quarta-feira, 8 de maio de 2013


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock

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The Lady Vanishes comenta subtilmente a política europeia de 1938 e, apesar da censura do British Board of Film Censors, que não permitia qualquer crítica aberta a governos estrangeiros[1], a imprensa da época compreendeu a referência de Hitchcock: “most of the film’s action takes place ‘in Central Europe, where almost anything is liable to happen nowadays (and things do happen)’”[2]. Hitchcock critica tanto a passividade britânica, como a agressividade alemã, mas alerta seriamente para o perigo nazi que ameaçava já claramente a Europa. O neuro-cirurgião que chefia a conspiração apresenta-se como o Doutor Egon Hartz, de Praga - o nome Hartz é uma combinação de hard (hart, duro) com heart (Herz, coração) e preludia a violência do rapto e planeado assassínio de Miss Froy, uma agente britânica (no romance de White ela era uma cidadã comum que foi confundida com uma espia)[3].


       Hitchcock tinha insistido no seu desejo de juntar ao enredo do romance de White um ilusionista, e veremos porquê. O Dr. Hartz chefia uma conspiração que tem como objectivo impedir a saída de Bandrika, governada por um tirano, de informações vitais sobre um pacto secreto entre dois países europeus. Para tal, terá de raptar, esconder e posteriormente eliminar numa fatal operação uma agente secreta britânica. O parceiro do neuro-cirurgião, o ilusionista Signor Doppo (especialista no número “The Vanishing Lady Act”) contribuirá decisivamente para tornar imperceptível o desaparecimento violento de Miss Froy. Karen Beckman é muito clara quanto ao significado ideológico desta aliança entre o médico e o ilusionista: “Through this aliance, Hitchcock uncovers a key factor of the workings of ideology – the mystification of the moment of violent incision.”[4] O mundo da ilusão e do ilusionismo aponta para o cinema, tal como vimos, mas também para a ideologia. Beckman faz o paralelo do assassínio de elementos indesejados – o seu corte do corpo social – com os cortes da montagem, mostrando como Hitchcock mantém o espectador atento em relação a esta técnica, nomeadamente no episódio central, a que não assistimos, do rapto violento de Miss Froy: “In The Lady Vanishes, a film steeped in the politics of Britain’s relationship with Germany and Central Europe, ‘the cut’ becomes crucial in its narrative and cinematic function. Hitchcock employs a variety of fragmenting camera techniques to draw our attention to the hidden incisions of the editorial cuts.”[5]

 
       Karen Beckman mostra claramente o paralelo entre esta intriga internacional de The Lady Vanishes e a retórica fascista da década de 1930, contida na linguagem violenta de Hitler e Mussolini para descrever o seu papel de líderes na recuperação daquilo que consideravam o corpo doente da nação. Mussolini escreveu que era necessário “to use the scalpel to take away everything parasitic, harmful, and suffocating”, e Hitler usou o mesmo discurso da remoção cirúrgica e representou os Judeus como uma praga ou bactéria que infectava a nação alemã[6]. Hitchcock contrapõe às forças conjuntas da conspiração do Dr. Hartz, aliado com o Signor Doppo, a consciência que procura criar no espectador da ilusão de continuidade cinemática, chamando a atenção para os cortes da montagem. O espectador não assiste à cena do desaparecimento de Miss Froy, que ocorre durante o sono de Iris. E a cena no vagão de transporte da bagagem, na qual Iris e Gilbert descobrem toda a parafernália do ilusionista, é fulcral nesta consciencialização: “When the magician, artist of legerdemain, suddenly pulls out a knife, the illusion of mystery fades and exposes the true violence of Miss Froy’s disappearance.”[7] Logo a seguir a cena mostra uma série de fragmentos, pondo em evidência os cortes da montagem[8], para manter bem desperta a consciência do espectador quer em relação à ilusão da continuidade e unidade cinemáticas, quer em relação ao processo ideológico que opera na conspiração. Destes cortes poderíamos destacar como exemplo o corte da figura de Iris pela cinta, na cena da luta com o Signor Doppo, recordando a convenção do ilusionismo, e do filme nos seus primórdios, de representação do truque de cortar uma mulher ao meio. Este corte recorda uma outra cena no hotel de Bandrika, em que Iris festeja com as amigas a despedida de solteira e o empregado traz mais uma garrafa de champanhe ao quarto. A câmara mostra-nos Iris de pé em cima da mesa, mas só a vemos da cinta para baixo, enquanto ela diz:

 

I, Iris Matilda Henderson, a spinster of no particular parish, solemnly renounce my maidenly past and declare that on Thursday 26… I shall take the veil and orange blossom and change my name to Lady Charles Fotheringail.

