sábado, 27 de abril de 2013



 





Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock

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       Miss Froy não corresponde minimamente ao tipo de heroína dos filmes de espionagem, ela não é nenhuma Mata Hari. É mais uma anti-heroína, uma pessoa comum, que serve o seu país num momento difícil. Ela não triunfa dos seus inimigos conspiradores da Axis (as potências principais do Eixo foram a Alemanha, Itália e Japão durante a Segunda Grande Guerra) nem pela juventude, nem pela beleza física, nem pelo uso de tecnologia avançada. Ela vence o Mal absoluto, que aqui se delineia nas personagens do grupo conspirador, pela sua humanidade, poder de comunicação e porque está do lado do Bem. Depois do caso Dreyfus em França, reinava na época uma espécie de pânico moral contra estrangeiros e espiões[1] – a personagem de Miss Froy de algum modo serve para humanizar a figura do espião e o aproximar do público. Quando ela se apresenta a Iris no comboio, diz: “Froy... rhymes with joy.”[2] As personagens reunidas à volta do Dr. Hartz e da conspiração, pelo contrário, agem mercenariamente (vemos o ilusionista Doppo a exigir mais dinheiro ao médico). O Dr. Hartz diz mesmo a Iris e Gilbert que tenciona matar Miss Froy durante uma operação que será mal sucedida, revelando-se um profissional de Medicina a fazer um uso radicalmente errado da sua vocação e profissão. Quanto a Iris e Gilbert, eles são o par romântico do filme mas, em termos da intriga, são heróis acidentais, detectives amadores por necessidade das circunstâncias. As personagens de Miss Froy e de todos os conspiradores agem sob disfarce, sob uma falsa identidade. Esta perturbação da identidade garante a modernidade das personagens e é um tema constante na obra de Hitchcock, sempre preocupado com a perda da memória e/ou identidade[3].

 

       O triângulo de personagens centrais do filme está ligado entre si numa história de solidariedade e entreajuda, que é simultaneamente uma história romântica de amor, uma aventura da qual Iris sairá modificada e rejeitará um casamento de fachada, sem amor, optando por ficar com Gilbert. A música é o elo que liga as personagens de Miss Froy e Gilbert: Miss Froy apresenta-se como professora de música, Gilbert é um jovem etno-musicólogo interessado em estudar a música e dança de Bandrika, e poderá por isso memorizar facilmente a canção de Miss Froy. A melodia que, no final, se revela como sendo a chave do filme, está presente logo no início do genérico, sublinhando sobretudo o título do filme e o nome do realizador. Reaparecerá numa longa cena que começa no restaurante do hotel, e se prolonga pela serenata que Miss Froy escuta atenta à janela do seu quarto, repetindo e parecendo tomar nota. A música de Levy estará ausente de toda a sequência do comboio, para apenas voltar a aparecer quando Miss Froy pede a Iris e Gilbert para transmitirem a mensagem codificada na canção ao Foreign Office em Londres. Na cena que já citámos na carruagem-restaurante com o Dr. Hartz, Gilbert trauteia por breves instantes as primeiras notas da canção, mas é como se fosse um comentário musical do realizador, já que Gilbert não conhecia ainda a melodia. Mas a música continua presente em toda a sequência do comboio, apesar de estas cenas apenas terem som ambiente: “But even as the film eschews conventional movie music, it absorbs us in musical jokes, games, stratagems, and atmospheres.”[4]

 

