Polifonia
em Parábola del Palacio de J. L.
Borges [1]
Quizá la historia universal es la historia de
unas quantas metáforas.
J. L. Borges, La Esfera de Pascal
Convertir el ultraje de los
años
En una música, un
rumor y un símbolo.
J. L. Borges, Arte Poética
A bird does not sing
Because he has an answer
He sings
Because he has a song
Joan Walsh Anglund
Because he has an answer
He sings
Because he has a song
Joan Walsh Anglund
Gostaria de partir do desafio lançado por Daniel Balderston no final de
um capítulo sobre “El escritor argentino y la tradición (occidental)”[2],
ao afirmar: “no cabe duda de que a medida que pasan los años después de su
muerte en Ginebra, Borges, como Gardel, canta cada día mejor”, e propôr o termo
musical “polifonia” para abordar o texto borgesiano. Servindo-nos de guia nessa
viagem pelo texto de Borges, sempre em processo de transformação, a metáfora
musical, mais do que indicar um caminho certo e um destino preciso no mapa das
letras de Borges, ajudar-nos-á a alegremente nos perdermos nesse mapa para
melhor nos encontrarmos, descobrindo ou reconhecendo traços talvez esquecidos
ou ignorados do nosso próprio rosto.
Em música, polifonia significa
a coexistência de “Muitos sons. Música na qual várias partes vocais ou
instrumentais simultâneas são combinadas de modo contrapontístico, em oposição
à música monofónica (uma só melodia) ou música homofónica (uma linha melódica
com acompanhamento).”[3]
Polifonia ou dialogismo, tal como
conceito desenvolvido na crítica literária a partir da obra do filósofo e
crítico literário russo Michael Bachtin, significa uma pluralidade de
discursos, uma variedade de vozes existentes no moderno romance polifónico, que
representa as várias vozes sócio-ideológicas da época. O autor orquestra as
diferentes vozes, perspectivas e mundivisões, sem que haja uma voz que apague
as outras, incluindo a sua própria, através desse seu duplo, o narrador. Este
dialogismo que faz parte da estrutura subversiva do Carnaval, segundo Bachtin,
reflecte na moldura narrativa valores democráticos e anti-hierárquicos e
opõe-se a uma perspectiva monológica, à predominância de uma só voz,
característica de sociedades tradicionais e de construção hierárquica.[4]
A partir deste conceito de polifonia ou dialogismo de Bachtin, Julia Kristeva
propõe em 1972 o termo intertextualidade[5]
para descrever a relação dialógica dos textos uns com os outros: “any text is
constructed as a mosaic of quotations; any text is the absorption and
transformation of another.”[6]
A metáfora musical contida na palavra polifonia convém a Borges, que
aspira a essa qualidade musical para a sua obra, tal como nos diz em “Arte Poética”:
“Convertir el ultraje de los años / En una música, un rumor y un símbolo”,
recorrendo à música, essa “misteriosa forma del tiempo”[7],
para exprimir o seu grau de exigência como escritor. A música é aqui a possível
redenção da passagem do tempo, numa vida de escritor que não a quer só “full of
sound and fury, / Signifying nothing.” [8]
Repetidamente se refere à literatura, e em especial à poesia, como música - no
“Otro poema
de los dones”, “la música verbal de Inglaterra, (...) la música verbal
de Alemania”. Aparentemente de pendor filosófico e grande complexidade, a obra
de Borges, mais do que dar respostas ou mesmo questionar, seguindo o exemplo do
um dos seus precursores, Kafka, apresenta sobretudo modulações, variações dos
mesmos temas, tal como uma canção. É ele próprio que diz: “Quizá la historia universal es la historia
de unas quantas metáforas.” [9]
A concepção de literatura de Borges, plasmada no conto “El inmortal”, é uma concepção de
literatura como obra simultaneamente una e múltipla, produzida pelos vários
autores ao longo dos tempos, consequência da “unidad profunda del Verbo, otro
negador de los límites del sujeto”. [10]
É o próprio Borges quem a denomina de ecumémica, pondo em evidência “un mismo
sentido del arte. Un sentido ecuménico, impersonal”.[11]
Panteísmo e classicismo combinam-se nesta concepção de literatura: “el
panteísta que declara que la pluralidad de los autores es ilusoria, encuentra
inesperadamente apoyo en el clasicista, según el cual esa pluralidad importa
muy poco. Para las mentes clásicas, la literatura es lo esencial, no los
individuos.”[12]
Deixei para o fim a razão principal pela
qual a metáfora musical convém a Borges: é que a música não é mimética, não representa nada, não é
sobre nada, tal como magistralmente explica Leonard Bernstein no primeiro dos
seus Young People’s Concerts,
“What Does Music Mean?”, de 18 de Janeiro de 1958. Esta explicação da música
como arte não-mimética por excelência não pode aplicar-se sem mais à
literatura, pois como o próprio Bernstein explica, uma só palavra significa,
sugere, ao passo que um só som não. Mas o texto de Borges aproxima-se da música
pelo seu carácter auto-referencial e não-mimético. É um texto que não toma como
referência a realidade, mas sim outros textos e outros livros, incluindo os
próprios. A compreensão da obra de Borges não poderá, por isso, situar-se
dentro dos parâmetros da mimésis e da representação, constituindo antes uma
ruptura radical com a estética ocidental, baseada na representação.
(...)
[1] Este artigo foi apresentado como
comunicação no Borges Symposium “The Place of Letters: The World in Borges,” na
Universidade de Iowa, em Abril de 2007. Agradeço à Professora Doutora Marina
Ramos Themudo as valiosas sugestões durante a redacção deste texto.
[2]
Cf. Daniel Balderston, Borges:
realidades y simulacros. Buenos Aires: Biblos, 2000, p. 170.
[3]
Cf. Michael Kennedy, Dicionário
Oxford da Música. Lisboa: D. Quixote, 1994, p. 554.
[4] Cf. Ansgar Nünning, “Dialogizität”, in: Metzler
Lexikon der Literatur- und Kulturtheorie. Weimar, 1998, p. 92-3.
[5] Cf. id. ibid., op. cit.,
“Intertextualitätstheorien und Intertextualität”, p. 241-243.
[6] Cf. Julia Kristeva, “Word, Dialogue and
Novel”, in: Toril Moi, The Kristeva
Reader. NY: Columbia University Press, 1986, p. 37.
[7]
Cf. J. L. Borges, “Otro poema de los dones”.
[8] Cf. W. Shakespeare, Macbeth, Act. V, 5.
[9]
Cf. J. L. Borges, “La esfera de Pascal”.
[10] Cf. J. L. Borges, “La flor de Coleridge”, in: Obras
Completas. Buenos Aires: Emecê, 1974, p. 641.
[11] Cf. id. ibid.
[12]
Cf. id. ibid.