sábado, 19 de maio de 2012


Polifonia em Parábola del Palacio de J. L. Borges

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       Um dos traços que mais claramente separa Borges dessa estética representacional ou mimética é o carácter de simulacro dos seus textos, o não-reconhecimento de uma origem, de um modelo ou arquétipo a imitar.[1] No Prefácio ao seu livro de 1968 Différence et répétition, o filósofo francês Gilles Deleuze propõe o exemplo do conto de Jorge Luis Borges “Pierre Menard, autor del Quixote” para ilustrar a relação de correspondência entre os conceitos de repetição e diferença: “On sait que Borges excelle dans le compte rendu de livres imaginaires. Mais il va plus loin lorsqu’il considère un livre réel, par exemple le Don Quichotte, comme si c’était un livre imaginaire, lui-même reproduit par un auteur imaginaire, Pierre Ménard, qu’il considère à son tour comme réel. Alors la répétition la plus exacte, la plus stricte a pour correlat le maximum de différence.”[2] Para Deleuze, os conceitos de diferença e repetição substituem os conceitos hegelianos de identidade e contradição, sendo a Modernidade caracterizada pela falência da representação, pela perda das identidades e pela descoberta das forças que agem sob a representação do idêntico[3], e afirma que o mundo moderno é um mundo de simulacros.[4] O simulacro difere da cópia, representação ou mimésis pela relação de não-dependência, de distância total em relação a um hipotético original, já que é uma cópia sem original.[5] Esta perda da origem contida no simulacro corresponde à perda da historicidade e das grandes narrativas na nossa cultura. O reconhecimento da realidade como pólo inalcançável, bem como a afirmação simultânea da arte como pólo independente dessa mesma realidade, correspondem à falência da representação na estética ocidental que caracteriza o pós-modernismo. A caracterização do texto de Borges como simulacro mostra o reconhecimento por Deleuze, já em 1968, de uma característica própria da obra deste escritor que faz dele, antes do mais neste traço que consideramos essencial, um precursor do pós-modernismo.


       A alguns anos de distância, em 1980, Deleuze, escrevendo então de parceria com Guattari, continua a explorar a característica não-mimética da literatura e propõe a imagem do rizoma para caracterizar quer o texto literário, quer o texto musical moderno: “Le système-radicelle, ou racine fasciculée, est la seconde figure du livre, dont notre modernité se réclame volontiers.”[6] O livro-radícula distingue-se do livro-raiz: “Un premier type de livre, c’est le livre-racine. L’arbre est déjà l’image du monde, ou bien la racine est l’image de l’arbre-monde. C’est le livre classique, comme belle interiorité organique, signifiante et subjective (les strates du livre). Le livre imite le monde, comme l’art, la nature”.[7] Diferentemente o livro-radícula: “le livre n’est pas image du monde, suivant une croyance enracinée. Il fait rhizome avec le monde, il y a évolution aparallèle du livre et du monde, le livre assure la déterritoralisation du monde”.[8] O conceito de mimésis, que serve ainda para o livro-raiz, não é suficiente para o livro-radícula, ou livro-rizoma: “Le mimétisme est un très mauvais concept, dépendant d’une logique binaire, pour des phenomènes d’une tout autre nature.”[9] Nesta definição de escrita, a literatura e a música ficam próximas: “Écrire, faire rhizome, accroître son territoire par déterritorialisation, étendre la ligne de fuite jusqu’au point où elle couvre tout le plan de consistance en une machine abstraite.”[10] Os princípios que regem o desenvolvimento do rizoma e o distinguem da árvore do conhecimento (que não deverá ser confundida com a árvore bíblica do conhecimento), são os princípios de heterogeneidade e de conexão: “n’importe quel point d’un rhizome peut être connecté avec n’importe quel autre, et doit l’être. C’est très différent de l’arbre ou de la racine qui fixent un point, un ordre.”[11] Também a música é comparável ao rizoma: “La musique n’a pas cessé de faire passer ses lignes de fuite, comme autant de ‘multiplicités à transformation’, même en renversant ses propres codes qui la structurent ou l’arbrifient; c’est pourquoi la forme musicale, jusque dans ses ruptures et proliférations, est comparable à la mauvaise herbe, un rhizome.”[12]


