Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock
(...)
A história é esta, adaptada do romance
de Ethel Lina White The Wheel Spins [1]:
nos primeiros trinta minutos do filme assistimos a várias cenas num hotel de um
país ficcional, Bandrika, algures na Europa central, no imediato pré-Segunda
Grande Guerra, onde se fala um vernáculo inventado por Hitchcock. Um grupo de
passageiros britânicos em curso numa viagem de comboio transcontinental ficou
retido devido a uma avalanche que bloqueou a linha férrea. O hotel da pequena
localidade está superlotado, não há quartos nem comida suficiente para todos os
hóspedes, e assistimos a várias cenas em tom de comédia envolvendo personagens
que se vão distinguir em três grupos. As personagens centrais são uma senhora
de idade, Miss Froy (Dame May Whitty), uma jovem que regressa a Londres para se
casar, Iris Henderson (Margaret Lockwood), e um jovem etno-musicólogo que
estuda a música e danças da região, Gilbert (Michael Redgrave, na sua estreia no cinema). Miss Froy trava
conhecimento com Iris ainda no hotel e como Iris foi atingida por um vaso de
flores na cabeça antes de embarcar no comboio, Miss Froy diz às duas amigas da
jovem que ficam na estação, “I’ll look after her.” No comboio, e após tomarem
chá na carruagem-restaurante e fazerem as apresentações formais (Miss Froy
escreve o nome na janela porque o apito do comboio impede Iris de perceber o
que ela diz), Iris adormece ou perde consciência pela segunda vez (a primeira,
logo que entra no comboio) por causa da pancada na cabeça e, quando acorda,
Miss Froy tinha desaparecido. A única pessoa no comboio que ajuda Iris a
procurar a sua companheira de viagem é Gilbert. O segundo grupo é constituído
por personagens à volta do Dr. Hartz, um neuro-cirurgião que se revelará como
chefe do grupo de conspiradores, e seus mercenários a viajar no comboio. Estas
personagens quase não têm desenvolvimento psicológico, todas são caricaturadas
e grotescas. O terceiro grupo de personagens retrata a classe-média britânica
da época, mostrando as contradições de género, classe e sexualidade[2] da
sociedade inglesa de então. Ainda no hotel, Miss Froy escuta à noite, à janela,
uma serenata, e vemo-la repetir, pensativa, a melodia. O que ela não vê é que o
músico foi estrangulado (apenas vemos as sombras das mãos do estrangulador).
Depois de variadas peripécias no comboio, Iris e Gilbert descobrem que Miss
Froy, que se apresentara como professora de música e preceptora, foi
raptada pelo grupo do Dr. Hartz e corre perigo de vida. Miss Froy acaba por
conseguir fugir do comboio com a ajuda do jovem par, não sem antes lhes revelar
que não é quem parece e pedir-lhes para levarem uma mensagem codificada numa
melodia – a mesma da serenata – ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em
Londres. Os minutos finais do filme mostram-nos a Victoria Station, com uma
muito breve “cameo-appearance” de
Hitchcock, de fato preto, chapéu na mão e a fumar um cigarro, e Iris e Gilbert
a dirigirem-se para o Foreign Office. Gilbert, na excitação de ter conseguido
ficar com Iris, que desistiu de um casamento de fachada e por interesse,
esqueceu-se da melodia e só consegue trautear a Marcha Nupcial. Mas de uma
porta fechada ecoa ao piano a melodia reveladora, e ao entrarem encontram Miss
Froy ao piano e juntam as mãos no reencontro.
A primeira vez que Iris e Gilbert
suspeitam de uma conspiração acontece na cena na qual Iris e Gilbert procuram
Miss Froy no vagão de transporte de bagagem. Gilbert não está a princípio
convencido da existência real de Miss Froy. Chega mesmo a dizer a Iris, na carruagem-restaurante:
“You’re always seeing things!”, uma descrição que se adapta ao significativo
nome de uma das heroínas deste filme e a identifica como foco narrativo
principal, já que o espectador segue a perspectiva de Iris, que incorpora a
visão do próprio realizador. Mas a partir do momento em que vê, por um feliz
acaso e apenas por fugidios segundos, o rótulo da embalagem de chá que Iris lhe
tinha dito ter sido dada por Miss Froy ao empregado de mesa para preparar o chá
(visão que é o contraponto do nome que Miss Froy escrevera na janela do comboio
e que desaparecera), Gilbert começa a acreditar na versão de Iris e iniciam uma
busca conjunta à procura de Miss Froy[3].
