sábado, 15 de outubro de 2011



Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto*


       Nas suas obras The Anxiety of Influence [1] e A Map of Misreading[2], Harold Bloom propõe a categoria central de “misreading” – “ler mal” – para a compreensão da história da poesia, que não pode, a seu ver, distinguir-se da influência poética, “uma vez que os poetas fortes fazem essa história lendo-se mal uns aos outros” (p. 5). “Ler mal” aparece, na perspectiva de Bloom, no sentido positivo de “mal-entendido produtivo”. Poderia traçar-se a história do sugestivo termo proposto por Bloom: de facto, vários outros críticos usam expressões semelhantes para denotar leitura produtiva. Assim, Robert Escarpit fala de “’traição criativa’ como chave da literatura”[3] e, referindo-se a Julia Kristeva e ao seu conceito de entropia do discurso literário, toma a “predisposição da obra à traição” como um critério da sua especificidade literária[4]. As diferentes interpretações não significam, de igual modo, na perspectiva de Roland Barthes, uma tendência dos leitores para ‘errar’, mas antes uma “disposição da obra literária para a abertura”[5]. Umberto Eco também desenvolveu no seu já famoso livro Opera aperta[6] as noções de “obra aberta” e de “obra em movimento”. Para ele, a liberdade do texto – a sua abertura – deveria ser igual à liberdade do leitor. Concebendo a forma como um campo de possibilidades, Eco também atribui ao texto a razão das diferentes leituras, através da sua intenção de comunicar mais do que uma mensagem inequívoca.
       A noção de “ler mal” como leitura produtiva parece, à primeira vista, ser o contrário do conceito clássico de “ler mal” tal como é desenvolvido na obra mais importante de Roman Ingarden[7]. Considerando, no entanto, os dois conceitos de “ler mal” mais de perto, chega-se a outra conclusão, pois definir a qualidade literária de uma obra como a sua predisposição à traição é o último passo na linha essencialista de Ingarden, uma vez que a noção de “traição criativa” pressupõe que a obra possui uma imanência de sentido, um significado fixo que pode ser traído.
       Uma das maiores preocupações de Ingarden era defender a obra de leituras não-adequadas, de “mis-readings”. Por outro lado, tem-se desenhado entre os críticos literários uma tendência para sublinhar a criatividade do leitor, criticando o facto de o leitor ser levado pelo texto, com o argumento de que pouco restaria então ao leitor para ler. Os seguidores mais fiéis de Ingarden protestariam, por outro lado, contra o uso do texto como mero pre-texto por parte do leitor.
       O centro da aparente contradição contida nestas posições está já presente na tentativa de Ingarden de definir o modo de existência da obra literária: Ingarden deixa de fora autor e leitor, mas escreve que a obra existe nas diferentes concretizações e através delas[8]. No seu receio de concretizações inadequadas, Ingarden preferiria ver lacunas e passos de indeterminação da obra preenchidos no acto da sua composição; se restam ainda espaços abertos no texto, caberá ao leitor completar a polifonia da obra, preenchendo as lacunas. O problema é, evidentemente, que se as diferentes concretizações não passam de um resultado da estrutura polifónica da obra, pouco mais restaria ao leitor do que o papel de eco ou espelho do texto. Exagerar, por outro lado, a função das lacunas e dos passos de indeterminação do texto, poderia levar a concepções idealistas de comunicação através de pura intuição, de transmissão de energia através do mero acto expressivo.
       Mas o destino das “lacunas” na crítica literária viria a ser diferente.
(a continuar)



*O presente texto é a tradução da comunicação que apresentei ao X. Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada AILC/ICLA em Nova Iorque a 24 de Agosto de 1982, intitulada no original “A Note on Misreading, or: Filling the Author’s Gaps”, publicada nas Actas do Congresso, e a publicar a seu tempo também em língua inglesa aqui no Comparatista e Detective. Este texto é a versão revista do texto publicado em Cadernos de Literatura do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, Nº 19, 1984, p. 39-44.

[1] BLOOM, Harold, The Anxiety of Influence. New York, 1973 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[2] BLOOM, Harold, A Map of Misreading. New York, 1975 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[3] ESCARPIT, Robert, “’Creative Treason’ as a Key to Literature”. In: Yearbook of Comparative and General Literature, Bloomington, nº 10, 1961.
[4] ESCARPIT, Robert, Le littéraire et le social. Paris. 1970, p. 28.
[5] BARTHES, ROLAND, Critique et vérité. Paris, 1970, p. 50: “A variedade dos sentidos não revela uma visão relativista sobre os costumes humanos; ela designa, não uma predisposição da sociedade para o erro, mas sim uma disposição da obra para a abertura; a obra detém, ao mesmo tempo, vários sentidos, por estrutura, não por defeito daqueles que a lêem”.
[6] ECO, Umberto, Opera aperta. Forma e indeterminazione nelle poetiche contemporanee. Milano, 1962.
[7] INGARDEN, Roman, Das literarische Kunstwerk. Halle (Saale), 1931, p. 361 (tradução portuguesa com o título A obra de arte literária. Lisboa, 21979).
[8] Id. ibid., cap. 13, “Das ‘Leben’ des literarischen Werkes”, p. 342-389. INGARDEN escreve, por exemplo, „que se devem contrapor à própria obra as suas concretizações, que dela se distinguem em muitos aspectos” (“daß dem Werke selbst seine Konkretisationen entgegenzusetzen sind, die sich in mancher Hinsicht von ihm unterscheiden”, p. 342).