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quarta-feira, 8 de maio de 2013


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock

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The Lady Vanishes comenta subtilmente a política europeia de 1938 e, apesar da censura do British Board of Film Censors, que não permitia qualquer crítica aberta a governos estrangeiros[1], a imprensa da época compreendeu a referência de Hitchcock: “most of the film’s action takes place ‘in Central Europe, where almost anything is liable to happen nowadays (and things do happen)’”[2]. Hitchcock critica tanto a passividade britânica, como a agressividade alemã, mas alerta seriamente para o perigo nazi que ameaçava já claramente a Europa. O neuro-cirurgião que chefia a conspiração apresenta-se como o Doutor Egon Hartz, de Praga - o nome Hartz é uma combinação de hard (hart, duro) com heart (Herz, coração) e preludia a violência do rapto e planeado assassínio de Miss Froy, uma agente britânica (no romance de White ela era uma cidadã comum que foi confundida com uma espia)[3].


       Hitchcock tinha insistido no seu desejo de juntar ao enredo do romance de White um ilusionista, e veremos porquê. O Dr. Hartz chefia uma conspiração que tem como objectivo impedir a saída de Bandrika, governada por um tirano, de informações vitais sobre um pacto secreto entre dois países europeus. Para tal, terá de raptar, esconder e posteriormente eliminar numa fatal operação uma agente secreta britânica. O parceiro do neuro-cirurgião, o ilusionista Signor Doppo (especialista no número “The Vanishing Lady Act”) contribuirá decisivamente para tornar imperceptível o desaparecimento violento de Miss Froy. Karen Beckman é muito clara quanto ao significado ideológico desta aliança entre o médico e o ilusionista: “Through this aliance, Hitchcock uncovers a key factor of the workings of ideology – the mystification of the moment of violent incision.”[4] O mundo da ilusão e do ilusionismo aponta para o cinema, tal como vimos, mas também para a ideologia. Beckman faz o paralelo do assassínio de elementos indesejados – o seu corte do corpo social – com os cortes da montagem, mostrando como Hitchcock mantém o espectador atento em relação a esta técnica, nomeadamente no episódio central, a que não assistimos, do rapto violento de Miss Froy: “In The Lady Vanishes, a film steeped in the politics of Britain’s relationship with Germany and Central Europe, ‘the cut’ becomes crucial in its narrative and cinematic function. Hitchcock employs a variety of fragmenting camera techniques to draw our attention to the hidden incisions of the editorial cuts.”[5]

 
       Karen Beckman mostra claramente o paralelo entre esta intriga internacional de The Lady Vanishes e a retórica fascista da década de 1930, contida na linguagem violenta de Hitler e Mussolini para descrever o seu papel de líderes na recuperação daquilo que consideravam o corpo doente da nação. Mussolini escreveu que era necessário “to use the scalpel to take away everything parasitic, harmful, and suffocating”, e Hitler usou o mesmo discurso da remoção cirúrgica e representou os Judeus como uma praga ou bactéria que infectava a nação alemã[6]. Hitchcock contrapõe às forças conjuntas da conspiração do Dr. Hartz, aliado com o Signor Doppo, a consciência que procura criar no espectador da ilusão de continuidade cinemática, chamando a atenção para os cortes da montagem. O espectador não assiste à cena do desaparecimento de Miss Froy, que ocorre durante o sono de Iris. E a cena no vagão de transporte da bagagem, na qual Iris e Gilbert descobrem toda a parafernália do ilusionista, é fulcral nesta consciencialização: “When the magician, artist of legerdemain, suddenly pulls out a knife, the illusion of mystery fades and exposes the true violence of Miss Froy’s disappearance.”[7] Logo a seguir a cena mostra uma série de fragmentos, pondo em evidência os cortes da montagem[8], para manter bem desperta a consciência do espectador quer em relação à ilusão da continuidade e unidade cinemáticas, quer em relação ao processo ideológico que opera na conspiração. Destes cortes poderíamos destacar como exemplo o corte da figura de Iris pela cinta, na cena da luta com o Signor Doppo, recordando a convenção do ilusionismo, e do filme nos seus primórdios, de representação do truque de cortar uma mulher ao meio. Este corte recorda uma outra cena no hotel de Bandrika, em que Iris festeja com as amigas a despedida de solteira e o empregado traz mais uma garrafa de champanhe ao quarto. A câmara mostra-nos Iris de pé em cima da mesa, mas só a vemos da cinta para baixo, enquanto ela diz:

 

I, Iris Matilda Henderson, a spinster of no particular parish, solemnly renounce my maidenly past and declare that on Thursday 26… I shall take the veil and orange blossom and change my name to Lady Charles Fotheringail.

