quarta-feira, 19 de setembro de 2012

 
 
 
 
 
A procura do tom
justo no conto Vanitas – 51, avenue d’Iéna de Almeida Faria
 
 
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Para analisar o conto fazendo jus a este seu traço fundamental, partiremos de um outro texto de Poe de que já falámos, “The Philosophy of Composition”, de 1846. Neste ensaio, Poe revisita o seu poema “The Raven” e tenta explicar como chegou à sua composição. Trata-se de uma análise minuciosa, quase matemática, da génese do poema, transformando-o em caso exemplar de uma estética de efeito, extremamente construído e artificial [1]. Poe refere que a maior parte dos poetas preferem omitir o processo de composição e dar a entender que compõem “by a species of fine frenzy – as ecstatic intuition” [2], nisto residindo a sua vaidade autorial: “the autorial vanity has had more to do with the omission than any one other cause”[3]. Poe incorre na vaidade autorial contrária, descrevendo o processo criativo de “The Raven” e como “the work proceeded, step by step, to its completion with the precise and rigid consequence of a mathematical problem.” [4]
 
       A primeira consideração de Poe diz respeito à extensão, de que depende a unidade ou totalidade de impressão ou de efeito do poema. A brevidade terá como efeito a desejada intensidade, a excitação e elevação da alma. A segunda consideração diz respeito ao tema: a beleza é eleita como a única legítima província do poema, já que o prazer mais intenso e que eleva mais a alma provém da contemplação do belo. Para Poe, a beleza não é uma qualidade, mas um efeito – a pura e intensa elevação não do intelecto ou do coração, mas da alma. A terceira consideração diz respeito ao tom do poema: aquele que mais convém à beleza é a tristeza, e a melancolia é o mais legítimo dos tons poéticos. O mais melancólico dos assuntos é a morte, e nada mais poético que a morte de uma mulher bela, cantada pelo amante que sofreu a perda.
 
       Vanitas parece corresponder aos preceitos de Poe: é um texto curto e que prima pela contenção, rigorosamente construído na sua composição, como veremos. Não só o autor seguiu o ensaio de Poe, mas o conto parece glosar aspectos do poema “The Raven”, que é uma balada: o começo abrupto no meio da acção, a mistura dos géneros, o encontro fatídico aqui transformado na aparição do fantasma, envolvido numa moldura de quotidiano, como nas baladas modernas. A exigência da beleza como província do poema cumpre-se também: a escolha da pintura como tema adequa-se à representação da beleza exterior, física, ou para parodiar Poe, ou porque afinal o tema do conto é a vaidade, “vanitas”. Quanto à terceira exigência, a do tom, torna-se mais claro o tom irónico do conto de Almeida Faria – a alusão à perda da mulher amada, quer em “The Raven”, quer em outros textos de Poe como “Lenore”, “Ulalume”, “Ligeia” – aparece no título da exposição do pintor / narrador, “As Lágrimas de Eros”, talvez uma alusão à história de Eros e Psique (Eros perde repetidas vezes Psique antes de a recuperar). A ironia continua na maneira possessiva como o fantasma se refere à sua galeria de quadros de figuras femininas como se de mulheres vivas se tratasse.
 
       O lugar deve, segundo Poe, circunscrever o espaço como a moldura a um quadro: “a close circumscription of space is absolutely necessary to the effect (...) – it has the force of a frame to a picture” [5]. Vanitas segue à risca esta determinação, encenando todo o acontecer, o encontro do pintor / narrador com o fantasma, recordação de quando “o real descarrilara” (p. 56), na casa-palácio da Avenue d’Iéna.
 
       Quanto ao tom, Vanitas é um texto sobre a transitoriedade, mas sem verdadeira melancolia nem nostalgia. Os vivos estão contentes com a sua condição humana, o fantasma está igualmente satisfeito com o seu estado e nem sequer quer recomeçar a cadeia de renascimentos. Há uma grande ironia em relação à exigência do tom melancólico proposto por Poe: não há figuras femininas, só quadros de figuras femininas, que ocupam a vida do fantasma de modo aparentemente mais intenso, segundo ele próprio diz, do que as figuras reais do seu universo familiar. Não há luto, sentimento de perda ou desinvestimento no ego – fala da vaidade alguém que se situa não do lado da perda (luto) ou da depressão (melancolia). A vanitas (o que é vão, transitório) não se encontra neste conto sob o signo melancólico de Saturno [6]. Este texto parece antes retomar a tradição do conto fantástico, alemão ou vitoriano, ao colocar o monólogo do fantasma numa moldura credível, atribuindo o seu aparecimento a uma causa plausível, a um filtro contido na comida, ou à influência da leitura do livro de ensaios de Herbert [7]. A ideia de luto e melancolia, resultantes no ensaio de Poe da perda da mulher amada, é parodiada na figura do coleccionador transformado em fantasma – continua ligado aos quadros, às aquisições, como se de pessoas se tratasse [8].
 
