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domingo, 11 de dezembro de 2011



Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto


(...)
       À relação da obra com a realidade fora durante muito tempo dada uma ênfase exagerada por modos de abordagem mecanicistas, excluindo totalmente o leitor e atribuindo à obra literária um estatuto de realidade no segundo grau como reflexo. As modernas teorias do texto reagiram fortemente contra este ponto de vista; a sua atenção não se focou no movimento centrípeto de ficcionalização, mas antes no movimento centrífugo que acontece no processo de leitura. O olhar crítico não seguia o processo de escrita detendo-se no texto; ele começava onde outras abordagens se tinham detido e tentava seguir as diversas integrações do texto na realidade através dos leitores. O mais antigo problema da estética – a relação ficção-realidade – estava de novo a ser focado, mas desta vez pelo lado oposto: a realidade a considerar já não era a realidade reflectida no texto, mas sim a realidade gerada pelo próprio texto através do leitor. Não o texto como reflexo de uma realidade pré-existente, mas sim o texto como potencial acção na realidade. O processo de transformação do texto em realidade está sempre ligado à função geradora de sentido do texto; o texto atinge a realidade através da sua potencialidade de produzir sentido. O leitor tem agora um papel activo decisivo: se o autor se exprime no texto, o leitor tem de encontrar outras maneiras de integrar o texto na realidade, mesmo que seja através de um segundo texto, como pode ser o caso do leitor directamente criativo ou do crítico literário. O que interessa agora é o regresso do leitor à realidade, libertando o texto literário do seu isolamento e alargando a noção de obra através da integração do texto na realidade. A inserção do texto no processo de recepção que o transforma em obra implicaria a longo prazo uma nova reflexão sobre os próprios conceitos de arte e vida – mas tecer considerações teóricas sem sabor utópico sobre esta questão é, pelo menos, impossível por agora. Seja como for, as modernas teorias do texto depressa se transformaram em teorias da comunicação literária, focando o seu interesse na história literária como um processo que engloba três elementos: autor, texto e leitor[1].

       O texto exprime sempre e de um modo ou outro denota uma necessidade de diálogo, possui aquilo a que Iser chamou “estrutura apelativa”. Mas a comunicação com o leitor não é directa, estabelece-se através do texto. É essa a razão pela qual o autor foi, a princípio, deixado de fora da reflexão teórica, uma vez que ele permanece presente no texto e comunica com o leitor através do texto – daí o desvio da tónica para o eixo de relação texto-leitor, texto-acção (“Wirkung”). O que também quer dizer que a perspectiva hermenêutica tradicional seria ingénua ao assumir que a comunicação se estabelece directamente entre autor e leitor através do acto de expressão, através da co-genialidade – e tendendo a ignorar a especificidade da comunicação literária, estabelecida através do texto.

       O conceito de “ler mal” (“misreading”) proposto por Harold Bloom como leitura antitética, tentando sondar “as profundidades da influência poética”[2], remonta às investigações de Freud sobre os mecanismos de defesa, atribuindo à protecção do organismo contra estímulos um papel quase maior do que à “recepção de estímulos”[3]. Bloom vê a qualidade de processo de leitura, mas como reacção; o diálogo entre poetas fortes é um diálogo negativo e todos os textos mostram, na sua formulação, uma ou outra espécie de ratio “revisionista”. É de duvidar que a redução da leitura ao “ler mal”, “misreading”, e da leitura criativa à leitura antitética, tenha contribuído para dar à crítica literária um carácter mais humanista. O acesso do leitor à criatividade através da leitura é certamente uma coisa maravilhosa, mas o apelo do texto à criatividade não deveria limitar-se à espécie de criatividade que, por seu turno, encontra expressão em textos literários – e Bloom não aponta uma saída para fora dos próprios poemas, sendo a crítica literária para ele “a arte de conhecer os caminhos escondidos que vão de um a outro poema”[4]. Seja como for, a teoria das relações intrapoéticas de Bloom exprime uma reacção contra o rigor teórico e o “close reading” do texto: na perspectiva de Bloom, o crítico pode de igual modo ser um artista: “Não há interpretações mas apenas más interpretações, e assim toda a crítica é poesia em prosa”[5]. Exigir maior subtileza ao crítico literário e maior exactidão ao escritor não significa que, nas palavras de Bloom, “à medida que a história literária se desenvolve, toda a poesia se torna necessariamente crítica em verso, tal como a crítica se torna poesia em prosa"[6]. Enriquecimento da leitura e da escrita, bem como da crítica no processo da sua evolução, não significa ausência de diferenciação, pelo contrário. E reduzir a uma leitura ideal o número de leituras possíveis – uma vez que elas são o resultado não só da estrutura do texto, mas mais da qualidade histórica da recepção – significaria dar um fim artificial à história dos textos e da sua acção ou efeito (“Wirkung”).*

