quinta-feira, 27 de setembro de 2012







A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria
 
 
(...)

O coleccionador opõe-se ao pintor / narrador. Interessou-o perseguir e adquirir, comprar obras de arte, quadros de figuras femininas como um conquistador as suas conquistas – é longa a lista de quadros de figuras femininas exibidas como troféus, todas elas expressão da vaidade do coleccionador [1] : “A partir de dada altura a minha aventura foi a luta pela conquista e pela posse de certas obras, umas a preço de loucura, outras à custa de paciência, persistência e alguma astúcia, outras impossíveis de conseguir.” (p. 20). O fantasma trata a colecção de quadros como mulheres num harém:


Coleccionar é ser sultão não de pessoas mas de coisas. É buscar uma harmonia entre as coisas de que nos sentimos protectores, ainda que elas nos sobrevivam. De cada vez que comprei uma peça, concedi-lhe um período de adaptação para perceber se ela e eu nos pertencíamos. Cheguei a levar este noivado a extremos inimagináveis.(p. 45)

 
Mas ao mesmo tempo trata os quadros, que para o artista eram expressão viva, como meros objectos que ele persegue no intuito de coleccionar. O texto é muito irónico, quando o coleccionador diz  preferir às naturezas-mortas as naturezas vivas, à maneira de todo o bom conquistador. Recorda-nos aqui outro mediterrânico, em The Merchant of Venice, Shylock, que confunde a filha e o dinheiro, chorando ao mesmo nível a fuga da filha e a perda dos ducados.

        O ponto alto da ironia que envolve a personagem do fantasma é a interpretação romantizada que faz do quadro de Fantin-Latour A Leitura:


Não me importaria de ter sempre por perto as duas irmãs nele retratadas (...) Uma era a noiva do pintor, a outra ficou por casar. Adivinha qual é qual? (...) A leitora é a noiva, Victoria; a loura e futura cunhada é Charlotte. Eu teria escolhido a preterida; Fantin, pelo contrário, casou com a outra, pintora amadora, frequentadora do Louvre, amiga de artistas e recém-retratada por Degas, apesar de, quanto a mim, ele adorar Charlotte, como o prova a quantidade de vezes que a retratou. Talvez o sentimento fosse recíproco, embora seja difícil decidir pela altivez e o olhar da bela solitária. (15-16)

 
O fantasma de Calouste Gulbenkian fantasia a relação entre o pintor e a cunhada Charlotte Dubourg, insinuando existir entre os dois uma ligação sentimental. Num artigo sobre Victoria Dubourg [2], Elizabeth Kane percorre as naturezas-mortas da pintora, que fez – tal como o marido – um retrato da irmã Charlotte, do mesmo ano, 1870. Kane refuta com argumentos vários a tese de Michael Hoog, co-autor do catálogo definitivo de Fantin-Latour de 1983, principal defensor da existência de uma “complicité muette” entre Fantin e a cunhada. Não será necessário reproduzir os argumentos da ensaísta, já que a vida do pintor aponta para uma direcção diversa da sugerida por Hoog: Fantin-Latour terá seguido critérios bem diferentes na escolha da noiva [3].

       Regressando à constelação de personagens de Vanitas, à história de posse e controle figurada no fantasma do coleccionador – que também por isso é uma figura ilusória, fantasmática – e em Poe, opõem-se com nitidez figuras de criadores e artistas, o próprio pintor / narrador, o poeta Saint-John Perse e Simonsz van der Beeck, ou Torrentius. O pintor diz, escutando o fantasma e respondendo no seu íntimo à pergunta “Acha que exagero se lhe disser que os objectos vivem na alma do coleccionador, tal como a alma do coleccionador permanece viva nos seus objectos?” (p. 47-8):


Cheio de má consciência dei comigo a pensar que nem sequer me lembrava do paradeiro de muitos dos meus quadros, que se separam de mim mal os termino e vão sem cerimónia à sua vida, como se nunca me tivessem pertencido. Não me pertencem, realmente, mas duvido que isto diga respeito a alguém.” (p. 48)