 

No momento em que declara esta cisão na identidade pelo casamento, como bem observa Karen Beckman, tomamos consciência da ansiedade de Iris em relação ao seu próprio desaparecimento, o que, combinado com o nome Iris, a vai tornar a pessoa ideal para procurar Miss Froy[9]. Os óculos de Miss Froy, que Iris e Gilbert encontram nesta cena, estão partidos, e Iris e Gilbert são atacados pelo Signor Doppo, armado de uma faca: “Iris: He’s got a knife! Gilbert: Get hold of it before he cuts a slice off me.” Forçando o espectador do filme a ter esta consciência, Hitchcock alerta para “the machinations of an ideology like National Socialism which employs the illusion of disappearance to disguise the violent excision of that which is other to its own self-image”[10].

 
       A montagem corta do todo fílmico aquelas partes que estão a mais, criando um objecto estético caracterizado pela unidade e continuidade. O paralelo com o discurso ideológico do nacional-socialismo é evidente, também aí se eliminou o que não é a auto-imagem. A ideologia nazi tinha a pretensão de criar uma unidade limpa, depurada do que está a mais, do que não considerava herança pura, i.e. da descontinuidade, da diferença, de tudo o que julgava ser uma ameaça à identidade, à continuidade rácica que se recebe pela herança do sangue, e mais ainda purificando-a. Embora em áreas absolutamente distintas, pretendem o mesmo resultado, tendem para o mesmo objectivo: a montagem no plano ideal do estético, a ideologia nazi na existência histórica dos povos. São dois actos verdadeiramente criadores, que visam modelar a realidade como obra de arte. Aquilo que o nacional-socialismo tentou fazer no plano ideológico foi obter uma configuração ideal (do seu ponto de vista) da realidade no plano histórico-social, visando organismos que se vão desenvolvendo na sua diferença, na sua realidade, e que por isso constituem o que não é moldável. Na Sociologia não se podem fazer experiências, trata-se de uma área na qual se trabalha com seres humanos na sua inter-relação e interacção, e na qual a vontade e a decisão dos indivíduos contrariam qualquer intenção na modelagem do social. Estas realidades vivas foram camufladas nos campos de concentração, criando situações artificiais que implicavam o fechamento, como no laboratório, e o silenciamento à volta do que aí se fazia.


       Toda esta chamada de atenção para os cortes da montagem cinematográfica no filme, aliada ao tratamento dado à figura do Dr. Hartz, estranhamente prefiguram o que viria a ser o papel da classe médica alemã durante a Segunda Grande Guerra e o Holocausto, executando experiências cruéis e letais em sujeitos humanos entre 1939 e 1945 em campos de concentração nazis:

 

Between 1939 and 1945, at least seventy medical research projects involving cruel and often lethal experimentation on human subjects were conducted in Nazi concentration camps. These projects were carried out by established institutions within the Third Reich and fell into three areas: research aimed at improving the survival and rescue of German troops; testing of medical procedures and pharmaceuticals; and experiments that sought to confirm Nazi racial ideology. More than seven thousand victims of such medical experiments have been documented. Victims include Jews, Poles, Roma (Gypsies), political prisoners, Soviet prisoners of war, homosexuals, and Catholic priests. [11]

 

