilbert: Oh, my theory. Well (pondo o boné à Sherlock Holmes) my theory, my dear Watson, is that we are in very deep waters indeed. (Iris estende-lhe o cachimbo) (…) In the first place a little old lady disappears. Everyone that saw her promptly insist that she never was there in the first place. Right?

Iris: Right.

Gilbert: We know that she was. Therefore they did see her. Therefore they are deliberately lying. But why?

Iris: I don’t know, I’m only Watson!

É Gilbert quem deduz que a paciente do Dr. Hartz cujo rosto está envolto em ligaduras deve ser Miss Froy; e Iris quem desconfia da freira (interpretada por Catherine Lacy na sua estreia em cinema) que está a tomar conta da doente, por usar sapatos de salto alto. Iris e Gilbert contam as suas descobertas ao Dr. Hartz, que se tem fingido muito solícito com eles:

Gilbert: How do you know it is not Miss Froy?

Iris: We believe there has been a substitution, Doctor.

Dr. Hartz: You really mean to say that you think that someone has -

Gilbert: (trauteia as primeiras notas da melodia reveladora) (...)

Iris: It’s a conspiracy, that’s what it is! All these people on the train say they haven’t seen Miss Froy, but they have.

(…)

(O Dr. Hartz faz um brinde aos dois, tentando que Iris acabe a sua bebida que tem supostamente um poderoso sedativo)

Dr. Hartz: Go ahead! And may our enemies, if they exist, be unconscious of our purpose!

(…)

(Já na carruagem com os dois)

Dr. Hartz: Yes, the patient is Miss Froy. She will be taken off the train at Morsken in about three minutes. She will be removed to the hospital there and operated. Unfortunately the operation will not be successful. Oh, I should perhaps explain – the operation will be performed by me. (Aponta um revólver a Gilbert) You see, I am in this conspiracy. You are a very alert young couple (…)

 
              Mas de que conspiração se trata, afinal, e porquê a perseguição a Miss Froy? Só quase no final do filme se revela a sua identidade. No hotel, ela apresenta-se como professora de música e preceptora, salientando de modo idealizado o carácter musical dos habitantes de Bandrika, em conversa com o casal gay, muito indisposto pela falta de comida no restaurante do hotel:


Miss Froy: I’m a governess and a music teacher, you know. (…) In the six years that I lived here I’ve grown to love the country. (…) Everyone sings here. The people are just like happy children, with laughter on their lips and music in their hearts.

Charters: It’s not reflected in their politics, you know.

Miss Froy: I never think you should judge a country by its politics.

 
Mas Miss Froy não é quem aparenta ser. Durante um tiroteio quase no final do filme ela chama à parte Iris e Gilbert e entrega-lhes uma mensagem destinada ao Foreign Office, no caso de não conseguir sobreviver, já que vai arriscar fugir do comboio:


Miss Froy: I just wanted to tell you that I must be getting along now. (…) Listen carefully: in case I’m unlucky and you get through, I want you to take back a message to a Mr. Callendar at the Foreign Office in White Hall.

Iris: Then you are a spy!

Miss Froy: I always think that’s such a grim word.

Gilbert: What’s the message?

Miss Froy: It’s a tune. It contains - in code, of course, the vital clause of a secret pact between two European countries. I want you to memorize it. The first part of it goes like this (trauteia).