      A música continua a ser o elemento que liga tudo em The Lady Vanishes: “Like The 39 Steps, The Lady Vanishes is a giddy combination of love story, comedy, and spy suspenser, all connected by music”[5]. Tal como a personagem principal que desaparece, a música seria o elemento mais importante do filme. Quando reaparece contém o “MacGuffin”, e fará a transição para o final do filme: Iris e Gilbert estão juntos no Foreign Office para transmitir a mensagem de Miss Froy, quando para seu desespero Gilbert verifica que se esqueceu da canção reveladora – nesse momento ouve-se a melodia ao piano, a porta abre-se e as três personagens principais dão as mãos. A música é assim elemento de revelação e de reunião, bem como a principal força e instrumento do grupo que se opõe à conspiração. Opondo-se à conspiração, opõe-se também ao silêncio ligado ao silenciamento, secretismo e morte, ao esquecimento e ao caos, atributos ligados à conspiração. A música neste sentido é memória e ordem, tal como noutros filmes de Hitchcock do período britânico, nomeadamente em Young and Innocent e em The 39 Steps. Neste filme, a personagem de Mr. Memory, que actua durante um espectáculo de music-hall, permitirá repor a ordem e provar a inocência do herói, falsamente acusado; e é também durante a actuação de uma orquestra num salão de baile que se detecta o verdadeiro culpado de um crime de que o protagonista era erradamente acusado, em Young and Innocent. Nos dois casos a música é a pedra-de-toque, o meio que permitirá avaliar a inocência das personagens ou a sua culpabilidade. Esta preocupação com a memória está bem patente em alguns dos mais conhecidos filmes do realizador, Spellbound e Marnie, ambos casos de amnésias ou de perturbações da memória, e em Vertigo, história de uma fobia e de uma obsessão.

 

       O título do romance no qual o filme se baseia, The Wheel Spins, alude ao movimento das rodas do comboio. O comboio é um poderoso símbolo de liberdade e mobilidade por um lado, e de clausura e imobilismo pelo outro (a expressão “spin one’s wheels” significa desperdiçar tempo, ficar numa posição neutra, sem avançar nem recuar)[6]. Referimos já atrás neste nosso texto como Jack Sullivan faz remontar ao primeiro filme sonoro de Hitchcock, Blackmail, a imagem da “human psyche spinning its wheels, a central Hitchcockian concept”[7]. Esta imagem do círculo, do remoinho, ou da espiral significa a obsessão das paixões humanas, o tema central de Hitchcock, o seu traço melodramático, que encontrará a forma mais acabada em Vertigo (1958).

 

 Em The Lady Vanishes, o rodar da espiral das rodas do comboio está presente numa montagem que acompanha o primeiro desmaio de Iris ao entrar no comboio, dando o ponto de vista óptico dela: “The image blurs and dissolves into the superimposed images of a whirlpool and multiple shots of her friend waving goodbye that combine with images of a train conductor waving and the spinning wheels of the train, whose rhythmic sound accompanies the montage”[8]. Esta montagem aponta também para o poder hipnótico do comboio e das imagens do próprio filme, e do cinema em geral. Na cena em que Iris e Gilbert vasculham a carruagem-bagageira, encontram para além dos óculos de Miss Froy e de um cartaz do ilusionista Signor Doppo, uma caixa daquelas que os mágicos usam para fazer desaparecer e reaparecer pessoas. Gilbert diz então “In magic circles, we call it the disappearing cabinet, you get inside and vanish”. Os três objectos desta importante cena em termos simbólicos – os óculos, o cartaz e a caixa mágica do ilusionista – apontam para a arte do cinema e para o seu poder, e para este filme em especial, The Lady Vanishes. O realizador também é um ilusionista, que nos envolve no seu círculo mágico de imagens hipnóticas (o próprio projector de uma sala de cinema tem esses cilindros que fazem rodar as bobinas com a película e projectar o filme). Trata-se de uma reflexão sobre a arte do cineasta, do cinema, e o poder das imagens, como que alertando para o carácter ilusório do mundo do cinema. Mas enquanto que, por ex., em The Wizard of Oz (1940) a montagem durante a qual também Dorothy desmaia nos conduz a um mundo de ficção e de sonho, o do cinema por excelência, passando mesmo das imagens a preto e branco para o filme a cores, em The Lady Vanishes a visão de Iris permanece bem real, afirmando-se esta realidade no decurso da busca conjunta com Gilbert e no final.