       Para concluir, gostaria de salientar a carga ideológica do filme que Karen Beckman compara com The Lady Vanishes, por tratar o mesmo fio narrativo, o mito urbano à volta da história verdadeira de duas senhoras, mãe e filha, que passam por Paris na altura da Exposição Mundial de 1889, vindas da Índia de regresso ao Canadá[12]. Trata-se do filme de 1938 do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte Spuren (The Footprints Blown Away). Harlan mantém a sua narrativa muito próxima da história herdada, mas com uma carga ideológica evidente: o filme abre com uma longa sequência de um cortejo alegórico em que estão representados os vários continentes, abrindo com a Europa representada por uma mulher loira quase nua da cinta para cima montando um touro, seguida por vários aborígenes representando os outros continentes. No final da sequência a câmara detém-se nos rostos de mãe e filha, sugerindo a sua diferença (são canadianas). Depois do desaparecimento misterioso da senhora mais velha, a filha vem a descobrir que a mãe tinha tido a peste e tinha sido incinerada pelo Dr. Moreau (uma reminiscência estranha do médico vivisseccionista de uma obra de H. G. Wells), com quem no entanto vem a casar-se. Trata-se de uma muito clara apologética da purificação, da purga, queima-se e apaga-se a recordação, faz-se desaparecer da realidade e da memória tudo aquilo que pudesse vir a contaminar a sociedade.
 

       A música de Louis Levy acompanha o desaparecimento de Miss Froy, para só reaparecer no final do filme. Não poderia deixar de assim ser, dado o significado da música no filme, como opondo-se radicalmente ao mundo da conspiração. Não poderia evocar o excesso da música wagneriana, demasiado próxima da Alemanha de então, embora Hitchcock cedo venha a retomar em Rebecca uma banda sonora muito diferente da austeridade da música em The Lady Vanishes. Quando reaparece, a música de Lévy recordará o espectador do que viu antes do desaparecimento de Miss Froy, ligando-se assim a esta personagem e ao que ela representa, para melhor se nos gravar na memória. Isto corresponde à função que a música tem na filmografia de Hitchcock de uma maneira geral: mesmo quando é instrumentalizada pela conspiração, como é o caso da longa sequênca sinfónica no Albert Hall das duas versões de The Man Who Knew Too Much, a música opõe-se em última análise à conspiração e sai vitoriosa.

       Hitchcock transforma a personagem de Miss Froy de “vanishing lady” – a adjectivação mostra o ponto de vista masculino que entende a mulher como “outro” e como mistério, fantasia, ilusão, características às quais Miss Froy é alheia pela idade e por ser uma figura comum – em sujeito da acção no título do filme, The Lady Vanishes. Tendo sido objecto de um rapto que a fez desaparecer sem ninguém ter visto nada, Hitchcock faz Miss Froy desforrar-se na cena do filme em que, após ter revelado a melodia a Iris e Gilbert, desaparece por acção própria, não deixando o mérito deste desaparecimento final por mãos alheias, saltando da janela do comboio (com a ajuda de Gilbert) para a floresta de Bandrika, conseguindo levar a mensagem contida em código na melodia da canção para a Grã-Bretanha. Hitchcock mostra assim mais uma vez a sua versatilidade, ironia e sentido de humor.

       Mas o que mais nos surpreende ainda hoje em dia é a percepção de Hitchcock não só daquilo que estava já em marcha na Europa e no mundo em 1938, mas também a sua extraordinária capacidade de prever alguns dos aspectos mais sórdidos do nacional-socialismo e do Holocausto. O documentário de sua autoria sobre a libertação de prisioneiros judeus e outros dos campos de concentração alemães depois do fim da Segunda Grande Guerra[13] é um exemplo flagrante da uma aguda consciência e sensibilidade temporal, contradizendo uma leitura da sua obra como alheia à dimensão contemporânea da História.



[1] Vd. BECKMAN, op. cit., p. 85.
[2] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 443.
[3] Vd. BECKMAN, Karen, op. cit., p. 83.  A autora observa ainda que Praga seria entendida num contexto alemão, já que em 1938 quer a Áustria quer a Checoslováquia tinham desaparecido do mapa da Europa como nações independentes, a Checoslováquia tinha sido dada à Alemanha para a Inglaterra ganhar tempo.
[4] Cf. id. ibid., p. 86.
[5] Cf. id. ibid.
[6] Cf. id. ibid.
[7] Cf. id. ibid., p. 88.
[8]Cf. id. ibid.: “Following this, the scene disintegrates into another series of verbal, cinematic, and bodily fragments.”
[9] Cf. id. ibid., p. 89.
[10] Cf. id. ibid.
[11] Vd. United States Memorial Museum, “Medical Experiments”. A página está disponível on-line e contém uma vasta bibliografia sobre este tema:
 