“A cláusula vital de um pacto secreto entre dois países europeus”, contida em código numa canção, é o “MacGuffin” do filme, e a única revelação que temos sobre o mistério que envolve a personagem desaparecida. Tudo o resto é uma lacuna que o espectador tem de preencher. Miss Froy é a figura principal do filme, uma heroína diferente de Iris: ela pertence ao grupo de heroínas de Hitchcock que são auto-suficientes e se assumem como agentes secretas[6]. A relação que estabelece com Iris como figura de mãe – “I’ll look after her”, diz de Iris ao entrar no comboio, quase se inverte durante toda a sequência do comboio, em que é Iris quem cuida de Miss Froy. Mas o inverso não deixa de ser verdade, enquanto o seu trabalho secreto visa cuidar de todos. Ela é a senhora que desaparece, mas há algo de ambíguo no título do filme, pois é Iris que desmaia ao entrar no comboio, o primeiro de cinco desmaios durante a viagem. A vida de Miss Froy depende da recordação que Iris mantém dela, e por isso o seu desaparecimento ou reaparecimento depende de a sua jovem companheira de viagem ser capaz de provar a veracidade da sua versão/visão/recordação. Este poderá talvez ser interpretado como o traço mais moderno e contemporâneo do filme: “It’s tempting to seek topicality in the appeasement theme, the espionage plot and the film’s meditation on Englishness, but none of these elements resonate much today. What does is Hitchcock’s manipulation of Iris’ consciousness and, through the use of the train as a vehicle for dreaming, the idea that she, not Miss Froy (the literal disappearee), is the lady who vanishes.”[7]
 

(a continuar)

[1] WHITE, Ethel Lina, The Wheel Spins. London: Collins, 31937 (1ª edição 1936).
[2] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 442.
[3] Vd. a este propósito ALLEN, Richard, Hitchcock’s Romantic Irony. New York/Chichester: Columbia University Press, 2007, p. 84 ss., “The Joint Quest Narrative”.
[4] O próprio Hitchcock narra a Truffaut esta lenda urbana de uma conspiração internacional na Exposição Mundial de 1889 em Paris: duas inglesas, mãe e filha, em viagem de regresso da Índia para o Canadá, param em Paris para ver a Exposição. A mãe adoece, e o médico pede à jovem que vá buscar um medicamento. Quando volta ao hotel, a mãe tinha desaparecido. No final vem-se a descobrir que a mãe tinha tido peste. Hitchcock voltaria a adaptar esta lenda em 1955, num episódio de “Alfred Hitchcock Presents”, “Into Thin Air”, com Patricia Hitchcock no papel de filha. Vd. Truffaut/Hitchcock. Ed. Robert Fischer. München Zürich: Diana Verlag, 1983, p. 98 ss.  Vd. também MCGILLIGAN, Patrick, Alfred Hitchcock: a life in darkness and light. New York: Harper Collins Publishers, 2003, p. 207: “Changing the film’s title to The Lady Vanishes was a nod to Woollcott, one of the writers Hitchcock devoutly read in his favorite U.S. magazine, the New Yorker.”
[5] Cf. ALLEN, Richard, op. cit., p. 82 ss.
[6] Cf. ALLEN, Richard, op. cit., p. 82 e p. 86: “women in Hitchcock’s English thrillers are defined more by their agency  than by their sexual identity”, ao contrário do que sucede no período americano, dada a interpretação de feminilidade como maternidade ou como sexualidade, ditada pelo sistema de estrelato americano.
[7] Vd. FULLER, Graham, “Mystery Train”, in: Sight and Sound, January 2008, p. 37.

 
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 
 

Ler o texto completo  aqui


Imagens:


Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui

Para ver o filme: aqui

quinta-feira, 4 de abril de 2013





 

Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock*


Iris: Bandrika may have a dictator but tonight we’re painting it red.

 
       Quando Alfred Hitchcock dirige em 1938 The Lady Vanishes[1], tinha já realizado uma longa lista de filmes na Grã-Bretanha e recebia, por aqueles dias, um convite de David Selznick para trabalhar em Hollywood, que viria a aceitar. The Lady Vanishes representa de algum modo o auge e o final da carreira britânica de Hitchcock[2]. Ocupando este lugar-charneira, The Lady Vanishes cruza temas e motivos com outros filmes desta primeira fase, nomeadamente a primeira versão de The Man Who Knew Too Much (1934), The 39 Steps (1935), e Young and Innocent (1937), temas e motivos esses que irão percorrer toda a produção da fase hollywoodiana de Hitchcock. Esse período áureo do cineasta torná-lo-ia conhecido do grande público e marcaria decisivamente a história do cinema – basta pensar na segunda versão de The Man Who Knew Too Much (1950) e em North by Northwest (1959), a variação americana de The 39 Steps[3]. Um destes temas que percorre toda a obra de Hitchcock é a conspiração.