 
Não dialogam, não se estabelece entre os dois comunicação, pois representam princípios e perspectivas antagónicas. O aspecto de recepção contido na frase do pintor / narrador corresponde às teorias do texto do séc. XX, que consideram a obra como aberta à recepção do leitor, portanto livre, viva no momento da escrita e no momento da leitura. O coleccionador auto-exclui-se deste processo, pois está interessado em comprar, adquirir, ordenar, possuir, em resumo, em coleccionar obras de arte. Coleccionar opõe-se neste conto claramente a criar. Para o artista, cada obra é única, singular, reflexão narcísica do seu autor, mas produzida também a pensar no seu efeito no leitor. Para o coleccionador, é projecção narcísica pura. “Colligere” é escolher e juntar, mas falta-lhe o elemento da comunicação: “Cette totalisation par les objets porte toujours la marque de la solitude: elle manque à la communication, et la communication lui manque” [4].

       O pintor Jan Simonsz van der Beeck é referido a primeira vez em Vanitas quando o pintor / narrador se surpreende por o fantasma ler os seus pensamentos:


Só um espírito saberia o que eu fizera antes de adormecer! Lia, com efeito, algumas páginas de Zbigniev Herbert sobre Jan Simonsz van der Beeck, que se autocaracterizou assinando Torrentius e foi admirado no seu tempo como mestre da mais perfeita imitação da vida sensível, esquecido depois durante três séculos e recentemente redescoberto.” (p. 31)

 
No ensaio que dá o título ao livro de Herbert [5], o mesmo do quadro do pintor, Natureza-Morta com Brida, o autor explica que o “nom de guerre” de van der Beeck, Torrentius,  vem do latim torrens que significa a um tempo tórrido e torrente. Este quadro existe no texto de Vanitas no mundo do monólogo interior do pintor / narrador, e não na colecção do fantasma, escapando assim à enumeração. Natureza-Morta com Brida, tal como a exposição As Lágrimas de Eros – esta, naturalmente, por imaginária, ficcional - está ausente do espaço directamente visual do conto, não faz parte dos quadros reproduzidos na segunda edição e tem, não obstante, uma importância central na narrativa.

(...)
 

(a continuar neste blogue)
 

Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

Ler o texto completo aqui

 

Imagem: Fantin-Latour, A Leitura - Museu Calouste Gulbenkian


[1] Coleccionar é sempre uma actividade narcisista, e cada objecto coleccionado retrata, de certo modo, o coleccionador. Cf. a este respeito  Jean Baudrillard, Le système des objets. Paris:Gallimard, 1968, p. 128.
[2] Cf. Elizabeth Kane, “Victoria Dubourg: The Other Fantin-Latour”. In: Woman’s Art Journal, vol. 9, nº 2 (Autumn, 1988 – Winter, 1989), pp. 15-21.
[3] Seria, aliás, curioso recordar neste contexto o critério estipulado em The Merchant of Venice pelo pai de Portia para selecção dos candidatos à mão da filha, resumido na “sentença” ditada pelo último cofre, acompanhada do retrato de Portia, o cofre de chumbo, escolhido por Bassanio: “You that choose not by the view / Chance as fair, and choose as true”. A distinção entre “ser” e “parecer” está, de resto, na base da mundivisão barroca e percorre toda a obra de Shakespeare.
[4] Jean Baudrillard, op. cit.,  p. 150.
[5] Zbigniev Herbert, Still Life with a Bridle, Essays and Apocryphus. Hopewell, NJ: The Ecco Press, 1991.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

 
 
 
 