       Encontramos a mesma imagética do reino vegetal em Pierre Boulez para descrever a música:[13] “Vous la plantez dans un mauvais terreau, et tout d’un coup, elle se met à proliférer comme de la mauvaise herbe.” Esta descrição da música como proliferação corresponde à concepção de melodia que encontramos em Bernstein: o que distingue a melodia de uma simples canção (“tune”), que é acabada, fechada em si mesma, repetitiva, é a existência de um tema (“theme”) a desenvolver.[14] A música é aqui (na transformação da desordem, do caos em ordem, em cosmos) bem sucedida onde a literatura falha, também porque está livre da obrigação e responsabilidade da representação. Na Literatura, imitação é geralmente sinónimo de mimésis, cópia, representação, e tem a ver com o conceito filosófico de identidade.[15] Na Música, que não é mimética, a imitação significa desenvolvimento, variação, e é elemento constitutivo do cânone, contraponto, fuga. Não representando o mundo real, ela é sinónimo de vida como movimento, mudança, evolução, crescimento.[16] A imitação literária a que costumamos chamar mimésis facilmente se torna limitadora e até mesmo entorpecedora, ao passo que a imitação musical, sinónimo de desenvolvimento, é libertadora, ou melhor ainda, é a própria liberdade enquanto vida, movimento. [17]


       E podemos agora fazer a ponte com o texto de Borges que nos propomos analisar.  Borges é frequentemente entendido como um autor demasiado intelectual, cerebral, seco, os seus escritos como confusos, complexos, intrigantes. Será meu propósito mostrar, neste ensaio, a qualidade musical do texto borgesiano, com as implicações que atrás foram expostas, exactamente através dessa grande complexidade sinfónica que o caracteriza. A minha proposta de leitura vai no sentido de entender a intertextualidade que é seu traço primeiro, sempreviva e autêntica “chambre d’échos”,[18] como presença de várias vozes, ou melhor ainda:  vários temas e variações na sua escrita. Tentarei escutar essas várias vozes e, ousarei mesmo dizê-lo agora, melodias nela presentes, fazendo jus ao Borges lírico, que na Arte Poética exprime o desejo de dar à sua escrita uma qualidade musical. [19]

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(a continuar)

In: Alma América. In honorem Victorino Polo. Tomo I. Ed. Vicente Cervera Salinas / María Dolores Adsuar Fernandez. Universidad de Murcia, 2008

[1] Cf. Georges Teyssot, “Specular relation”, in: Assemblage, Nº 20, 1993, p. 79: “Through (…) a nomadism that inserts itself between dichotomies, thought comes in some measure to free itself from the ‘fundamental’ notion of origin, by which traditionally the copy follows the model and the type the archetype.”
[2] Cf. Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris 1968, p. 1.
[3] Cf. id. ibid., p. 1: “la pensée moderne naît de la faillite de la représentation, comme de la perte des identités, et de la découverte de toutes les forces qui agissent sous la représentation de l’identique.”
[4] Cf. id. ibid., p. 1: “Le monde moderne est celui des simulacres”.
[5] Cf. Fredric Jameson, “Post-modernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism”, in: NLR, 146, July/August 1984, p. 89: “’simulacrum’ – the identical copy for which no original has ever existed.”
[6]  Cf. Gilles Deleuze / Félix Guattari, “Rhizome”, in: Capitalisme et Schizophrénie. Mille Plateaux. Les Éditions de Minuit, Paris 1980, p. 12.
[7]  Cf. id. ibid., p. 11.
[8] Cf. id. ibid., p. 18.
[9] Cf. id. ibid.
[10] Cf. id., ibid., p. 19.
[11] Cf. id. ibid., p. 13.
[12] Cf. id. ibid., p. 19.
[13] Cf. id. ibid.
[14] Cf. Leonard Bernstein, Young People’s Concerts, “What is a Melody?”, 21 de Dezembro de 1962.         
[15] Cf. Gilles Deleuze, Différence et Répétition, p. 1: “O primado da identidade (...) define o mundo da representação.” Mas também: “o pensamento moderno nasce do falhanço da representação, como da perda das identidades (...) o mundo moderno é o mundo dos simulacros.”
[16] Cf. Leonard Bernstein, “Young People’s Concerts”, a 13 de Dezembro de 1958, “What Makes Music Symphonic?”
[17] Em 1997 Deleuze delimita Literatura e escrita do conceito de mimésis nos seguintes termos: “To write is certainly not to impose a form (of expression) on the matter of lived experience. Literature rather moves in the direction of the ill-formed or the incomplete (…) Writing is a question of becoming, always incomplete (…) To become is not to attain a form (identification, imitation, Mimesis) but to find the zone of proximity, indiscernibility, or undifferentiation (…)”. In: G.D., “Literature and Life”, Critical Inquiry 23, Winter 1997, p. 225.
[18] Cf. Rimbaud e Roland Barthes.
[19] Cf. a este respeito ainda o cap. “Variaciones del mar”, de Vicente Cervera Salinas, in: La poesia de Jorge Luis Borges: Historia de una eternidad. Univ. de Murcia, 1992.