       O género novo que Hitchcock estava a criar em cinema era o filme de suspense ou thriller[4], sob influência do cinema expressionista de F. W. Murnau e de Fritz Lang[5]. A rigor, o seu primeiro filme deste género é The Lodger. A Story of the London Fog (1927). Mas o mais conhecido filme destes primórdios da sua carreira é Blackmail, por ser simultaneamente o primeiro filme sonoro (“talkie”) que realiza, em 1929. E será com a primeira versão de The Man Who Knew Too Much – o primeiro thriller sinfónico de Hitchcock[6] - que o realizador começa a usar mais incisivamente o tema da conspiração na sua obra.

       A conspiração parece, no entanto, não lhe interessar tanto em si, mas antes como pano de fundo da intriga. A conspiração, e o secretismo que a acompanha[7] tomam, na obra de Hitchcock, a forma daquilo que o próprio realizador denominou “MacGuffin”. Este estranho termo tem origem numa anedota, segundo ele conta, envolvendo dois escoceses num comboio de Londres para a Escócia. Um deles pergunta ao outro o que contém um embrulho na bagageira, ao que este responde ser um “MacGuffin”. À pergunta sobre o que é um “MacGuffin”, responde ser uma armadilha para apanhar leões nas terras altas da Escócia. Mas, observa o companheiro de viagem, não há leões nas terras altas da Escócia – então, replica, também não há nenhum “MacGuffin”[8]. E Hitchcock terá concluído, ao narrar esta anedota a Truffaut: “So you see that a MacGuffin is actually nothing at all.”[9]

       Em toda a sua extensa filmografia baseada no tema da conspiração e usando “MacGuffins”, Hitchcock não identifica o país ou países envolvidos, nem especifica qual a causa nacional em questão – o “MacGuffin” é um mero pretexto para despoletar a acção do filme. Hitchcock prefere concentrar-se nas emoções das personagens, que sabe serem perenes e encontrarem mais ressonância nos espectadores, do que nas intrigas políticas, demasiado marcadas temporalmente[10] - como o próprio cineasta declara, “Melodrama is the only thing I can do”[11]. Mas este estranho estratagema denominado “MacGuffin” tem um papel central em muitos dos seus principais filmes, nomeadamente The Man Who Knew Too Much, The 39 Steps, The Lady Vanishes, Notorious, North by Northwest, e Torn Curtain[12].

       Segundo alguns críticos, Hitchcock terá subvertido, através das intrigas baseadas nos “MacGuffins”, o género fílmico predominante na época (“mainstream”), ao desestabilizar a convenção segundo a qual o espectador deveria conhecer a intriga do filme a que assiste[13]. Em vez disto, o cineasta usa o “MacGuffin” como pretexto para se concentrar nas complexidades das personagens, nos seus sentimentos e contradições, na imagem e na música, na fruição estética, opondo-se a um cinema comercial baseado quase exclusivamente na acção exterior e num uso banal da banda sonora, feita para acompanhar as imagens sem qualquer distanciamento ou reflexão sobre elas. A crítica psicanalítica também situa o cinema de Hitchcock como opondo-se ao cinema mainstream, por privilegiar a pulsão em relação ao desejo, a insatisfação em vez da satisfação, e assim o suspense em vez da surpresa[14]. A surpresa alia o prazer a um momento de presença, enquanto o suspense o alia a um momento prolongado de ausência[15]. Para este crítico, além dos traços que situam Hitchcock na produção cinematográfica predominante na época – a sua pertença ao sistema de estúdio, a sua vontade de chegar a um público alargado - o que decisivamente o distancia deste cinema é o modo como não direcciona exclusivamente a sua narrativa cinematográfica para um final satisfatório, bem como o seu desprezo pelos filmes “whodunit”, que concentram o interesse do espectador no desenlace do filme, quando se descobre “quem é o criminoso”[16].