 
A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria
 
 
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Para analisar o conto fazendo jus a este seu traço fundamental, partiremos de um outro texto de Poe de que já falámos, “The Philosophy of Composition”, de 1846. Neste ensaio, Poe revisita o seu poema “The Raven” e tenta explicar como chegou à sua composição. Trata-se de uma análise minuciosa, quase matemática, da génese do poema, transformando-o em caso exemplar de uma estética de efeito, extremamente construído e artificial [1]. Poe refere que a maior parte dos poetas preferem omitir o processo de composição e dar a entender que compõem “by a species of fine frenzy – as ecstatic intuition” [2], nisto residindo a sua vaidade autorial: “the autorial vanity has had more to do with the omission than any one other cause”[3]. Poe incorre na vaidade autorial contrária, descrevendo o processo criativo de “The Raven” e como “the work proceeded, step by step, to its completion with the precise and rigid consequence of a mathematical problem.” [4]
 
       A primeira consideração de Poe diz respeito à extensão, de que depende a unidade ou totalidade de impressão ou de efeito do poema. A brevidade terá como efeito a desejada intensidade, a excitação e elevação da alma. A segunda consideração diz respeito ao tema: a beleza é eleita como a única legítima província do poema, já que o prazer mais intenso e que eleva mais a alma provém da contemplação do belo. Para Poe, a beleza não é uma qualidade, mas um efeito – a pura e intensa elevação não do intelecto ou do coração, mas da alma. A terceira consideração diz respeito ao tom do poema: aquele que mais convém à beleza é a tristeza, e a melancolia é o mais legítimo dos tons poéticos. O mais melancólico dos assuntos é a morte, e nada mais poético que a morte de uma mulher bela, cantada pelo amante que sofreu a perda.
 
       Vanitas parece corresponder aos preceitos de Poe: é um texto curto e que prima pela contenção, rigorosamente construído na sua composição, como veremos. Não só o autor seguiu o ensaio de Poe, mas o conto parece glosar aspectos do poema “The Raven”, que é uma balada: o começo abrupto no meio da acção, a mistura dos géneros, o encontro fatídico aqui transformado na aparição do fantasma, envolvido numa moldura de quotidiano, como nas baladas modernas. A exigência da beleza como província do poema cumpre-se também: a escolha da pintura como tema adequa-se à representação da beleza exterior, física, ou para parodiar Poe, ou porque afinal o tema do conto é a vaidade, “vanitas”. Quanto à terceira exigência, a do tom, torna-se mais claro o tom irónico do conto de Almeida Faria – a alusão à perda da mulher amada, quer em “The Raven”, quer em outros textos de Poe como “Lenore”, “Ulalume”, “Ligeia” – aparece no título da exposição do pintor / narrador, “As Lágrimas de Eros”, talvez uma alusão à história de Eros e Psique (Eros perde repetidas vezes Psique antes de a recuperar). A ironia continua na maneira possessiva como o fantasma se refere à sua galeria de quadros de figuras femininas como se de mulheres vivas se tratasse.
 
       O lugar deve, segundo Poe, circunscrever o espaço como a moldura a um quadro: “a close circumscription of space is absolutely necessary to the effect (...) – it has the force of a frame to a picture” [5]. Vanitas segue à risca esta determinação, encenando todo o acontecer, o encontro do pintor / narrador com o fantasma, recordação de quando “o real descarrilara” (p. 56), na casa-palácio da Avenue d’Iéna.
 