[12] Vd. nota 27 do presente texto, e BECKMAN, Karen, op. cit.
[13] Hoje em dia disponível on-line:
 

Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

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Imagens:


Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui

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sábado, 27 de abril de 2013



 





Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock

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       Miss Froy não corresponde minimamente ao tipo de heroína dos filmes de espionagem, ela não é nenhuma Mata Hari. É mais uma anti-heroína, uma pessoa comum, que serve o seu país num momento difícil. Ela não triunfa dos seus inimigos conspiradores da Axis (as potências principais do Eixo foram a Alemanha, Itália e Japão durante a Segunda Grande Guerra) nem pela juventude, nem pela beleza física, nem pelo uso de tecnologia avançada. Ela vence o Mal absoluto, que aqui se delineia nas personagens do grupo conspirador, pela sua humanidade, poder de comunicação e porque está do lado do Bem. Depois do caso Dreyfus em França, reinava na época uma espécie de pânico moral contra estrangeiros e espiões[1] – a personagem de Miss Froy de algum modo serve para humanizar a figura do espião e o aproximar do público. Quando ela se apresenta a Iris no comboio, diz: “Froy... rhymes with joy.”[2] As personagens reunidas à volta do Dr. Hartz e da conspiração, pelo contrário, agem mercenariamente (vemos o ilusionista Doppo a exigir mais dinheiro ao médico). O Dr. Hartz diz mesmo a Iris e Gilbert que tenciona matar Miss Froy durante uma operação que será mal sucedida, revelando-se um profissional de Medicina a fazer um uso radicalmente errado da sua vocação e profissão. Quanto a Iris e Gilbert, eles são o par romântico do filme mas, em termos da intriga, são heróis acidentais, detectives amadores por necessidade das circunstâncias. As personagens de Miss Froy e de todos os conspiradores agem sob disfarce, sob uma falsa identidade. Esta perturbação da identidade garante a modernidade das personagens e é um tema constante na obra de Hitchcock, sempre preocupado com a perda da memória e/ou identidade[3].

 

       O triângulo de personagens centrais do filme está ligado entre si numa história de solidariedade e entreajuda, que é simultaneamente uma história romântica de amor, uma aventura da qual Iris sairá modificada e rejeitará um casamento de fachada, sem amor, optando por ficar com Gilbert. A música é o elo que liga as personagens de Miss Froy e Gilbert: Miss Froy apresenta-se como professora de música, Gilbert é um jovem etno-musicólogo interessado em estudar a música e dança de Bandrika, e poderá por isso memorizar facilmente a canção de Miss Froy. A melodia que, no final, se revela como sendo a chave do filme, está presente logo no início do genérico, sublinhando sobretudo o título do filme e o nome do realizador. Reaparecerá numa longa cena que começa no restaurante do hotel, e se prolonga pela serenata que Miss Froy escuta atenta à janela do seu quarto, repetindo e parecendo tomar nota. A música de Levy estará ausente de toda a sequência do comboio, para apenas voltar a aparecer quando Miss Froy pede a Iris e Gilbert para transmitirem a mensagem codificada na canção ao Foreign Office em Londres. Na cena que já citámos na carruagem-restaurante com o Dr. Hartz, Gilbert trauteia por breves instantes as primeiras notas da canção, mas é como se fosse um comentário musical do realizador, já que Gilbert não conhecia ainda a melodia. Mas a música continua presente em toda a sequência do comboio, apesar de estas cenas apenas terem som ambiente: “But even as the film eschews conventional movie music, it absorbs us in musical jokes, games, stratagems, and atmospheres.”[4]

 