 

       Poderemos, pois, interrogar as referências do filme ao tempo histórico. Bandrika (ou Bandrieka), o país ficcional onde a acção se desenrola durante a maior parte do filme, poderá ser uma variação de um nome jugoslavo, de um vale nas Montanhas Pirin, na Bósnia, o Vale de Banderica. Miss Froy diz que Bandrika é “One of Europe’s few undiscovered countries”. De facto, Hitchcock acabou por aceitar realizar esta adaptação do romance The Wheel Spins, depois de uma tentativa de rodar o filme na Jugoslávia ter falhado, porque os habitantes receavam que o filme desse uma visão negativa do país. Bandrika poderá ainda aludir ao perigo de uma nova Guerra Mundial que se desenhava na época, no imediato pré-Segunda Grande Guerra, pela ligação da ex-Jugoslávia e da Bósnia ao incidente que foi a causa próxima para o eclodir da Primeira Grande Guerra, o assassínio do Arquiduque Franz Ferdinand da Áustria, herdeiro do trono austro-húngaro, e de sua mulher Sophie Duquesa de Hohenberg, a 28 de Junho de 1914 em Sarajevo, por um grupo de conspiradores e assassinos bósnios. Nomes de outras estações de caminho-de-ferro que aparecem durante o filme são Zolnay, Dravka e Morsken – Zsolnay é uma localidade na Hungria, Dravka na Croácia, e Morsken uma localidade sueca, tanto quanto consigo verificar.

 

Vejamos finalmente quais são os sinais que apontam neste filme para o perigo do fascismo em ascensão na Europa da época. O grupo de conspiradores liderado pelo Dr. Hartz alude à Alemanha, embora a língua que falem os habitantes de Bandrika seja um vernáculo ficcional. Hitchcock consegue isto sobretudo através da representação da “Englishness” da época, no retrato, também ele muito crítico, de personagens britânicas. A freira que vigia Miss Froy acaba por trair o grupo de conspiradores, por solidariedade, ao saber que a senhora de idade é inglesa: “You didn’t tell me the old girl was English?”, pergunta ela, censurando o Dr. Hartz. O marido adúltero, um pacifista ingénuo, resolve sair do comboio empunhando uma bandeira branca e é imediatamente morto a tiro, mostrando a opinião de Hitchcock quanto às tentativas de “appeasement” da Inglaterra de então com a Alemanha. Last but not least, fica-nos o estranho sintoma no meio do discurso no vernáculo de Bandrika proferido pelo gerente do hotel, Boris, sobrecarregado de trabalho pela afluência de hóspedes na sequência da avalanche[9]: “Oy vei zmir”, uma expressão em yiddish (a língua hebraica falada pelos judeus na Europa Central e de Leste, uma mistura de alemão com hebreu, línguas eslavas e outras línguas). Esta expressão significa “woe is me”, mostrando temor ou ansiedade em relação ao que aconteceu ou está para acontecer, e pode ser interpretada no contexto histórico do filme como sério aviso em relação ao Mal absoluto que se avizinhava com a Segunda Grande Guerra e o Holocausto.

 

       Embora alguns dos mais emblemáticos filmes de Hitchcock estejam ligados a uma simbologia de apagamento da figura feminina (Rebecca, de 1940, será marcado pela ausência radical de uma mulher[10]), The Lady Vanishes parte da tradição bem concreta dos espectáculos de magia de finais do séc. XIX, que consistia em fazer desaparecer senhoras. Esta temática foi tratada por Lucy Fischer no artigo de 1979 “The Lady Vanishes: Women, Magic, and the Movies” da perspectiva da teoria feminista, salientando a predilecção do cinema desde a sua origem por fazer desaparecer figuras femininas[11]. O pequeno filme de George Meliès intitulado Escamotage d’une Dame chez Robert-Houdin, em inglês The Vanishing Lady, de 1896, é um dos mais antigos exemplos de um truque cinematográfico que possibilitava a representação em filme desse número de ilusionismo. O próprio Meliès teria sido ilusionista antes de fazer filmes e teria comprado o Teatro Robert-Houdin em 1888[12]. Lucy Fischer acentua a violência simbólica destes números de ilusionismo e sua continuação na convenção cinematográfica, e relaciona-os com a definição de mulher de Simone de Beauvoir em Le Deuxième Sexe como “o outro” e como mistério para o homem[13]. No ensaio “Violent Vanishings: Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”[14], Karen Beckman faz remontar a origem desta tradição no cinema aos números de ilusionistas vitorianos, intitulados “Vanishing Lady Trick” ou “Vanishing Woman Act” como executados por Charles Bertram, o ilusionista preferido da Rainha Victoria, pela primeira vez em Agosto de 1886. Irá comparar The Lady Vanishes com um filme do mesmo ano do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte Spuren (The Footprints Blown Away), uma reescrita da lenda urbana do desaparecimento misterioso de uma senhora durante a Exposição Mundial de 1889 em Paris, ao que parece baseada numa história verdadeira, com a qual o filme de Hitchcock também está relacionado[15]. Beckman interrogar-se-á sobre o significado político do desaparecimento e como o desaparecimento de mulheres poderá estar ligado ao apagamento do “outro” no momento histórico que antecede a Segunda Grande Guerra.