       As personagens de Vanitas parecem ser um recurso de composição [9]. O fantasma do coleccionador Calouste Gulbenkian e o pintor sem nome que é o narrador do conto são as duas personagens desta ficção, na qual aquilo que acontece é, em termos de acção exterior, o aparecimento do fantasma. Mas há ainda a nível da reflexão metaficcional o implícito Poe, o pintor holandês Jan Simonsz van der Beeck, autodenominado Torrentius, e o poeta Saint-John Perse. Todos eles são uma espécie de duplos do autor, representando aspectos estruturantes da criação poética em conflito ou em acção entre si. Curiosamente, todos são inspirados em figuras que existiram na realidade, à excepção do pintor que narra – mas esse, naturalmente, está mais próximo do autor. O que estas personagens têm de curioso é que funcionam em constelação, reforçando-se ou contradizendo-se, iluminando-se reciprocamente e ilustrando o tema metaficcional do conto, a procura do tom justo na arte, seja ela a pintura ou a literatura. A reflexão de Poe sobre a composição encontra um paralelo na filosofia prática do coleccionador – a reflexão sobre o coleccionar faz parte da reflexão sobre Poe, equivalendo o desejo de ter e possuir do coleccionador à vontade de composição como domínio e controle no ensaio de Poe. No outro extremo temos Saint-John Perse e Torrentius, representando a predominância do conteúdo sobre a forma. O fantasma diz dos versos de Saint-John Perse: “Nem são bem versos, são versículos em tom oracular, de fôlego oceânico, de uma eloquência quente, comovente, frases como vagas demoradas” (p. 34-35).  Saint-John Perse está mais do lado da natureza, das coisas concretas, dos sentidos - representa uma liberdade e uma fluência na criação artística que faz recordar o primeiro romance de Almeida Faria, Rumor Branco, que segundo o próprio escritor diz “foi escrito de um jacto, sem correcções” [10].
 
     É impossível não recordar um passo de Cavaleiro Andante em que se define deste modo a oposição entre clássico e barroco:
 
ou barroco até ao delírio, ou o mais clássico possível, nisto e no resto não gosto de purgatórios nem de sensatos meios termos. Os barrocos são mais estimulantes, a invenção verbal, o desmesurado discurso, quanto mais imprevisíveis, mais parecidos com a infinita variedade da vida. Os clássicos serão admiráveis mas não me inspiram, talvez por perfeitos em demasia; não tento sequer ser como eles, não sou da sua linha: toda a grandeza deles se situa no culto de medida, num certo menosprezo dos vocábulos isolados, sempre postos ao serviço do comum equilíbrio, do conjunto. Os meus barrocos, com risco de falhanço por excessivos, tornam o prazer de formular algo novo num fim em si, num puro gozo. [11]
 
Almeida Faria vê na oposição entre clássico e barroco a tensão entre por um lado a medida, o equilíbrio, a “perfeição”, e por outro a desmesura e a invenção do novo. Mas a tensão encontra-se também dentro do próprio conceito de barroco, que privilegia as antíteses e contrastes e vive de uma polaridade e tensão interior básica. Toda a grande mobilidade de pensamento própria do barroco se exprime numa moldura de regras formais de grande rigidez. Veremos como esta tensão interior ao próprio barroco se conformará em Vanitas.
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(a continuar neste blogue)

Ana Maria Delgado ( Universidade de Leipzig, Alemanha, Instituto Camões, CLEPUL)

In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
 

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Imagem: Retrato de Calouste Gulbenkian - Museu Calouste Gulbenkian



[1] Cf. Kindlers Neues Literatur Lexikon, Bd. 13, ed. W. Jens, München: Kindler Verlag, 1988, p. 496-7.
[2] E. A. Poe, op. cit., p. 481.
[3] Id. ibid.
[4] Id. ibid., p. 482.
[5] Poe, op. cit.
[6] Cf. a este respeito Jean Starobinski, “The idea of nostalgia”, in: Diogenes 54, Summer 1966; Julia Kristeva, Black Sun, Depression and Melancholia. NY: Columbia University Press, 1989; Susan Sontag, Under the Sign of Saturn. NY: Farrar. Starus. Giroux, 1980; Linda Hutcheon, “Irony, Nostalgia and Postmodernism”, in: http://www.library.utoronto.ca/util/criticism/hutchinp.html.
[7] A influência é também da personagem da mulher louca no sótão, em Jane Eyre, de Charlotte Brontë, segundo o próprio autor, numa sessão de leitura de Vanitas em Lisboa, na Livraria Bulhosa, a 18 de Dezembro de 2007.
[8] Cf. a este propósito o ensaio de Freud “On Transience”, de 1915; ainda “Mourning and Melancholia”, escrito alguns meses antes, mas publicado só em 1917. O tom de grande serenidade, bem como a reflexão sobre a beleza de “On Transience”, ligam Vanitas mais a este ensaio.
[9] Henry James define as personagens de um romance como “a compositional resource” – cf. Susan Sontag, “The Pornographic Imagination”, in: A Susan Sontag Reader. Toronto: McGraw Hill Ryerson Ltd, 1982, p. 210.
[10] Cf. Entrevista em Georgetown.
 
[11] Cf. op. cit.,  p. 199, cap. 51, carta de J. C. a Marta.