       Quanto ao tom, Vanitas é um texto sobre a transitoriedade, mas sem verdadeira melancolia nem nostalgia. Os vivos estão contentes com a sua condição humana, o fantasma está igualmente satisfeito com o seu estado e nem sequer quer recomeçar a cadeia de renascimentos. Há uma grande ironia em relação à exigência do tom melancólico proposto por Poe: não há figuras femininas, só quadros de figuras femininas, que ocupam a vida do fantasma de modo aparentemente mais intenso, segundo ele próprio diz, do que as figuras reais do seu universo familiar. Não há luto, sentimento de perda ou desinvestimento no ego – fala da vaidade alguém que se situa não do lado da perda (luto) ou da depressão (melancolia). A vanitas (o que é vão, transitório) não se encontra neste conto sob o signo melancólico de Saturno [6]. Este texto parece antes retomar a tradição do conto fantástico, alemão ou vitoriano, ao colocar o monólogo do fantasma numa moldura credível, atribuindo o seu aparecimento a uma causa plausível, a um filtro contido na comida, ou à influência da leitura do livro de ensaios de Herbert [7]. A ideia de luto e melancolia, resultantes no ensaio de Poe da perda da mulher amada, é parodiada na figura do coleccionador transformado em fantasma – continua ligado aos quadros, às aquisições, como se de pessoas se tratasse [8].
 
       As personagens de Vanitas parecem ser um recurso de composição [9]. O fantasma do coleccionador Calouste Gulbenkian e o pintor sem nome que é o narrador do conto são as duas personagens desta ficção, na qual aquilo que acontece é, em termos de acção exterior, o aparecimento do fantasma. Mas há ainda a nível da reflexão metaficcional o implícito Poe, o pintor holandês Jan Simonsz van der Beeck, autodenominado Torrentius, e o poeta Saint-John Perse. Todos eles são uma espécie de duplos do autor, representando aspectos estruturantes da criação poética em conflito ou em acção entre si. Curiosamente, todos são inspirados em figuras que existiram na realidade, à excepção do pintor que narra – mas esse, naturalmente, está mais próximo do autor. O que estas personagens têm de curioso é que funcionam em constelação, reforçando-se ou contradizendo-se, iluminando-se reciprocamente e ilustrando o tema metaficcional do conto, a procura do tom justo na arte, seja ela a pintura ou a literatura. A reflexão de Poe sobre a composição encontra um paralelo na filosofia prática do coleccionador – a reflexão sobre o coleccionar faz parte da reflexão sobre Poe, equivalendo o desejo de ter e possuir do coleccionador à vontade de composição como domínio e controle no ensaio de Poe. No outro extremo temos Saint-John Perse e Torrentius, representando a predominância do conteúdo sobre a forma. O fantasma diz dos versos de Saint-John Perse: “Nem são bem versos, são versículos em tom oracular, de fôlego oceânico, de uma eloquência quente, comovente, frases como vagas demoradas” (p. 34-35).  Saint-John Perse está mais do lado da natureza, das coisas concretas, dos sentidos - representa uma liberdade e uma fluência na criação artística que faz recordar o primeiro romance de Almeida Faria, Rumor Branco, que segundo o próprio escritor diz “foi escrito de um jacto, sem correcções” [10].
 
     É impossível não recordar um passo de Cavaleiro Andante em que se define deste modo a oposição entre clássico e barroco:
 
ou barroco até ao delírio, ou o mais clássico possível, nisto e no resto não gosto de purgatórios nem de sensatos meios termos. Os barrocos são mais estimulantes, a invenção verbal, o desmesurado discurso, quanto mais imprevisíveis, mais parecidos com a infinita variedade da vida. Os clássicos serão admiráveis mas não me inspiram, talvez por perfeitos em demasia; não tento sequer ser como eles, não sou da sua linha: toda a grandeza deles se situa no culto de medida, num certo menosprezo dos vocábulos isolados, sempre postos ao serviço do comum equilíbrio, do conjunto. Os meus barrocos, com risco de falhanço por excessivos, tornam o prazer de formular algo novo num fim em si, num puro gozo. [11]
 
Almeida Faria vê na oposição entre clássico e barroco a tensão entre por um lado a medida, o equilíbrio, a “perfeição”, e por outro a desmesura e a invenção do novo. Mas a tensão encontra-se também dentro do próprio conceito de barroco, que privilegia as antíteses e contrastes e vive de uma polaridade e tensão interior básica. Toda a grande mobilidade de pensamento própria do barroco se exprime numa moldura de regras formais de grande rigidez. Veremos como esta tensão interior ao próprio barroco se conformará em Vanitas.
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(a continuar neste blogue)

Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

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Imagem: Retrato de Calouste Gulbenkian - Museu Calouste Gulbenkian



[1] Cf. Kindlers Neues Literatur Lexikon, Bd. 13, ed. W. Jens, München: Kindler Verlag, 1988, p. 496-7.
[2] E. A. Poe, op. cit., p. 481.
[3] Id. ibid.
[4] Id. ibid., p. 482.
[5] Poe, op. cit.
[6] Cf. a este respeito Jean Starobinski, “The idea of nostalgia”, in: Diogenes 54, Summer 1966; Julia Kristeva, Black Sun, Depression and Melancholia. NY: Columbia University Press, 1989; Susan Sontag, Under the Sign of Saturn. NY: Farrar. Starus. Giroux, 1980; Linda Hutcheon, “Irony, Nostalgia and Postmodernism”, in: http://www.library.utoronto.ca/util/criticism/hutchinp.html.
[7] A influência é também da personagem da mulher louca no sótão, em Jane Eyre, de Charlotte Brontë, segundo o próprio autor, numa sessão de leitura de Vanitas em Lisboa, na Livraria Bulhosa, a 18 de Dezembro de 2007.
[8] Cf. a este propósito o ensaio de Freud “On Transience”, de 1915; ainda “Mourning and Melancholia”, escrito alguns meses antes, mas publicado só em 1917. O tom de grande serenidade, bem como a reflexão sobre a beleza de “On Transience”, ligam Vanitas mais a este ensaio.
[9] Henry James define as personagens de um romance como “a compositional resource” – cf. Susan Sontag, “The Pornographic Imagination”, in: A Susan Sontag Reader. Toronto: McGraw Hill Ryerson Ltd, 1982, p. 210.
[10] Cf. Entrevista em Georgetown.
 
[11] Cf. op. cit.,  p. 199, cap. 51, carta de J. C. a Marta.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

 
 



A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria *
 

“Ce n’est rien que la vie soit atroce; le pire est qu’elle soit vaine et qu’elle soit sans beauté.”
Marguerite Yourcenar
 

       Publicado pela primeira vez na revista Colóquio-Letras de Abril-Setembro de 1996, este conto encena o encontro do narrador com o fantasma do mecenas e coleccionador de arte Calouste Gulbenkian em Paris, no número 51 da Avenue d’Iéna, sua residência em Paris desde 1923 no “faubourg de l’Étoile”, hoje em dia Biblioteca Particular de Calouste Gulbenkian. Almeida Faria dá continuidade a uma linha de escrita que já definira em 1984 [1] como “realismo fantástico”: na narrativa curta Os Passeios do Sonhador Solitário, diálogo com uma gravura de Mário Botas, encontramos as figuras tutelares dos escritores Jean-Jacques Rousseau e Jorge-Luis Borges. Em Vanitas, revisto e reeditado em 2007 com o título Vanitas - 51, avenue d’Iéna [2], a intertextualidade continua através não só da evocação de Calouste Gulbenkian, mas também com quadros por ele coleccionados, nomeadamente o quadro A Leitura, de Fantin-Latour. O registo fantástico pode detectar-se na obra de Almeida Faria desde muito mais cedo – veja-se o conto “Peregrinação”, de 1963 [3]. A intertextualidade de Vanitas reside sobretudo no diálogo com o poema “The Raven” e com o ensaio “The Philosophy of Composition”, de Edgar Allan Poe, e com o poeta Saint-John Perse, apenas brevemente referido na primeira versão de 1996. Central será ainda a referência a um quadro do pintor Jan Simonzs van de Beeck, Natureza-Morta com Brida, de 1614. Vanitas - 51, avenue d’Iéna coloca a questão central da justa medida na arte [4], e prima pela brevidade e contenção, reflectindo sobre questões de composição num registo metaficcional e num tom de grande distanciamento e ironia.