 

       Os romances e filmes de espionagem deste período da História europeia entre as duas Grandes Guerras adicionam uma nova figura às já tradicionais de crime contra o indivíduo e a propriedade, o crime contra Estados soberanos[16]. Em The 39 Steps, o protagonista faz a defesa de um mundo melhor no discurso improvisado durante um comício político em que se vê envolvido durante a fuga, e no qual faz equivaler um mundo melhor a um mundo sem conspirações:

 

I ask your candidate and all those who love their fellow men to make this world a happier place to live in. A world where no nation plots against nation, where no neighbor plots against neighbor, where there is no persecution or hunting down, where everybody gets a square deal and a sporting chance, and where people try to help and not to hinder. A world from which suspicion and cruelty and fear have been forever banished.



[1] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 432, e MILLER, Toby, “39 Steps to ‘The Borders of the Possible’: Alfred Hitchcock, Amateur Observer and the New Cultural History”, in: Alfred Hitchcock. Centenary Essays, ed. Richard Allen e S. Ishii-Gonzalès, London: British Film Institute, 1999,  p. 321 ss.
[2] Significativamente a lista de alcunhas de membros dos serviços secretos britânicos da época denota essa “joie de  vivre”, como refere MILLER, Toby (1999, p. 323).
[3] Cf. id. ibid., p. 321.
[4] Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 52.
[5] Cf. id. ibid.
[6] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 444: “The train in both novel and film is a paradoxical object, a source of both prison and liberty, incarceration and flight.”
[7] Cf. p. 3 do presente texto.
[8] Cf. MCGILLIGAN, Patrick, op. cit., p. 173.
[9] Boris fala no telefone interno do hotel e pede aos empregados que levem mais uma garrafa de champanhe ao quarto de Miss Henderson (Iris), que festeja com as amigas a sua despedida de solteira: “Bandrika may have a dictator but tonight we’re painting it red.”
[10] Este apagamento da figura feminina acaba por ter o efeito contrário, e o filme é dominado pela presença/ausência obsessiva e fantasmática de Rebecca, que nunca chegamos a ver.
[11]  Vd. FISCHER, Lucy, “The Lady Vanishes: Women, Magic, and the Movies”, in: Film Quaterly Vol. 33, No. 1 (Autumn 1979), p. 30-40.
[12] Vd. id. ibid., p. 30.
[13] Lucy Fischer resume assim o seu ensaio: “In summary, then, the rhetoric of magic – in its theatrical and cinematic varieties – constitutes a complex drama of male-female relations. In the guise of the magician figure, the male enacts a series of symbolic rituals in which he expresses numerous often-contradictory attitudes toward woman: his desire to exert power over her, to employ her as decorative object, to cast her as a sexual fantasy, to exorcize her imagined powers of death, and to appropriate her real powers of procreation.”, cf. op. cit., p. 37.
[14]Vd. BECKMAN, Karen, Violent Vanishings: Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”, in: Camera obscura, September 13, 1996, p. 77-103.
[15] Vd. nota 27 do presente texto.
[16] Vd. MANDEL, Ernest, Delightful Murder: A Social History of the Crime Story. London: Pluto, 1984.

(a continuar)



Ana Maria Delgado
 
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

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Imagens:


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Para ver o filme: aqui

Georges Méliès, Escamotage d'une dame chez Robert Houdin 1896: aqui