 

No momento em que declara esta cisão na identidade pelo casamento, como bem observa Karen Beckman, tomamos consciência da ansiedade de Iris em relação ao seu próprio desaparecimento, o que, combinado com o nome Iris, a vai tornar a pessoa ideal para procurar Miss Froy[9]. Os óculos de Miss Froy, que Iris e Gilbert encontram nesta cena, estão partidos, e Iris e Gilbert são atacados pelo Signor Doppo, armado de uma faca: “Iris: He’s got a knife! Gilbert: Get hold of it before he cuts a slice off me.” Forçando o espectador do filme a ter esta consciência, Hitchcock alerta para “the machinations of an ideology like National Socialism which employs the illusion of disappearance to disguise the violent excision of that which is other to its own self-image”[10].

 
       A montagem corta do todo fílmico aquelas partes que estão a mais, criando um objecto estético caracterizado pela unidade e continuidade. O paralelo com o discurso ideológico do nacional-socialismo é evidente, também aí se eliminou o que não é a auto-imagem. A ideologia nazi tinha a pretensão de criar uma unidade limpa, depurada do que está a mais, do que não considerava herança pura, i.e. da descontinuidade, da diferença, de tudo o que julgava ser uma ameaça à identidade, à continuidade rácica que se recebe pela herança do sangue, e mais ainda purificando-a. Embora em áreas absolutamente distintas, pretendem o mesmo resultado, tendem para o mesmo objectivo: a montagem no plano ideal do estético, a ideologia nazi na existência histórica dos povos. São dois actos verdadeiramente criadores, que visam modelar a realidade como obra de arte. Aquilo que o nacional-socialismo tentou fazer no plano ideológico foi obter uma configuração ideal (do seu ponto de vista) da realidade no plano histórico-social, visando organismos que se vão desenvolvendo na sua diferença, na sua realidade, e que por isso constituem o que não é moldável. Na Sociologia não se podem fazer experiências, trata-se de uma área na qual se trabalha com seres humanos na sua inter-relação e interacção, e na qual a vontade e a decisão dos indivíduos contrariam qualquer intenção na modelagem do social. Estas realidades vivas foram camufladas nos campos de concentração, criando situações artificiais que implicavam o fechamento, como no laboratório, e o silenciamento à volta do que aí se fazia.


       Toda esta chamada de atenção para os cortes da montagem cinematográfica no filme, aliada ao tratamento dado à figura do Dr. Hartz, estranhamente prefiguram o que viria a ser o papel da classe médica alemã durante a Segunda Grande Guerra e o Holocausto, executando experiências cruéis e letais em sujeitos humanos entre 1939 e 1945 em campos de concentração nazis:

 

Between 1939 and 1945, at least seventy medical research projects involving cruel and often lethal experimentation on human subjects were conducted in Nazi concentration camps. These projects were carried out by established institutions within the Third Reich and fell into three areas: research aimed at improving the survival and rescue of German troops; testing of medical procedures and pharmaceuticals; and experiments that sought to confirm Nazi racial ideology. More than seven thousand victims of such medical experiments have been documented. Victims include Jews, Poles, Roma (Gypsies), political prisoners, Soviet prisoners of war, homosexuals, and Catholic priests. [11]

 

