segunda-feira, 14 de maio de 2012






Polifonia em Parábola del Palacio de J. L. Borges [1]



Quizá la historia universal es la historia de unas quantas metáforas.
J. L. Borges, La Esfera de Pascal


Convertir el ultraje de los años
En una música, un rumor y un símbolo.
J. L. Borges, Arte Poética


A bird does not sing
Because he has an answer
He sings
Because he has a song
Joan Walsh Anglund
                                                                                                                


       Gostaria de partir do desafio lançado por Daniel Balderston no final de um capítulo sobre “El escritor argentino y la tradición (occidental)”[2], ao afirmar: “no cabe duda de que a medida que pasan los años después de su muerte en Ginebra, Borges, como Gardel, canta cada día mejor”, e propôr o termo musical “polifonia” para abordar o texto borgesiano. Servindo-nos de guia nessa viagem pelo texto de Borges, sempre em processo de transformação, a metáfora musical, mais do que indicar um caminho certo e um destino preciso no mapa das letras de Borges, ajudar-nos-á a alegremente nos perdermos nesse mapa para melhor nos encontrarmos, descobrindo ou reconhecendo traços talvez esquecidos ou ignorados do nosso próprio rosto.

       Em música, polifonia significa a coexistência de “Muitos sons. Música na qual várias partes vocais ou instrumentais simultâneas são combinadas de modo contrapontístico, em oposição à música monofónica (uma só melodia) ou música homofónica (uma linha melódica com acompanhamento).”[3] Polifonia ou dialogismo, tal como conceito desenvolvido na crítica literária a partir da obra do filósofo e crítico literário russo Michael Bachtin, significa uma pluralidade de discursos, uma variedade de vozes existentes no moderno romance polifónico, que representa as várias vozes sócio-ideológicas da época. O autor orquestra as diferentes vozes, perspectivas e mundivisões, sem que haja uma voz que apague as outras, incluindo a sua própria, através desse seu duplo, o narrador. Este dialogismo que faz parte da estrutura subversiva do Carnaval, segundo Bachtin, reflecte na moldura narrativa valores democráticos e anti-hierárquicos e opõe-se a uma perspectiva monológica, à predominância de uma só voz, característica de sociedades tradicionais e de construção hierárquica.[4] A partir deste conceito de polifonia ou dialogismo de Bachtin, Julia Kristeva propõe em 1972 o termo intertextualidade[5] para descrever a relação dialógica dos textos uns com os outros: “any text is constructed as a mosaic of quotations; any text is the absorption and transformation of another.”[6] 


       A metáfora musical contida na palavra polifonia convém a Borges, que aspira a essa qualidade musical para a sua obra, tal como nos diz em “Arte Poética”: “Convertir el ultraje de los años / En una música, un rumor y un símbolo”, recorrendo à música, essa “misteriosa forma del tiempo”[7], para exprimir o seu grau de exigência como escritor. A música é aqui a possível redenção da passagem do tempo, numa vida de escritor que não a quer só “full of sound and fury, / Signifying nothing.” [8] Repetidamente se refere à literatura, e em especial à poesia, como música - no “Otro poema de los dones”, “la música verbal de Inglaterra, (...) la música verbal de Alemania”. Aparentemente de pendor filosófico e grande complexidade, a obra de Borges, mais do que dar respostas ou mesmo questionar, seguindo o exemplo do um dos seus precursores, Kafka, apresenta sobretudo modulações, variações dos mesmos temas, tal como uma canção. É ele próprio que diz: “Quizá la historia universal es la historia de unas quantas metáforas.” [9] A concepção de literatura de Borges, plasmada no conto “El inmortal”, é uma concepção de literatura como obra simultaneamente una e múltipla, produzida pelos vários autores ao longo dos tempos, consequência da “unidad profunda del Verbo, otro negador de los límites del sujeto”. [10] É o próprio Borges quem a denomina de ecumémica, pondo em evidência “un mismo sentido del arte. Un sentido ecuménico, impersonal”.[11] Panteísmo e classicismo combinam-se nesta concepção de literatura: “el panteísta que declara que la pluralidad de los autores es ilusoria, encuentra inesperadamente apoyo en el clasicista, según el cual esa pluralidad importa muy poco. Para las mentes clásicas, la literatura es lo esencial, no los individuos.”[12]


       Deixei para o fim a razão principal pela qual a metáfora musical convém a Borges: é que a música não é mimética, não representa nada, não é sobre nada, tal como magistralmente explica Leonard Bernstein no primeiro dos seus Young People’s Concerts, “What Does Music Mean?”, de 18 de Janeiro de 1958. Esta explicação da música como arte não-mimética por excelência não pode aplicar-se sem mais à literatura, pois como o próprio Bernstein explica, uma só palavra significa, sugere, ao passo que um só som não. Mas o texto de Borges aproxima-se da música pelo seu carácter auto-referencial e não-mimético. É um texto que não toma como referência a realidade, mas sim outros textos e outros livros, incluindo os próprios. A compreensão da obra de Borges não poderá, por isso, situar-se dentro dos parâmetros da mimésis e da representação, constituindo antes uma ruptura radical com a estética ocidental, baseada na representação.

(...)

(a continuar)

In: Alma América. In honorem Victorino Polo. Tomo I. Ed. Vicente Cervera Salinas / María Dolores Adsuar Fernandez. Universidad de Murcia, 2008



[1] Este artigo foi apresentado como comunicação no Borges Symposium “The Place of Letters: The World in Borges,” na Universidade de Iowa, em Abril de 2007. Agradeço à Professora Doutora Marina Ramos Themudo as valiosas sugestões durante a redacção deste texto.
[2]  Cf. Daniel Balderston, Borges: realidades y simulacros. Buenos Aires: Biblos, 2000, p. 170.
[3]  Cf. Michael Kennedy, Dicionário Oxford da Música. Lisboa: D. Quixote,  1994, p. 554.
[4] Cf. Ansgar Nünning, “Dialogizität”, in: Metzler Lexikon der Literatur- und Kulturtheorie. Weimar, 1998,  p. 92-3.
[5]  Cf. id. ibid., op. cit., “Intertextualitätstheorien und Intertextualität”, p. 241-243.
[6]  Cf. Julia Kristeva, “Word, Dialogue and Novel”, in: Toril Moi, The Kristeva Reader. NY: Columbia University Press, 1986, p. 37.
[7]  Cf. J. L. Borges, “Otro poema de los dones”.
[8]  Cf. W. Shakespeare, Macbeth, Act. V, 5.
[9]  Cf. J. L. Borges, “La esfera de Pascal”.
[10]  Cf. J. L. Borges, “La flor de Coleridge”, in: Obras Completas. Buenos Aires: Emecê, 1974, p. 641.
[11]  Cf. id. ibid.
[12] Cf. id. ibid.