       A palavra vanitas conduz-nos ao coração do período barroco, revendo como conceito e como composição pictórica o momento essencialmente religioso da Idade Média e contrapondo-lhe o “lust for life” renascentista. Do confronto entre estes dois momentos antagónicos nasce uma mundivisão profundamente dinâmica e teatral, que culmina nas Vanitas, em que a ideia da beleza surge ligada à decadência física, à ruína. Encenando contrastantemente por um lado, grupos de objectos que representam a beleza, a fama, o poder e a glória, e por outro lado objectos que simbolizam a morte, a decadência e a transitoriedade, estas composições são um género específico das naturezas-mortas, em voga no séc. XVI e XVII em especial na Flandres e Países-Baixos, e significam um sério aviso sobre a fugacidade de tudo o que é humano.

       Não há nenhum quadro que exemplifique este género pictórico no conto. O fantasma de Calouste Gulbenkian refere nunca ter conseguido adquirir uma Vanitas: “Foi uma das minhas frustrações, tal como a de nunca ter conseguido uma daquelas misteriosas naturezas-mortas designadas por vanitas, que traduzem em imagens o memento, homo, quia pulvis es et in pulverem revertes” (p. 30), e faz ele próprio a descrição desse género na pintura:

 

          Aqueles fulgores de frutos e flores onde perversamente aparece a pétala fanada, a   polpa murcha, o podre; aquelas riquezas da Terra onde de súbito surge o bolor e o verme; os moluscos e insectos carregados de recados, a mosca simbolizando talvez o demónio ou o mal, e o caracol cuja casca alude, segundo alguns, ao vazio da fortuna, ao oco tambor da vanglória e da fama. Quanto me esforcei por obter uma dessas maravilhas! (p. 30)

 

J. C., a personagem masculina central de Cavaleiro Andante, fala da sua “tendência para achar que tudo tende ao inútil, ao nada, à doença e à morte” [5]. Esta obsessão com a temática barroca poderá reflectir aspectos recorrentes nas personagens de Almeida Faria, mas neste caso com grande distanciamento: trata-se de um fantasma e todo o seu discurso está impregnado de grande ironia. Faz o elogio das Vanitas e da opulência de formas típica do barroco; a sua colecção, sobretudo o grupo de retratos de figuras femininas, corresponde a uma figura de estilo recorrente neste período, a enumeração.

       Todos os quadros a que o conto alude são retratos ou naturezas-mortas, mas nenhuma Vanitas, à excepção daquela que encerra o texto, a versão contemporânea de Paula Rego. O tríptico da artista que ilustra a segunda versão do conto, à maneira de conclusão do texto, sublinha a temática barroca. Digo fechamento do conto, porque a pintora o contempla por seu turno como quadro acabado e com ele dialoga, o interpreta e  fixa num momento que o próprio escritor designou como “feliz” [6].

       O conto começa abruptamente com o despertar, a meio da noite, do narrador, que pernoita em Paris, no nº 51 da Avenue d’Iéna, hoje em dia sede do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, onde viveu o mecenas e coleccionador de arte. A ideia para o conto terá surgido a Almeida Faria, como consta da edição do conto em livro, durante “As noites que passei, em 1996, no quase-palácio que Calouste Gulbenkian reconstruiu na Avenue d’Iéna, em Paris” (p. 9). Nessa altura, o escritor apresentou o seu ensaio sobre Mário Botas “Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta”. O narrador de Vanitas é também um pintor, sem nome, que vai expor no espaço da antiga pinacoteca privada do mecenas uma exposição sua intitulada As Lágrimas de Eros (p. 32), título que no final do conto diz soar-lhe a patético (p. 59).