      A música continua a ser o elemento que liga tudo em The Lady Vanishes: “Like The 39 Steps, The Lady Vanishes is a giddy combination of love story, comedy, and spy suspenser, all connected by music”[5]. Tal como a personagem principal que desaparece, a música seria o elemento mais importante do filme. Quando reaparece contém o “MacGuffin”, e fará a transição para o final do filme: Iris e Gilbert estão juntos no Foreign Office para transmitir a mensagem de Miss Froy, quando para seu desespero Gilbert verifica que se esqueceu da canção reveladora – nesse momento ouve-se a melodia ao piano, a porta abre-se e as três personagens principais dão as mãos. A música é assim elemento de revelação e de reunião, bem como a principal força e instrumento do grupo que se opõe à conspiração. Opondo-se à conspiração, opõe-se também ao silêncio ligado ao silenciamento, secretismo e morte, ao esquecimento e ao caos, atributos ligados à conspiração. A música neste sentido é memória e ordem, tal como noutros filmes de Hitchcock do período britânico, nomeadamente em Young and Innocent e em The 39 Steps. Neste filme, a personagem de Mr. Memory, que actua durante um espectáculo de music-hall, permitirá repor a ordem e provar a inocência do herói, falsamente acusado; e é também durante a actuação de uma orquestra num salão de baile que se detecta o verdadeiro culpado de um crime de que o protagonista era erradamente acusado, em Young and Innocent. Nos dois casos a música é a pedra-de-toque, o meio que permitirá avaliar a inocência das personagens ou a sua culpabilidade. Esta preocupação com a memória está bem patente em alguns dos mais conhecidos filmes do realizador, Spellbound e Marnie, ambos casos de amnésias ou de perturbações da memória, e em Vertigo, história de uma fobia e de uma obsessão.

 

       O título do romance no qual o filme se baseia, The Wheel Spins, alude ao movimento das rodas do comboio. O comboio é um poderoso símbolo de liberdade e mobilidade por um lado, e de clausura e imobilismo pelo outro (a expressão “spin one’s wheels” significa desperdiçar tempo, ficar numa posição neutra, sem avançar nem recuar)[6]. Referimos já atrás neste nosso texto como Jack Sullivan faz remontar ao primeiro filme sonoro de Hitchcock, Blackmail, a imagem da “human psyche spinning its wheels, a central Hitchcockian concept”[7]. Esta imagem do círculo, do remoinho, ou da espiral significa a obsessão das paixões humanas, o tema central de Hitchcock, o seu traço melodramático, que encontrará a forma mais acabada em Vertigo (1958).

 

 Em The Lady Vanishes, o rodar da espiral das rodas do comboio está presente numa montagem que acompanha o primeiro desmaio de Iris ao entrar no comboio, dando o ponto de vista óptico dela: “The image blurs and dissolves into the superimposed images of a whirlpool and multiple shots of her friend waving goodbye that combine with images of a train conductor waving and the spinning wheels of the train, whose rhythmic sound accompanies the montage”[8]. Esta montagem aponta também para o poder hipnótico do comboio e das imagens do próprio filme, e do cinema em geral. Na cena em que Iris e Gilbert vasculham a carruagem-bagageira, encontram para além dos óculos de Miss Froy e de um cartaz do ilusionista Signor Doppo, uma caixa daquelas que os mágicos usam para fazer desaparecer e reaparecer pessoas. Gilbert diz então “In magic circles, we call it the disappearing cabinet, you get inside and vanish”. Os três objectos desta importante cena em termos simbólicos – os óculos, o cartaz e a caixa mágica do ilusionista – apontam para a arte do cinema e para o seu poder, e para este filme em especial, The Lady Vanishes. O realizador também é um ilusionista, que nos envolve no seu círculo mágico de imagens hipnóticas (o próprio projector de uma sala de cinema tem esses cilindros que fazem rodar as bobinas com a película e projectar o filme). Trata-se de uma reflexão sobre a arte do cineasta, do cinema, e o poder das imagens, como que alertando para o carácter ilusório do mundo do cinema. Mas enquanto que, por ex., em The Wizard of Oz (1940) a montagem durante a qual também Dorothy desmaia nos conduz a um mundo de ficção e de sonho, o do cinema por excelência, passando mesmo das imagens a preto e branco para o filme a cores, em The Lady Vanishes a visão de Iris permanece bem real, afirmando-se esta realidade no decurso da busca conjunta com Gilbert e no final.

