domingo, 24 de abril de 2011







Matisse em Baltimore II - The Matisse Stories de A. S. Byatt


Na loja do Museu de Arte de Baltimore encontro a minha trouvaille, ou vice-versa: trata-se do livro de contos The Matisse Stories, de A. S. Byatt, conhecida como autora do romance Possession, vencedor do Booker Prize em 1990 e adaptado ao cinema em 2002. Escritas em 1993, as Matisse Stories são uma homenagem de A. S. Byatt a Matisse, o seu pintor preferido. Na capa, o enigmático quadro do pintor francês Le silence habité des maisons (1947). Os três contos, "Medusa's Ankle", "Artwork" e "The Chinese Lobster", dialogam com três desenhos de Matisse, respectivamente La chevelure (1932), L'artiste et le modèle reflétés dans le miroir (1937), Nymphe et faune (1932), e narram situações do quotidiano - uma professora universitária que vai ao cabeleireiro, um casal de artistas que contrata uma empregada que gosta de fazer malha, e dois professores universitários que discutem o futuro de uma aluna enquanto almoçam num restaurante chinês. Nestes quadros desenham-se tensões que virão a revelar situações insólitas e facetas inesperadas das personagens, desconhecidas até de si mesmas. Os dois primeiros contos partem da descrição de quadros de Matisse, o terceiro discute os próprios fundamentos da arte do pintor.

"Medusa's Ankle" abre com uma descrição do quadro Pink Nude (1935) de Matisse, no texto designado como "Rosy Nude". Susannah, a professora de Linguística que confia ao cabeleireiro, Lucian, a "desintegração" (Byatt, 7) da sua cabeleira de senhora de meia-idade, não só tem os tornozelos inchados, mas também o poder da Medusa, contido já em potência no monumental nu pintado por Matisse no final de uma longa sequência de variantes. Na senda do ensaio de Hélène Cixous sobre o riso de Medusa, Byatt transforma a personagem de Susannah, no final do conto, numa figura afirmativa, positiva e - poderosa (Kelly, 56).

Mais estrutural ainda é a relação do quadro Le silence habité des maisons com o conto "Artwork". O misterioso quadro de Matisse é descrito pela voz narrativa que nos introduz no espaço narrativo do conto: um interior que retrata uma mãe e filho debruçados sobre um livro, poisado sobre uma mesa onde há também uma jarra de flores. O insólito do quadro está no facto de as figuras não terem traços fisionómicos, e o livro desmesuradamente grande estar em branco, sem quaisquer caracteres impressos. Mais, todo o interior tem um fundo negro, no qual a custo se distingue o esboço a giz de um círculo em cima de uma haste - um totem? - por cima de uns tijolos. A janela, que ocupa o lado superior direito do quadro, abre para uma paisagem de folhagem e sol, que contrasta com o interior sombrio e estranho e apenas tem afinidade com a jarra de flores e o livro aberto. Interrogamo-nos com a voz que narra: "Quem é o totem que está de vigia por debaixo do tecto?"

O texto continua a descrever o silêncio da morada do casal de artistas, habitado por sons como o da máquina de lavar roupa e da TV ligada sem ninguém estar a ver. Nesta casa, numa subtil dança de espelhos entre as personagens, vai estar em jogo a criatividade de cada uma delas e no seu conjunto, e vai perspectivar-se uma discussão implícita sobre o conceito de "arte" na sociedade contemporânea (vd. gravura que antecede o conto, L'artiste et le modèle reflétés dans le miroir). Quem é o modelo de quem neste conto? Quem inspira quem, e quem é que estabelece novos padrões artísticos, e baseando-se em que valores? A dedicatória do livro sugere - na emoção: "For Peter, who taught me to look at things slowly - with love." Ver, complementado com sentir. Uma lição que não é de agora e me faz recordar, entre outros textos, a novela Tonio Kröger de Thomas Mann. Olhar as coisas para realmente as ver, significa para A. S. Byatt olhar com tempo, com vagar - na dedicatória parece equivaler a - com emoção. O conceito de obra / trabalho de arte como algo produzido em limites rigorosamente individuais aparece como que desfocado, desestabilizado neste conto, muito apropriadamente intitulado "Artwork".

"Artwork" usa-se em três acepções: de modo mais geral, "um objecto ou objectos produzidos por artistas"; mais especificamente, "desenhos, fotografias ou ilustrações incluídas num livro ou numa revista"; finalmente, na acepção que apenas encontrei num dos dicionários consultados, "trabalho de artes gráficas ou plásticas, especialmente pequenos objectos decorativos ou artísticos feitos à mão".



O conto de A. S. Byatt inclui descrições do "artwork" de três personagens: Robin, o marido, o artista mais tradicional, trabalha no andar superior da casa, transformado num estúdio de arte, com o melhor espaço e luz. Nos anos 1960, como o próprio texto diz, Robin era um neo-realista avant la lettre, numa época em que quase toda a pintura era abstracta. Pintava superfícies e objectos em cores neutras, mas nunca nada que tivesse vida. O texto resume a apreciação da arte de Robin: a dois passos do kitsch ("just this side of kitsch"). Debbie, sua mulher, trabalha como editora de design de uma revista significativamente - e em tom de provocação que dá que pensar - chamada A Woman's Place. É ela quem mantém a casa com um bom salário, permitindo a Robin pintar a tempo inteiro. Debbie teve, no entanto, de abandonar a sua própria arte, a xilogravura ("wood engravings") e em silêncio nutre sentimentos contraditórios pelo marido, sobretudo por ele nunca mencionar a arte dela, que assim vai ficando por realizar. Robin é egocêntrico, ocupado só consigo mesmo, sem interesse pelas questões relativas ao governo da casa ou à educação dos filhos (cf. Kelly, 57-59).



(a continuar)



Bibliografia:



  • Byatt, A. S., The Matisse Stories. NY: Vintage Books, 1996 (no texto como MS, traduções minhas)

  • Flam, Jack, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001

  • Gowing, Lawrence, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979

  • Kelly, K. C., A. S. Byatt. NY: Twayne Publishers, 1996 (no texto como Kelly)

Texto publicado na PNETLiteratura a 22 de Junho de 2009