       Na cena de abertura alude-se a um dos quadros mais importantes neste conto, prefigurado no “busto da deusa Palas Ateneia numa coluna multiplicada pelos espelhos da galeria de acesso à parte nobre da casa” (p. 11). Posteriormente, o fantasma do coleccionador referirá o quadro como a sua aquisição mais “prestigiosa”: “a face severa e suave daquela andrógina figura de Rembrandt a que uns chamam Alexandre o Grande e outros Palas Ateneia, a tal que nasceu já armada e guerreira da cabeça de Zeus” (p. 42 e 53) [7]. Este quadro faz desde logo a ligação com os outros quadros da colecção, com o título do conto e o género pictórico que designa, vanitas, através do símbolo de poder temporal que é o elmo na cabeça da deusa. Mas a Palas Ateneia aponta ainda para uma outra intertextualidade que será decisiva para a compreensão do texto – logo a seguir o narrador refere “um bater de asas” que lhe recorda “um episódio semelhante que metia um monocórdico corvo numa agreste meia-noite” (p. 11-12). A referência é, claramente, ao poema de E. A. Poe “The Raven” (1845). Poe faz a ponte com os simbolistas franceses, nomeadamente com Baudelaire e Mallarmé, estando assim associado ao ambiente francês e a Mário Botas, que fez 51 desenhos para Le Spleen de Paris [8]. No ensaio “The Philosophy of Composition”, Poe escreve: “I made the bird alight on the bust of Pallas, also for the effect of contrast between the marble and the plumage” [9]. O fantasma repetirá, qual eco do corvo de Poe, a palavra “nevermore”, refrão do poema (p. 19), para não perdermos de vista a sugestão da ligação a Poe. Mas só no final do conto compreendemos que toda esta encenação textual do domínio do fantástico é, afinal, uma reflexão não só sobre o carácter vão de toda a arte – “Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a vanitas inerente a toda a arte?”- , mas ainda mais uma metaficção sobre a “justa medida dos mestres” (p. 59).
 
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(a continuar neste blogue)
 

Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

 

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

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Imagem: Rembrandt (1606-1669), Palas Ateneia - Museu Calouste Gulbenkian
 

*Comunicação apresentada ao Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) na Universidade de Yale em Outubro de 2008.
[1] Cf. Entrevista na Universidade de Georgetown em 1984 (gravação em vídeo: National Conference of the Teaching of Portuguese. Author Series 1984).
[2] Cf. Almeida Faria, Vanitas - 51, avenue d’Iéna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. (Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição).
[3] Almeida Faria, “Peregrinação”. In: Antologia do conto fantástico português. Ed. F. R. de Mello com introdução de E. M. de Melo e Castro. Lisboa: Ed. Afrodite, 1974.
[4] Cf. Eduardo Lourenço, “duas vanitas”. In: Almeida Faria, Vanitas, p. 5.
[5]  Almeida Faria, Cavaleiro Andante, Lisboa: INCM, 1983,  p. 207.
[6]  Cf. a imprensa diária da época,  Janeiro de 2007.
[7] O mito que relata o nascimento da deusa da cabeça de Zeus aponta para uma teoria masculina de criação do mundo, como a da Bíblia. Vd. neste contexto Erich Fromm, The Forgotten Language. Introduction to the Understanding of Dreams, Fairy Tales and Myths. NY: Grove Press, 1957, p. 231-235. É curioso o confronto com o final de “Peregrinação”, de Almeida Faria, no qual a ideia de criação é essencialmente feminina: “Ele era pois um homem que visitara outrora esses lugares e neles estava ela, a madre, a terra, a deusa, a fonte fundante e farta, fim e começo, imóvel, concentrada num trabalho difícil, total e infindável.” (p. 665)
[8] Cf. Harry Levin, “Journey to the end of the night”, in: The Power of Blackness. NY: A. A. Knopf, 1970, p. 103: “Poe, poète, poésie”.
[9] Cf. Poe, E. A., “The Philosophy of Composition”, in: Selected Writings. Harmondsworth: Penguin, 1982, p. 489.