 

       Poderemos, pois, interrogar as referências do filme ao tempo histórico. Bandrika (ou Bandrieka), o país ficcional onde a acção se desenrola durante a maior parte do filme, poderá ser uma variação de um nome jugoslavo, de um vale nas Montanhas Pirin, na Bósnia, o Vale de Banderica. Miss Froy diz que Bandrika é “One of Europe’s few undiscovered countries”. De facto, Hitchcock acabou por aceitar realizar esta adaptação do romance The Wheel Spins, depois de uma tentativa de rodar o filme na Jugoslávia ter falhado, porque os habitantes receavam que o filme desse uma visão negativa do país. Bandrika poderá ainda aludir ao perigo de uma nova Guerra Mundial que se desenhava na época, no imediato pré-Segunda Grande Guerra, pela ligação da ex-Jugoslávia e da Bósnia ao incidente que foi a causa próxima para o eclodir da Primeira Grande Guerra, o assassínio do Arquiduque Franz Ferdinand da Áustria, herdeiro do trono austro-húngaro, e de sua mulher Sophie Duquesa de Hohenberg, a 28 de Junho de 1914 em Sarajevo, por um grupo de conspiradores e assassinos bósnios. Nomes de outras estações de caminho-de-ferro que aparecem durante o filme são Zolnay, Dravka e Morsken – Zsolnay é uma localidade na Hungria, Dravka na Croácia, e Morsken uma localidade sueca, tanto quanto consigo verificar.

 

Vejamos finalmente quais são os sinais que apontam neste filme para o perigo do fascismo em ascensão na Europa da época. O grupo de conspiradores liderado pelo Dr. Hartz alude à Alemanha, embora a língua que falem os habitantes de Bandrika seja um vernáculo ficcional. Hitchcock consegue isto sobretudo através da representação da “Englishness” da época, no retrato, também ele muito crítico, de personagens britânicas. A freira que vigia Miss Froy acaba por trair o grupo de conspiradores, por solidariedade, ao saber que a senhora de idade é inglesa: “You didn’t tell me the old girl was English?”, pergunta ela, censurando o Dr. Hartz. O marido adúltero, um pacifista ingénuo, resolve sair do comboio empunhando uma bandeira branca e é imediatamente morto a tiro, mostrando a opinião de Hitchcock quanto às tentativas de “appeasement” da Inglaterra de então com a Alemanha. Last but not least, fica-nos o estranho sintoma no meio do discurso no vernáculo de Bandrika proferido pelo gerente do hotel, Boris, sobrecarregado de trabalho pela afluência de hóspedes na sequência da avalanche[9]: “Oy vei zmir”, uma expressão em yiddish (a língua hebraica falada pelos judeus na Europa Central e de Leste, uma mistura de alemão com hebreu, línguas eslavas e outras línguas). Esta expressão significa “woe is me”, mostrando temor ou ansiedade em relação ao que aconteceu ou está para acontecer, e pode ser interpretada no contexto histórico do filme como sério aviso em relação ao Mal absoluto que se avizinhava com a Segunda Grande Guerra e o Holocausto.

 

       Embora alguns dos mais emblemáticos filmes de Hitchcock estejam ligados a uma simbologia de apagamento da figura feminina (Rebecca, de 1940, será marcado pela ausência radical de uma mulher[10]), The Lady Vanishes parte da tradição bem concreta dos espectáculos de magia de finais do séc. XIX, que consistia em fazer desaparecer senhoras. Esta temática foi tratada por Lucy Fischer no artigo de 1979 “The Lady Vanishes: Women, Magic, and the Movies” da perspectiva da teoria feminista, salientando a predilecção do cinema desde a sua origem por fazer desaparecer figuras femininas[11]. O pequeno filme de George Meliès intitulado Escamotage d’une Dame chez Robert-Houdin, em inglês The Vanishing Lady, de 1896, é um dos mais antigos exemplos de um truque cinematográfico que possibilitava a representação em filme desse número de ilusionismo. O próprio Meliès teria sido ilusionista antes de fazer filmes e teria comprado o Teatro Robert-Houdin em 1888[12]. Lucy Fischer acentua a violência simbólica destes números de ilusionismo e sua continuação na convenção cinematográfica, e relaciona-os com a definição de mulher de Simone de Beauvoir em Le Deuxième Sexe como “o outro” e como mistério para o homem[13]. No ensaio “Violent Vanishings: Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”[14], Karen Beckman faz remontar a origem desta tradição no cinema aos números de ilusionistas vitorianos, intitulados “Vanishing Lady Trick” ou “Vanishing Woman Act” como executados por Charles Bertram, o ilusionista preferido da Rainha Victoria, pela primeira vez em Agosto de 1886. Irá comparar The Lady Vanishes com um filme do mesmo ano do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte Spuren (The Footprints Blown Away), uma reescrita da lenda urbana do desaparecimento misterioso de uma senhora durante a Exposição Mundial de 1889 em Paris, ao que parece baseada numa história verdadeira, com a qual o filme de Hitchcock também está relacionado[15]. Beckman interrogar-se-á sobre o significado político do desaparecimento e como o desaparecimento de mulheres poderá estar ligado ao apagamento do “outro” no momento histórico que antecede a Segunda Grande Guerra.