       Hitchcock tinha já realizado vários filmes mudos quando o advento do cinema sonoro o surpreende a meio da realização de Blackmail, que decide transformar num “talkie”. Desde o início que a música é na sua obra um elemento decisivo, quase uma assinatura, como observou o compositor John Williams[17]. Jack Sullivan resume os aspectos do tratamento da música presentes em Blackmail e que se tornaram característicos na obra do realizador: “This revolutionary 1929 film, which he called a silent talkie, was among the first to blend sound and visual techniques in a personal, sustained, and sophisticated manner that became an intrinsic part of the atmosphere, psychology, and action.”[18] Sullivan salienta ainda, no seu excelente estudo sobre a música de Hitchcock, como Blackmail exemplifica muita da teorização de Sergei Eisenstein sobre o cinema sonoro e a relação entre imagem e música, bem como a herança do cinema expressionista alemão na obra de Hitchcock. A mente perturbada da protagonista, Alice, estabelece o modelo de um conceito central em Hitchcock: “The human psyche spinning its wheels, a central Hitchcockian concept, was set in motion by Hitchcock’s music in 1929”[19]. A mente humana em toda a sua riqueza e complexidade e o omnipresente tema da obsessão são o cerne da obra do mestre: “The vicious circle in Hitchcock, a Poe-like musical design connoting a mental maelstrom, would continue to spiral into the collapsing waltz in Young and Innocent, the ‘Merry Widow’ dancers in Shadow of a Doubt, the repeting theremin in Spellbound, the convoluted ‘love’ theme in Strangers on a Train, the obsessive spirals in Vertigo, the lost highway in Psycho.”[20]

       Sullivan analisa como Hitchcock procurou uma maneira de fazer com que a música “comentasse subtilmente” a acção em vez de a imitar, e sublinha a preferência de Hitchcock pelo silêncio em muitos casos, dado o seu poder de salientar a música antes e depois da pausa. Hitchcock procura “deslocar as imagens com a música”, fazendo a música comentar a imagem, estabelecer um subtexto mais profundo, naquilo a que ele chama o “uso psicológico da música”, “o som por debaixo da cena”[21]. Tendo começado a filmar na era do cinema mudo, Hitchcock tinha preferido as imagens às palavras: as imagens, como gostava de observar, são universais, ao passo que o som é meramente local[22]. Com Waltzes from Vienna, Hitchcock reconhece que a música é um tipo de som especial: redescobre o valor universal da música, que é semelhante ao das imagens como porta do inconsciente[23]. A partir desta redescoberta do valor do som no cinema, Hitchcock vai usar a música sobretudo como contraponto. A música em Hitchcock, ao mesmo tempo que capaz de transmitir uma grande emocionalidade, será usada pelo cineasta com grande racionalidade e inteligência de modo semelhante à montagem. The Man Who Knew Too Much, o filme que realiza a seguir a Waltzes from Vienna, será o seu primeiro filme de suspense sinfónico, e também o primeiro no qual usa o tema da conspiração.

       Centrar-nos-emos na análise do filme The Lady Vanishes para estudar a relação da música com o tema da conspiração em Hitchcock. Este filme era, de entre os filmes de Hitchcock, o preferido do realizador francês François Truffaut, por considerar que continha todos os elementos característicos do cinema do mestre de suspense. Conspiração e música usam ambas de modo decisivo o silêncio: a conspiração, no secretismo entre os seus membros, e no silenciar das vítimas (no assassínio); a música, no intervalo entre as notas, sem o qual não pode existir. São naturalmente usos muito diferentes, até mesmo opostos, do silêncio: enquanto o silêncio na conspiração está ligado à morte e ao secretismo (silenciar, calar, matar; obrigação de segredo do grupo conspirador), na música o silêncio é uma pausa, um intervalo entre sons, ligação, sequência, e comunicação. Veremos também como a música está ligada neste filme à ordem e à memória, por oposição ao caos e ao silêncio definitivo, ao esquecimento, ligados à conspiração. Este esquematismo e maniqueísmo de The Lady Vanishes, bem como de outros filmes de Hitchcock, em que forças do Bem se opõem e resistem vitoriosamente às forças do Mal, afastam-no do film noir e da acusação que já lhe tem sido feita de relativismo moral, e são plenamente justificados pela época histórica que se vivia então na Europa, como teremos ocasião de analisar mais em pormenor (e também pelo género que lhe subjaz como matriz, o romance inglês de espionagem, cuja origem remonta a The Spy, de James Fenimore Cooper, de 1821).
 
