sexta-feira, 1 de abril de 2011

Lendo poesia - "um dizer ainda puro", de Vasco Gato



As últimas palavras do poema de Vasco Gato "um dizer ainda puro" dão o título ao poema, fechando-o, arredondando-o em tom coloquial, sem maiúsculas. O início de cada uma das três estrofes - "imagino", "dizes" e "diz-me" - continua esse tom conversacional, acentuando o intimismo e quase sussurro das palavras e versos.


A primeira estrofe do poema introduz a imagética que irá ser desenvolvida: de uma situação caracterizada pela renúncia e frustração - "poesia da nossa boca adiada", "soterrou", "cinzentos abandonamos a flor" - o eu lírico imagina que, num futuro próximo e no quotidiano ("sol a sol") "uma nova língua", uma nova forma de expressão recuperará o que ficou sem chama e se deixou murchar. Toda esta imagética é de origem bíblica, embora possa encontrar-se também em relatos de criação do mundo de várias religiões e culturas. O ponto alto da primeira estrofe, contraponto das imagens negativas já citadas, é "um céu de espuma", imagem totalizante típica dos relatos de origem do mundo, sempre relacionados com o elemento água.

A segunda estrofe introduz mais claramente o elemento dramático, o interlocutor, que não é o leitor, mas sim o segundo elemento da relação de que o poema nos fala. A componente da presença física da primeira estrofe - "nossa boca adiada", "para lá da mão possível" - continua com "os teus dedos" e "nus". O tema principal é agora o tempo, contrastando o passado incaracterístico - "séculos sem rosto", "tempo que ardeu sem luz" - com um presente no qual o silêncio, que equivale ao "céu de espuma" da estrofe anterior, apaga o barulho e permite o regresso à inocência perdida. Os vários finais desta estrofe ecoam fortemente o "Génesis", o tempo da inocência antes da queda em que a nudez não provocava vergonha e o desejo não era pecado ("em nós acende o lume das árvores de fruto").


Continuando o imperativo "põe" e "cria comigo", o eu lírico pede, na última estrofe, à companheira que lhe diga que há ainda inocência no mundo, permitindo "um dizer ainda puro", garantia única do que possa vir a ser escrito - "versos por escrever". Esta novidade não se situa, a rigor, no mundo, ela como que sobeja dele, está a mais e pertence a outra esfera, a esfera do poema e da relação, que deste modo se reconhece e deseja.


Não muito longo e cheio de musicalidade, o poema de Vasco Gato podia ser uma canção. A criação de atmosfera, disposição íntima (Stimmung) consegue-se através da imagética, impregnando de subjectividade e emoção a objectualidade, processo típico da lírica. A musicalidade não vem aqui do uso de rima nem de artifícios formais ao nível sonoro, mas da criação de uma atmosfera de grande intimismo e comunicação quase sem palavras, a tender para o silêncio, em que poderia dizer-se, quase paradoxalmente, que as palavras cessam mas o poema nasce.


Esse é o tema de "um dizer ainda puro": a possibilidade e condições da criação do poema, que nasce do silêncio, que é inocência, é luz (com toda a sua simbologia como criação). A interrogação da possível novidade de "um dizer ainda puro" desenrola-se como encontro, que passa pela materialidade dos corpos e é ao mesmo tempo relação, comunicação conseguida, e poema que assim se faz. O sentimento é realmente misto, a um tempo de realização, melancolia e nostalgia, porque o poema se faz no presente usando o futuro ("sobre nós virá") e reformulando o passado ("tempo que ardeu sem luz"). Que se trata de uma dupla realização, interrelacional e lírica, demonstra-se no próprio desenrolar conversacional do poema, a cujo "fazer" assistimos, lendo. A nostalgia diz aqui respeito à inocência, enfim à infância (como no belo filme sobre Marin Marais, Tous les matins du monde, de Alain Corneau, 1991, segundo o romance de Pascal Quignard), e não como no modernismo a um desejo da palavra perfeita, de cratilismo da linguagem, em que significante e significado pudessem coincidir e fossem capazes de criar mundo. Não é de criar mundo que aqui se trata, mas sim de algo que decorre da interrelação humana, que "sobra do mundo" e é poema, sendo essa novidade arcaica conseguida como "nova língua" e realizada como "um dizer ainda puro". O "regresso ao presente" é duplo, regressa-se do futuro ("sobre nós virá") e do passado ("passemos os séculos sem rosto"). O poema é presença, imanência, relação humana e encontro.

Penso que Martin Buber teria gostado muito, mas cada leitura resulta da intersecção do mundo do texto com o mundo do leitor...


"um dizer ainda puro" in: Mover de Mão, 2000


Fotografia de Vasco Rato in:


http://www.quintasdeleitura.blogspot.com/



O meu texto sobre "um dizer ainda puro" data de 2005