 

       Os romances e filmes de espionagem deste período da História europeia entre as duas Grandes Guerras adicionam uma nova figura às já tradicionais de crime contra o indivíduo e a propriedade, o crime contra Estados soberanos[16]. Em The 39 Steps, o protagonista faz a defesa de um mundo melhor no discurso improvisado durante um comício político em que se vê envolvido durante a fuga, e no qual faz equivaler um mundo melhor a um mundo sem conspirações:

 

I ask your candidate and all those who love their fellow men to make this world a happier place to live in. A world where no nation plots against nation, where no neighbor plots against neighbor, where there is no persecution or hunting down, where everybody gets a square deal and a sporting chance, and where people try to help and not to hinder. A world from which suspicion and cruelty and fear have been forever banished.



[1] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 432, e MILLER, Toby, “39 Steps to ‘The Borders of the Possible’: Alfred Hitchcock, Amateur Observer and the New Cultural History”, in: Alfred Hitchcock. Centenary Essays, ed. Richard Allen e S. Ishii-Gonzalès, London: British Film Institute, 1999,  p. 321 ss.
[2] Significativamente a lista de alcunhas de membros dos serviços secretos britânicos da época denota essa “joie de  vivre”, como refere MILLER, Toby (1999, p. 323).
[3] Cf. id. ibid., p. 321.
[4] Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 52.
[5] Cf. id. ibid.
[6] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 444: “The train in both novel and film is a paradoxical object, a source of both prison and liberty, incarceration and flight.”
[7] Cf. p. 3 do presente texto.
[8] Cf. MCGILLIGAN, Patrick, op. cit., p. 173.
[9] Boris fala no telefone interno do hotel e pede aos empregados que levem mais uma garrafa de champanhe ao quarto de Miss Henderson (Iris), que festeja com as amigas a sua despedida de solteira: “Bandrika may have a dictator but tonight we’re painting it red.”
[10] Este apagamento da figura feminina acaba por ter o efeito contrário, e o filme é dominado pela presença/ausência obsessiva e fantasmática de Rebecca, que nunca chegamos a ver.
[11]  Vd. FISCHER, Lucy, “The Lady Vanishes: Women, Magic, and the Movies”, in: Film Quaterly Vol. 33, No. 1 (Autumn 1979), p. 30-40.
[12] Vd. id. ibid., p. 30.
[13] Lucy Fischer resume assim o seu ensaio: “In summary, then, the rhetoric of magic – in its theatrical and cinematic varieties – constitutes a complex drama of male-female relations. In the guise of the magician figure, the male enacts a series of symbolic rituals in which he expresses numerous often-contradictory attitudes toward woman: his desire to exert power over her, to employ her as decorative object, to cast her as a sexual fantasy, to exorcize her imagined powers of death, and to appropriate her real powers of procreation.”, cf. op. cit., p. 37.
[14]Vd. BECKMAN, Karen, Violent Vanishings: Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”, in: Camera obscura, September 13, 1996, p. 77-103.
[15] Vd. nota 27 do presente texto.
[16] Vd. MANDEL, Ernest, Delightful Murder: A Social History of the Crime Story. London: Pluto, 1984.

(a continuar)



Ana Maria Delgado
 
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

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Imagens:


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Georges Méliès, Escamotage d'une dame chez Robert Houdin 1896: aqui