Essa busca vai revelar-se proveitosa: descobrem que o italiano que viaja no
mesmo compartimento é um ilusionista, e encontram um eloquente cartaz do
espectáculo do Grande Doppo, mágico e ilusionista, intitulado “The Vanishing
Lady”. Este pormenor, como tudo em Hitchcock, é igualmente revelador, e uma
espécie de mise-en-abyme do filme The Lady Vanishes, que aliás assim se
chama como homenagem do cineasta a um conto de Alexander Woollcott, “The
Vanishing Lady”, do seu livro While Rome
Burns (1934)[4].
Como que a confirmar estes dados novos, Iris e Gilbert encontram em seguida os
óculos de Miss Froy. Na verdade, o terceiro grupo de viajantes, os
indiferentes, mentem por razões meramente egoístas dizendo não ter visto Miss
Froy com Iris: o casal adúltero não quer complicações, e o par homossexual não
quer atrasos para chegar a tempo a um jogo de cricket. Os dotes detectivescos de Gilbert e Iris combinam-se
complementarmente, a racionalidade e dedução masculinas e a intuição feminina[5],
num delicioso diálogo:
Iris: You were about to tell me about
your theory.
Gilbert: Oh, my theory. Well (pondo o
boné à Sherlock Holmes) my theory, my dear Watson, is that we are in very deep
waters indeed. (Iris estende-lhe o cachimbo) (…) In the first place a
little old lady disappears. Everyone that saw her promptly insist that she never was there in the first
place. Right?
Iris: Right.
Gilbert: We know
that she was. Therefore
they did see her. Therefore they are deliberately lying. But why?
Iris: I don’t know, I’m only Watson!
É Gilbert quem deduz que a
paciente do Dr. Hartz cujo rosto está envolto em ligaduras deve ser Miss Froy;
e Iris quem desconfia da freira (interpretada por Catherine Lacy na sua estreia
em cinema) que está a tomar conta da doente, por usar sapatos de salto alto.
Iris e Gilbert contam as suas descobertas ao Dr. Hartz, que se tem fingido
muito solícito com eles:
Gilbert: How do you know it is not
Miss Froy?
Iris: We believe there has been a
substitution, Doctor.
Dr. Hartz: You really mean to say
that you think that someone has -
Gilbert:
(trauteia as primeiras notas da melodia reveladora) (...)
Iris: It’s a conspiracy, that’s what
it is! All these people on the train say they haven’t seen Miss Froy, but they
have.
(…)
(O Dr. Hartz faz
um brinde aos dois, tentando que Iris acabe a sua bebida que tem supostamente
um poderoso sedativo)
Dr. Hartz: Go ahead! And may our
enemies, if they exist, be unconscious of our purpose!
(…)
(Já na carruagem
com os dois)
Dr. Hartz: Yes, the patient is Miss
Froy. She will be taken off the train at Morsken in about three minutes. She
will be removed to the hospital there and operated. Unfortunately the operation
will not be successful. Oh, I should perhaps explain – the operation will be performed
by me. (Aponta um revólver a Gilbert) You see, I am in this conspiracy. You are
a very alert young couple (…)
Mas de que conspiração se trata, afinal,
e porquê a perseguição a Miss Froy? Só quase no final do filme se revela a sua identidade.
No hotel, ela apresenta-se como professora de música e preceptora, salientando de
modo idealizado o carácter musical dos habitantes de Bandrika, em conversa com
o casal gay, muito indisposto pela
falta de comida no restaurante do hotel:
Miss Froy: I’m a governess and a
music teacher, you know. (…) In the six years that I lived here I’ve grown to
love the country. (…) Everyone sings here. The people are just like happy
children, with laughter on their lips and music in their hearts.
Charters: It’s not reflected in their
politics, you know.
Miss Froy: I never think you should
judge a country by its politics.
Mas Miss Froy não é quem aparenta ser. Durante um tiroteio quase no final
do filme ela chama à parte Iris e Gilbert e entrega-lhes uma mensagem destinada
ao Foreign Office, no caso de não conseguir sobreviver, já que vai arriscar
fugir do comboio:
Miss Froy: I just wanted to tell you
that I must be getting along now. (…) Listen carefully: in case I’m unlucky and
you get through, I want you to take back a message to a Mr. Callendar at the
Foreign Office in White Hall.
