domingo, 10 de abril de 2011

Matisse em Baltimore I - A Cone Collection









Sempre associei o texto de Herberto Helder sobre o pintor que tinha um aquário e lá dentro um peixe vermelho - com Matisse. O texto é de Retrato em movimento, de 1967, e conta a história do pintor e do peixe vermelho que se transforma em peixe amarelo, depois de passar por mutações negras, ensinando a lição da metamorfose. É que Matisse pintou variações do motivo do peixe vermelho (poisson d'or) em datas diferentes, de 1909 até 1921. No quadro Zorah sur la terrasse, de 1912, o aquário com peixes vermelhos parece estar fora do contexto mas, por ser um motivo recorrente na obra de Matisse e pela sua colocação no canto inferior direito do quadro, funciona como assinatura do pintor.


Hoje é da relação de Matisse com a literatura que gostaria de vos falar.


Desde o Romantismo que as artes estão interligadas e os artistas se inspiram e dialogam entre si, independentemente da forma de arte que praticam. O autor alemão E. T. A. Hoffmann, romântico tardio, publicou o seu primeiro livro em 1815, Peças de Fantasia à maneira de Callot, que logo no título mostra a influência e a ligação entre a música e a pintura. Na mesma época, o compositor Robert Schumann dialoga, por sua vez, com Hoffmann e Jean-Paul, quando compõe as peças Carnaval, op. 9 (1834) e Kreisleriana, op. 16 (1838). Os exemplos multiplicam-se, e a influência recíproca das artes entre si nunca mais deixou de se acentuar desde então. A intertextualidade é uma das características mais importantes da arte contemporânea - basta pensar nas adaptações cinematográficas de obras literárias, mas também em tudo aquilo em que o cinema influenciou a arte narrativa. No campo teórico, acentuou-se a importância da perspectiva comparatista, inter e transdisciplinar e intertextual.


Que me lembre, Matisse ilustrou as Poésies de Stéphane Mallarmé e as Cartas Portuguesas e publicou Jazz, com texto e gravuras suas (Jazz e Lettres Portugaises de Mariana Alcoforado foram tema de exposições na Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva em Lisboa em 1996 e 2004, respectivamente). Louis Aragon escreveu Henri Matisse, roman (1971), fruto do diálogo com Matisse durante 27 anos, de 1941 a 1968. Toda a obra de Matisse parece, além disso, ter partido, como o título do próprio quadro de 1904 indica, Luxe, calme et volupté, de versos do poema de Baudelaire "Invitation au voyage". Esse convite ao imaginário e ao sonho virá a transmitir na obra de Matisse toda a beleza da sua visão interior, muito longe, no entanto, do instinto de morte ligado á beleza que se encontra em Baudelaire. Na obra de Matisse é antes, tal como pode ler-se no catálogo da exposição permanente do Museu de Arte de Baltimore, a vida que se afirma em cores vibrantes, que "cantam", e padrões cheios de ritmo, que "dançam".

E a caminho de Baltimore, mais poderá surgir - vou pensando eu, dedicada seguidora daquilo a que os franceses chamam trouvailles, coisas que há muito procurávamos e que encontramos de repente, quando já não estávamos à espera, como por acaso. É nisto que vou pensando enquanto seguimos as indicações da auto-estrada 95, que liga a Flórida ao Canadá e nos leva de Washington, D.C., até Baltimore, em Maryland. O nosso destino é o Museu de Arte de Baltimore, onde desde 1957 existe a preciosa e prestigiada Cone Collection, a maior e mais importante colecção de obras de Matisse do mundo. A colecção é a jóia da coroa do BMA e inclui 500 obras de Matisse, entre as quais 42 óleos, 18 esculturas, 36 desenhos, 155 gravuras, 7 livros ilustrados, bem como 250 desenhos e gravuras do primeiro livro ilustrado por Matisse, Poésies de Stéphane Mallarmé. Algumas obras-primas da colecção são Mont Sainte-Victoire Seen from the Bibémus Quarry (c. 1897) de Cézanne, Vahine no te vi (Woman of the Mango, 1892) de Gauguin, Mother and Child (1922) de Picasso, e de Matisse os dois nus de 1907, Blue Nude, e de 1935, Large Reclining Nude, também conhecido como Pink Nude.

As coleccionadoras foram duas irmãs de Baltimore, Claribel e Etta Cone. Claribel (1864-1929), a mais velha, era médica e patologista, e Etta (1870-1949) era música amadora e tomava conta da casa. Claribel e Etta possuíam um rendimento anual generoso, proveniente da herança e dos bem-sucedidos negócios Cone, na área dos têxteis, que permitia às duas irmãs viajar e coleccionar obras de arte. Em finais dos anos 1890 travaram amizade com Gertrude Stein, que frequentava então a escola médica em Baltimore, na Universidade de Johns Hopkins. A família Stein encorajou as irmãs Cone a aprender mais sobre arte e estética, e apresentou em Paris Etta a Picasso em 1905, e a Matisse em 1906. Claribel e Etta mostraram uma intuição artística invulgar ao adquirir obras de rara qualidade de artistas inovadores, muito antes de serem reconhecidos e consagrados.

As duas irmãs apoiaram Matisse ao longo de mais de 40 anos. Desde a morte de Claribel em 1929, Etta aconselhava-se com o próprio Matisse para continuar a sua colecção de arte, e adquiriu óleos, esculturas, desenhos, gravuras e livros ilustrados, incluindo Interior with Dog (1934), Purple Rob with Anemones (1937), The Yellow Dress (1950). Como coleccionadora criteriosa que era, Etta quis dar um contexto histórico à sua colecção e comprou também obras de predecessores de Matisse no séc. XIX - Delacroix, Ingres, Corot, Degas, Cézanne, Toulouse-Lautrec, van Gogh e Gauguin. No testamento de Claribel estava estipulado que a colecção deveria ir para o Museu de Arte de Baltimore, se "o espírito de apreço pela arte moderna em Baltimore progredisse". Felizmente assim aconteceu, e a esplêndida Colecção Cone aí está para quem a quiser ver, atraindo a Baltimore visitantes interessados em ver a exuberante arte de Matisse.

(a continuar)

Bibliografia:



  • Louis Aragon, Henri Matisse - a novel. NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1971

  • Jack Flam, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001

  • Lawrence Gowing, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979

  • John Jacobus, Henri Matisse. NY: Abrams, 1973

Texto publicado na PNETLiteratura a 11 de Junho de 2009


Imagens: blogs.princeton.edu; christies.com; destination360.com;outandaboutnewspaper.com