A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria
(...)
Para
analisar o conto fazendo jus a este seu traço fundamental, partiremos de um
outro texto de Poe de que já falámos, “The Philosophy of Composition”, de 1846.
Neste ensaio, Poe revisita o seu poema “The Raven” e tenta explicar como chegou
à sua composição. Trata-se de uma análise minuciosa, quase matemática, da
génese do poema, transformando-o em caso exemplar de uma estética de efeito,
extremamente construído e artificial [1].
Poe refere que a maior parte dos poetas preferem omitir o processo de
composição e dar a entender que compõem “by a species of fine frenzy – as
ecstatic intuition” [2],
nisto residindo a sua vaidade autorial: “the autorial vanity has had more to do
with the omission than any one other cause”[3].
Poe incorre na vaidade autorial contrária, descrevendo o processo criativo de
“The Raven” e como “the work proceeded, step by step, to its completion with
the precise and rigid consequence of a mathematical problem.” [4]
A primeira consideração de Poe diz
respeito à extensão, de que depende a unidade ou totalidade de impressão ou de
efeito do poema. A brevidade terá como efeito a desejada intensidade, a
excitação e elevação da alma. A segunda consideração diz respeito ao tema: a
beleza é eleita como a única legítima província do poema, já que o prazer mais
intenso e que eleva mais a alma provém da contemplação do belo. Para Poe, a
beleza não é uma qualidade, mas um efeito – a pura e intensa elevação não do
intelecto ou do coração, mas da alma. A terceira consideração diz respeito ao
tom do poema: aquele que mais convém à beleza é a tristeza, e a melancolia é o
mais legítimo dos tons poéticos. O mais melancólico dos assuntos é a morte, e
nada mais poético que a morte de uma mulher bela, cantada pelo amante que
sofreu a perda.
Vanitas parece corresponder aos preceitos de Poe: é um texto curto e que prima
pela contenção, rigorosamente construído na sua composição, como veremos. Não
só o autor seguiu o ensaio de Poe, mas o conto parece glosar aspectos do poema
“The Raven”, que é uma balada: o começo abrupto no meio da acção, a mistura dos
géneros, o encontro fatídico aqui transformado na aparição do fantasma,
envolvido numa moldura de quotidiano, como nas baladas modernas. A exigência da
beleza como província do poema cumpre-se também: a escolha da pintura como tema
adequa-se à representação da beleza exterior, física, ou para parodiar Poe, ou
porque afinal o tema do conto é a vaidade, “vanitas”.
Quanto à terceira exigência, a do tom, torna-se mais claro o tom irónico do
conto de Almeida Faria – a alusão à perda da mulher amada, quer em “The Raven”,
quer em outros textos de Poe como “Lenore”, “Ulalume”, “Ligeia” – aparece no
título da exposição do pintor / narrador, “As Lágrimas de Eros”, talvez uma
alusão à história de Eros e Psique (Eros perde repetidas vezes Psique antes de
a recuperar). A ironia continua na maneira possessiva como o fantasma se refere
à sua galeria de quadros de figuras femininas como se de mulheres vivas se
tratasse.
O lugar deve, segundo Poe, circunscrever
o espaço como a moldura a um quadro: “a close circumscription of space is
absolutely necessary to the effect (...) – it has the force of a frame to a
picture” [5]. Vanitas segue à risca esta determinação, encenando todo o acontecer,
o encontro do pintor / narrador com o fantasma, recordação de quando “o real
descarrilara” (p. 56), na casa-palácio da Avenue d’Iéna.
Quanto ao tom, Vanitas é um texto
sobre a transitoriedade, mas sem verdadeira melancolia nem nostalgia. Os vivos
estão contentes com a sua condição humana, o fantasma está igualmente
satisfeito com o seu estado e nem sequer quer recomeçar a cadeia de
renascimentos. Há uma grande ironia em relação à exigência do tom melancólico
proposto por Poe: não há figuras femininas, só quadros de figuras femininas,
que ocupam a vida do fantasma de modo aparentemente mais intenso, segundo ele
próprio diz, do que as figuras reais do seu universo familiar. Não há luto,
sentimento de perda ou desinvestimento no ego – fala da vaidade alguém
que se situa não do lado da perda (luto) ou da depressão (melancolia). A vanitas (o que é vão, transitório) não
se encontra neste conto sob o signo melancólico de Saturno [6].
Este texto parece antes retomar a tradição do conto fantástico, alemão ou
vitoriano, ao colocar o monólogo do fantasma numa moldura credível, atribuindo
o seu aparecimento a uma causa plausível, a um filtro contido na comida, ou à
influência da leitura do livro de ensaios de Herbert [7].
A ideia de luto e melancolia, resultantes no ensaio de Poe da perda da mulher
amada, é parodiada na figura do coleccionador transformado em fantasma –
continua ligado aos quadros, às aquisições, como se de pessoas se tratasse [8].
As personagens de Vanitas parecem
ser um recurso de composição [9].