Iris: Then you are a spy!
Miss Froy: I always think that’s such
a grim word.
Gilbert: What’s the message?
Miss Froy: It’s a tune. It contains -
in code, of course, the vital clause of a secret pact between two European
countries. I want you to memorize it. The first part of it goes like
this (trauteia).
“A cláusula vital de um pacto secreto entre dois países europeus”, contida
em código numa canção, é o “MacGuffin” do filme, e a única revelação que temos
sobre o mistério que envolve a personagem desaparecida. Tudo o resto é uma
lacuna que o espectador tem de preencher. Miss Froy é a figura principal do
filme, uma heroína diferente de Iris: ela pertence ao grupo de heroínas de
Hitchcock que são auto-suficientes e se assumem como agentes secretas[6]. A
relação que estabelece com Iris como figura de mãe – “I’ll look after her”, diz
de Iris ao entrar no comboio, quase se inverte durante toda a sequência do
comboio, em que é Iris quem cuida de Miss Froy. Mas o inverso não deixa de ser
verdade, enquanto o seu trabalho secreto visa cuidar de todos. Ela é a senhora
que desaparece, mas há algo de ambíguo no título do filme, pois é Iris que
desmaia ao entrar no comboio, o primeiro de cinco desmaios durante a viagem. A
vida de Miss Froy depende da recordação que Iris mantém dela, e por isso o seu desaparecimento
ou reaparecimento depende de a sua jovem companheira de viagem ser capaz de
provar a veracidade da sua versão/visão/recordação. Este poderá talvez ser interpretado como o traço mais moderno e
contemporâneo do filme: “It’s tempting to seek topicality in the appeasement
theme, the espionage plot and the film’s meditation on Englishness, but none of
these elements resonate much today. What does is Hitchcock’s manipulation of
Iris’ consciousness and, through the use of the train as a vehicle for
dreaming, the idea that she, not Miss Froy (the literal disappearee), is the
lady who vanishes.”[7]
(a continuar)
[1]
WHITE, Ethel Lina, The Wheel Spins. London : Collins, 31937
(1ª edição 1936).
[2]
Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit.,
p. 442.
[3] Vd. a
este propósito ALLEN, Richard, Hitchcock’s
Romantic Irony. New York/Chichester: Columbia University
Press, 2007, p. 84 ss., “The Joint Quest Narrative”.
[4] O próprio Hitchcock narra a Truffaut esta
lenda urbana de uma conspiração internacional na Exposição Mundial de 1889 em
Paris: duas inglesas, mãe e filha, em viagem de regresso da Índia para o
Canadá, param em Paris para ver a Exposição. A mãe adoece, e o médico pede à
jovem que vá buscar um medicamento. Quando volta ao hotel, a mãe tinha desaparecido.
No final vem-se a descobrir que a mãe tinha tido peste. Hitchcock voltaria a
adaptar esta lenda em 1955, num episódio de “Alfred Hitchcock Presents”, “Into
Thin Air”, com Patricia Hitchcock no papel de filha. Vd. Truffaut/Hitchcock. Ed. Robert Fischer. München Zürich: Diana Verlag, 1983, p. 98 ss. Vd. também MCGILLIGAN, Patrick, Alfred Hitchcock: a life in darkness and
light. New York : Harper Collins
Publishers, 2003, p. 207: “Changing the film’s title to The Lady Vanishes was a nod to Woollcott, one of the writers
Hitchcock devoutly read in his favorite U.S. magazine, the New Yorker.”
[5] Cf. ALLEN, Richard, op. cit., p. 82 ss.
[6] Cf. ALLEN, Richard, op. cit., p. 82 e p. 86: “women in Hitchcock’s English thrillers
are defined more by their agency than by
their sexual identity”, ao contrário do que sucede no período americano, dada a
interpretação de feminilidade como maternidade ou como sexualidade, ditada pelo
sistema de estrelato americano.
[7] Vd.
FULLER, Graham, “Mystery Train”, in: Sight
and Sound, January 2008, p. 37.
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012
Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
Ler o texto completo aqui
Imagens:
Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui
Para ver o filme: aqui