(a continuar)


* Gostaria de agradecer à Professora Doutora Marina Ramos Themudo (Universidade de Coimbra) preciosas sugestões durante a redacção deste texto; à Professora Doutora Ruth Fine (Universidade de Jerusalém) a importante indicação relativa ao documentário de Hitchcock, as valiosas referências bibliográficas quanto ao papel da classe médica alemã no Holocausto, bem como a leitura da versão final; e à Professora Doutora Rosa Maria Sequeira (Universidade Aberta) a leitura da versão final do texto.
 
[1] Em Portugal A desaparecida ou Desaparecida!, no Brasil A dama oculta.
[2] Seguir-se-ia ainda Jamaica Inn, em 1939, um filme dominado pela presença de Charles Laughton e pouco marcante na produção do realizador, embora tenha sido na época um enorme sucesso de bilheteira.
[3] Cf. SULLIVAN, Jack, Hitchcock’s Music. New Haven and London: Yale University Press, 2006, p. 42.
[4] Cf. id. ibid., p. 21.
[5] Hitchcock tinha trabalhado nos anos 1920 com o realizador britânico Graham Cutts nos estúdios de Babelsberg em Potsdam, perto de Berlim.
[6] A designação é de Jack Sullivan, cf. id. ibid., p. 31.
[7] Vd. BARKUN, Michael, A Culture of Conspiracy. Apocalyptic Visions in Contemporary America. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2006.
[8] Cf. SPOTO, Donald, Spellbound by Beauty. Alfred Hitchcock and His Leading Ladies. London: Arrow, 2008, p. 28-29.
[9] Cf. MCGOWAN, Todd, “Hitchcock’s Ethics of Suspense: Psychoanalysis and the Devaluation of the Subject”. In: A Companion to Alfred Hitchcock. Ed. by Thomas Leitch and Leland Poague. Blackwell Publishing Ltd., 2011, p. 514.
[10] Cf. SPOTO, Donald, op. cit., p. 29.
[11] Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 20.
[12] Cf. SPOTO, Donald, p. 28: “Examples of Hitchcock’s MacGuffin: the stolen jewels in Number Seventeen; the planned assassination in The Man Who Knew Too Much; the design for a new aircraft engine in The 39 Steps; the espionage plots in Secret Agent and Sabotage; the tune containing a diplomatic secret  in The Lady Vanishes; the secret clause of a treaty in Foreign Correspondent; the uranium ore in Notorious; the international politics at stake in the remake of The Man Who Knew Too Much; the microfilmed secrets in North by Northwest; and the secret formula in Torn Curtain.”
[13] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, “Accidental Heroes and Gifted Amateurs: Hitchcock and Ideology”. In: A Companion to Alfred Hitchcock. Ed. by Thomas Leitch and Leland Poague. Blackwell Publishing Ltd., 2011, p. 428.
[14] Cf. MCGOWAN, Todd, “Hitchcock’s Ethics of Suspense: Psychoanalysis and the Devaluation of the Subject”. In: op. cit., p. 508-528.
[15] Cf. id. ibid., p. 508.
[16] Cf. id. ibid., p. 510-513.
[17] Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 1.
[18] Cf. id. ibid.
[19]  Cf. id. ibid., p. 10.
[20] Cf. id. ibid.
[21] Cf. id. ibid., p. 28-29.
[22] id. ibid., p. 29.
[23] id. ibid.


Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012

Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

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Imagem: Alfred Hitchcock e Margaret Lockwood (Iris) durante as filmagens de The Lady Vanishes


Para ver o trailer de The Lady Vanishesaqui

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