O fantasma do coleccionador Calouste Gulbenkian e o pintor sem nome que é o
narrador do conto são as duas personagens desta ficção, na qual aquilo que
acontece é, em termos de acção exterior, o aparecimento do fantasma. Mas há
ainda a nível da reflexão metaficcional o implícito Poe, o pintor holandês Jan
Simonsz van der Beeck, autodenominado Torrentius, e o poeta Saint-John Perse.
Todos eles são uma espécie de duplos do autor, representando aspectos
estruturantes da criação poética em conflito ou em acção entre si.
Curiosamente, todos são inspirados em figuras que existiram na realidade, à
excepção do pintor que narra – mas esse, naturalmente, está mais próximo do
autor. O que estas personagens têm de curioso é que funcionam em constelação,
reforçando-se ou contradizendo-se, iluminando-se reciprocamente e ilustrando o
tema metaficcional do conto, a procura do tom justo na arte, seja ela a pintura
ou a literatura. A reflexão de Poe sobre a composição encontra um paralelo na
filosofia prática do coleccionador – a reflexão sobre o coleccionar faz parte
da reflexão sobre Poe, equivalendo o desejo de ter e possuir do
coleccionador à vontade de composição como domínio e controle no
ensaio de Poe. No outro extremo temos Saint-John Perse e Torrentius,
representando a predominância do conteúdo sobre a forma. O fantasma diz dos
versos de Saint-John Perse: “Nem são bem versos, são versículos em tom
oracular, de fôlego oceânico, de uma eloquência quente, comovente, frases como
vagas demoradas” (p. 34-35). Saint-John
Perse está mais do lado da natureza, das coisas concretas, dos sentidos - representa
uma liberdade e uma fluência na criação artística que faz recordar o primeiro
romance de Almeida Faria, Rumor Branco, que segundo o próprio escritor
diz “foi escrito de um jacto, sem correcções” [10].
É impossível não recordar um passo de Cavaleiro
Andante em que se define deste modo a oposição entre clássico e barroco:
ou barroco até ao delírio, ou
o mais clássico possível, nisto e no resto não gosto de purgatórios nem de
sensatos meios termos. Os barrocos são mais estimulantes, a invenção verbal,
o desmesurado discurso, quanto mais imprevisíveis, mais parecidos com a
infinita variedade da vida. Os clássicos serão admiráveis mas não me inspiram,
talvez por perfeitos em demasia; não tento sequer ser como eles, não sou da sua
linha: toda a grandeza deles se situa no culto de medida, num certo menosprezo
dos vocábulos isolados, sempre postos ao serviço do comum equilíbrio, do
conjunto. Os meus barrocos, com risco de falhanço por excessivos, tornam o
prazer de formular algo novo num fim em si, num puro gozo. [11]
Almeida
Faria vê na oposição entre clássico e barroco a tensão entre por um lado a
medida, o equilíbrio, a “perfeição”, e por outro a desmesura e a invenção do
novo. Mas a tensão encontra-se também dentro do próprio conceito de barroco,
que privilegia as antíteses e contrastes e vive de uma polaridade e tensão
interior básica. Toda a grande mobilidade de pensamento própria do barroco se
exprime numa moldura de regras formais de grande rigidez. Veremos como esta
tensão interior ao próprio barroco se conformará em Vanitas.
(...)
(a continuar neste blogue)
Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)
In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
Ler o texto completo aqui
[1] Cf. Kindlers Neues Literatur Lexikon, Bd. 13, ed. W. Jens,
München: Kindler Verlag, 1988, p. 496-7.
[2] E. A. Poe, op. cit., p. 481.
[3] Id. ibid.
[4] Id. ibid., p. 482.
[5] Poe, op. cit.
[6] Cf. a este respeito Jean Starobinski, “The
idea of nostalgia”, in: Diogenes 54, Summer 1966; Julia Kristeva, Black
Sun, Depression and Melancholia. NY: Columbia University
Press, 1989; Susan Sontag, Under the Sign of Saturn. NY: Farrar. Starus.
Giroux, 1980; Linda Hutcheon, “Irony, Nostalgia and Postmodernism”, in:
http://www.library.utoronto.ca/util/criticism/hutchinp.html.
[7] A influência é também da personagem da mulher louca no sótão, em Jane
Eyre, de Charlotte Brontë, segundo o próprio autor, numa sessão de leitura
de Vanitas em Lisboa, na Livraria Bulhosa, a 18 de Dezembro de 2007.
[8] Cf. a este propósito o ensaio de Freud “On Transience”, de 1915; ainda
“Mourning and Melancholia”, escrito alguns meses antes, mas publicado só em
1917. O tom de grande serenidade, bem como a reflexão sobre a beleza de “On
Transience”, ligam Vanitas mais a este ensaio.
[9] Henry James define as personagens de um romance como “a compositional resource”
– cf. Susan Sontag, “The Pornographic Imagination”, in: A Susan Sontag Reader.
Toronto : McGraw Hill Ryerson Ltd, 1982, p. 210.
[11] Cf. op. cit., p. 199, cap. 51, carta de J. C. a Marta.