       Para concluir, gostaria de salientar a carga ideológica do filme que Karen Beckman compara com The Lady Vanishes, por tratar o mesmo fio narrativo, o mito urbano à volta da história verdadeira de duas senhoras, mãe e filha, que passam por Paris na altura da Exposição Mundial de 1889, vindas da Índia de regresso ao Canadá[12]. Trata-se do filme de 1938 do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte Spuren (The Footprints Blown Away). Harlan mantém a sua narrativa muito próxima da história herdada, mas com uma carga ideológica evidente: o filme abre com uma longa sequência de um cortejo alegórico em que estão representados os vários continentes, abrindo com a Europa representada por uma mulher loira quase nua da cinta para cima montando um touro, seguida por vários aborígenes representando os outros continentes. No final da sequência a câmara detém-se nos rostos de mãe e filha, sugerindo a sua diferença (são canadianas). Depois do desaparecimento misterioso da senhora mais velha, a filha vem a descobrir que a mãe tinha tido a peste e tinha sido incinerada pelo Dr. Moreau (uma reminiscência estranha do médico vivisseccionista de uma obra de H. G. Wells), com quem no entanto vem a casar-se. Trata-se de uma muito clara apologética da purificação, da purga, queima-se e apaga-se a recordação, faz-se desaparecer da realidade e da memória tudo aquilo que pudesse vir a contaminar a sociedade.
 

       A música de Louis Levy acompanha o desaparecimento de Miss Froy, para só reaparecer no final do filme. Não poderia deixar de assim ser, dado o significado da música no filme, como opondo-se radicalmente ao mundo da conspiração. Não poderia evocar o excesso da música wagneriana, demasiado próxima da Alemanha de então, embora Hitchcock cedo venha a retomar em Rebecca uma banda sonora muito diferente da austeridade da música em The Lady Vanishes. Quando reaparece, a música de Lévy recordará o espectador do que viu antes do desaparecimento de Miss Froy, ligando-se assim a esta personagem e ao que ela representa, para melhor se nos gravar na memória. Isto corresponde à função que a música tem na filmografia de Hitchcock de uma maneira geral: mesmo quando é instrumentalizada pela conspiração, como é o caso da longa sequênca sinfónica no Albert Hall das duas versões de The Man Who Knew Too Much, a música opõe-se em última análise à conspiração e sai vitoriosa.

       Hitchcock transforma a personagem de Miss Froy de “vanishing lady” – a adjectivação mostra o ponto de vista masculino que entende a mulher como “outro” e como mistério, fantasia, ilusão, características às quais Miss Froy é alheia pela idade e por ser uma figura comum – em sujeito da acção no título do filme, The Lady Vanishes. Tendo sido objecto de um rapto que a fez desaparecer sem ninguém ter visto nada, Hitchcock faz Miss Froy desforrar-se na cena do filme em que, após ter revelado a melodia a Iris e Gilbert, desaparece por acção própria, não deixando o mérito deste desaparecimento final por mãos alheias, saltando da janela do comboio (com a ajuda de Gilbert) para a floresta de Bandrika, conseguindo levar a mensagem contida em código na melodia da canção para a Grã-Bretanha. Hitchcock mostra assim mais uma vez a sua versatilidade, ironia e sentido de humor.

       Mas o que mais nos surpreende ainda hoje em dia é a percepção de Hitchcock não só daquilo que estava já em marcha na Europa e no mundo em 1938, mas também a sua extraordinária capacidade de prever alguns dos aspectos mais sórdidos do nacional-socialismo e do Holocausto. O documentário de sua autoria sobre a libertação de prisioneiros judeus e outros dos campos de concentração alemães depois do fim da Segunda Grande Guerra[13] é um exemplo flagrante da uma aguda consciência e sensibilidade temporal, contradizendo uma leitura da sua obra como alheia à dimensão contemporânea da História.



[1] Vd. BECKMAN, op. cit., p. 85.
[2] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 443.
[3] Vd. BECKMAN, Karen, op. cit., p. 83.  A autora observa ainda que Praga seria entendida num contexto alemão, já que em 1938 quer a Áustria quer a Checoslováquia tinham desaparecido do mapa da Europa como nações independentes, a Checoslováquia tinha sido dada à Alemanha para a Inglaterra ganhar tempo.
[4] Cf. id. ibid., p. 86.
[5] Cf. id. ibid.
[6] Cf. id. ibid.
[7] Cf. id. ibid., p. 88.
[8]Cf. id. ibid.: “Following this, the scene disintegrates into another series of verbal, cinematic, and bodily fragments.”
[9] Cf. id. ibid., p. 89.
[10] Cf. id. ibid.
[11] Vd. United States Memorial Museum, “Medical Experiments”. A página está disponível on-line e contém uma vasta bibliografia sobre este tema:
 
[12] Vd. nota 27 do presente texto, e BECKMAN, Karen, op. cit.
[13] Hoje em dia disponível on-line:
 

Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

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Imagens:


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