segunda-feira, 14 de maio de 2012






Polifonia em Parábola del Palacio de J. L. Borges [1]



Quizá la historia universal es la historia de unas quantas metáforas.
J. L. Borges, La Esfera de Pascal


Convertir el ultraje de los años
En una música, un rumor y un símbolo.
J. L. Borges, Arte Poética


A bird does not sing
Because he has an answer
He sings
Because he has a song
Joan Walsh Anglund
                                                                                                                


       Gostaria de partir do desafio lançado por Daniel Balderston no final de um capítulo sobre “El escritor argentino y la tradición (occidental)”[2], ao afirmar: “no cabe duda de que a medida que pasan los años después de su muerte en Ginebra, Borges, como Gardel, canta cada día mejor”, e propôr o termo musical “polifonia” para abordar o texto borgesiano. Servindo-nos de guia nessa viagem pelo texto de Borges, sempre em processo de transformação, a metáfora musical, mais do que indicar um caminho certo e um destino preciso no mapa das letras de Borges, ajudar-nos-á a alegremente nos perdermos nesse mapa para melhor nos encontrarmos, descobrindo ou reconhecendo traços talvez esquecidos ou ignorados do nosso próprio rosto.

       Em música, polifonia significa a coexistência de “Muitos sons. Música na qual várias partes vocais ou instrumentais simultâneas são combinadas de modo contrapontístico, em oposição à música monofónica (uma só melodia) ou música homofónica (uma linha melódica com acompanhamento).”[3] Polifonia ou dialogismo, tal como conceito desenvolvido na crítica literária a partir da obra do filósofo e crítico literário russo Michael Bachtin, significa uma pluralidade de discursos, uma variedade de vozes existentes no moderno romance polifónico, que representa as várias vozes sócio-ideológicas da época. O autor orquestra as diferentes vozes, perspectivas e mundivisões, sem que haja uma voz que apague as outras, incluindo a sua própria, através desse seu duplo, o narrador. Este dialogismo que faz parte da estrutura subversiva do Carnaval, segundo Bachtin, reflecte na moldura narrativa valores democráticos e anti-hierárquicos e opõe-se a uma perspectiva monológica, à predominância de uma só voz, característica de sociedades tradicionais e de construção hierárquica.[4] A partir deste conceito de polifonia ou dialogismo de Bachtin, Julia Kristeva propõe em 1972 o termo intertextualidade[5] para descrever a relação dialógica dos textos uns com os outros: “any text is constructed as a mosaic of quotations; any text is the absorption and transformation of another.”[6] 


       A metáfora musical contida na palavra polifonia convém a Borges, que aspira a essa qualidade musical para a sua obra, tal como nos diz em “Arte Poética”: “Convertir el ultraje de los años / En una música, un rumor y un símbolo”, recorrendo à música, essa “misteriosa forma del tiempo”[7], para exprimir o seu grau de exigência como escritor. A música é aqui a possível redenção da passagem do tempo, numa vida de escritor que não a quer só “full of sound and fury, / Signifying nothing.” [8] Repetidamente se refere à literatura, e em especial à poesia, como música - no “Otro poema de los dones”, “la música verbal de Inglaterra, (...) la música verbal de Alemania”. Aparentemente de pendor filosófico e grande complexidade, a obra de Borges, mais do que dar respostas ou mesmo questionar, seguindo o exemplo do um dos seus precursores, Kafka, apresenta sobretudo modulações, variações dos mesmos temas, tal como uma canção. É ele próprio que diz: “Quizá la historia universal es la historia de unas quantas metáforas.” [9] A concepção de literatura de Borges, plasmada no conto “El inmortal”, é uma concepção de literatura como obra simultaneamente una e múltipla, produzida pelos vários autores ao longo dos tempos, consequência da “unidad profunda del Verbo, otro negador de los límites del sujeto”. [10] É o próprio Borges quem a denomina de ecumémica, pondo em evidência “un mismo sentido del arte. Un sentido ecuménico, impersonal”.[11] Panteísmo e classicismo combinam-se nesta concepção de literatura: “el panteísta que declara que la pluralidad de los autores es ilusoria, encuentra inesperadamente apoyo en el clasicista, según el cual esa pluralidad importa muy poco. Para las mentes clásicas, la literatura es lo esencial, no los individuos.”[12]


       Deixei para o fim a razão principal pela qual a metáfora musical convém a Borges: é que a música não é mimética, não representa nada, não é sobre nada, tal como magistralmente explica Leonard Bernstein no primeiro dos seus Young People’s Concerts, “What Does Music Mean?”, de 18 de Janeiro de 1958. Esta explicação da música como arte não-mimética por excelência não pode aplicar-se sem mais à literatura, pois como o próprio Bernstein explica, uma só palavra significa, sugere, ao passo que um só som não. Mas o texto de Borges aproxima-se da música pelo seu carácter auto-referencial e não-mimético. É um texto que não toma como referência a realidade, mas sim outros textos e outros livros, incluindo os próprios. A compreensão da obra de Borges não poderá, por isso, situar-se dentro dos parâmetros da mimésis e da representação, constituindo antes uma ruptura radical com a estética ocidental, baseada na representação.

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(a continuar)

In: Alma América. In honorem Victorino Polo. Tomo I. Ed. Vicente Cervera Salinas / María Dolores Adsuar Fernandez. Universidad de Murcia, 2008



[1] Este artigo foi apresentado como comunicação no Borges Symposium “The Place of Letters: The World in Borges,” na Universidade de Iowa, em Abril de 2007. Agradeço à Professora Doutora Marina Ramos Themudo as valiosas sugestões durante a redacção deste texto.
[2]  Cf. Daniel Balderston, Borges: realidades y simulacros. Buenos Aires: Biblos, 2000, p. 170.
[3]  Cf. Michael Kennedy, Dicionário Oxford da Música. Lisboa: D. Quixote,  1994, p. 554.
[4] Cf. Ansgar Nünning, “Dialogizität”, in: Metzler Lexikon der Literatur- und Kulturtheorie. Weimar, 1998,  p. 92-3.
[5]  Cf. id. ibid., op. cit., “Intertextualitätstheorien und Intertextualität”, p. 241-243.
[6]  Cf. Julia Kristeva, “Word, Dialogue and Novel”, in: Toril Moi, The Kristeva Reader. NY: Columbia University Press, 1986, p. 37.
[7]  Cf. J. L. Borges, “Otro poema de los dones”.
[8]  Cf. W. Shakespeare, Macbeth, Act. V, 5.
[9]  Cf. J. L. Borges, “La esfera de Pascal”.
[10]  Cf. J. L. Borges, “La flor de Coleridge”, in: Obras Completas. Buenos Aires: Emecê, 1974, p. 641.
[11]  Cf. id. ibid.
[12] Cf. id. ibid.