[1] Cf. JAUSS, Hans Robert, “Esthétique de la réception et communication littéraire”, in: Proceedings of the IXth Congress of the ICLA. Innsbruck 1979, vol. II, Literary Communication and Reception, ed. por Z. Konstantinovic, M. Naumann, H. R. Jauss. Innsbruck, 1980.
[2] Cf. Anxiety, p. 7.
[3] Cf. Map, p. 13: “’Protection against stimuli is an almost more important function for the living organism than reception of stimuli’ is a fine reminder in Beyond the Pleasure Principle, a book whose true subject is influence.”
[4] Cf. Anxiety, p. 96: “Criticism is the art of knowing the hidden roads that go from poem to poem”.
[5] Id. ibid., p. 95: “There are no interpretations but only misinterpretations, and so all criticism is prose poetry”.
[6] Cf. Map, p. 3: “As literary history lengthens, all poetry necessarily becomes verse-criticism, just as all criticism becomes prose-poetry”.
*Gostaria de exprimir ao meu então orientador de doutoramento, Prof. Doutor Manfred Naumann, alguns comentários que me ajudaram na reflexão sobre este tema.

sábado, 19 de novembro de 2011





Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto

 


 
 (...)
              Mas o destino das “lacunas” na crítica literária viria a ser diferente. De facto, as lacunas do texto, bem como os passos de indeterminação, são considerados por Wolfgang Iser[1] uma condição para a recepção do texto e um factor importante para a sua acção. As lacunas não são, no entanto, na perspectiva de Iser, espaços em branco a preencher arbitrariamente pelo leitor, um espaço vazio para exercícios de leitura arbitrários. A estrutura do texto determina as lacunas a preencher e contém assim em si mesma um leitor implícito. Isto não quer dizer que nada mais reste para ler ao leitor de Iser[2], uma vez que a proposta mais importante do papel atribuído ao leitor no texto é descobrir[3]. Além disso, as lacunas são para Iser uma parte da estratégia comunicativa do texto, indispensável para o contacto estabelecido entre texto e leitor: não é possível comunicação sem intenção comunicativa.

       Em suma, poderia dizer-se que reivindicar os direitos do texto ou do leitor, traçando linhas que vão unilateralmente de um ao outro, defendendo a primazia de um dos dois, torna-se desnecessário quando a leitura e a recepção são vistas como inter-relação e processo, uma vez que nenhum dos dois elementos vale por si só: defender a liberdade e a criatividade do leitor sem texto não faz muito sentido – e o texto sem leitor não passa de uma materialidade de sinais à espera de descodificação. Alguns críticos querem defender a “obra em si mesma”- mas qual é, na fórmula de Ingarden, o modo de existência da obra literária? O problema, contido nas contradições internas de Ingarden, é resolvido em cambiantes diferentes por Wolfgang Iser[4] e Manfred Naumann[5]: o texto torna-se obra no processo de leitura e através da leitura.

       Os dois livros de Harold Bloom sobre o “ler mal” (“misreading”) devem ser compreendidos como reacção ao tecnicismo da crítica literária, e como tentativa humanista de salvar a literatura dos métodos “formalistas” que vêem o texto ou obra como um organismo fechado em si mesmo. Bloom cai no extremo oposto, escrevendo que “não há textos, mas apenas relações entre textos”[6]. O fundamento para a sua doutrina poética é a influência, ou as relações intrapoéticas, que cuidadosamente separa do “estudo das fontes”, da “história das ideias” ou da “estruturação das imagens”[7]. Na sua nostalgia por um método de abordagem humanista que se teria perdido na crítica literária, Bloom tende a negligenciar o texto e a concentrar-se nos dois participantes do processo, autor e leitor.

       Erros causados pelo biografismo, bem como a concepção essencialista de obra literária, tinham conduzido no passado à exclusão do autor e do leitor e à concentração exclusiva no texto no seu “estado de pureza”, de estrutura separada e independente, depois de escrito e antes de ser lido[8]. A obra é então considerada como estrutura de sinais, e não no processo que constitui o seu verdadeiro modo de existência próprio, nos dois momentos da sua humanização, como produto da actividade humana, ao ser escrita – e lida. Isolar o texto no seu “estado de pureza” pode corresponder a uma estratégia metodológica num dado momento da evolução da crítica literária, ou numa dada fase do estudo de um texto; mas conferir valor absoluto a uma fase de um processo, elaborando teorias que isolam o texto literário numa hipotética esfera própria como tendo um estatuto ontológico à parte, é em si mesmo um paradoxo. Isolar o texto num mundo próprio inacessível não garante a realização de todas as suas potencialidades e da totalidade dos seus valores, pelo contrário, faz disso uma impossibilidade. Toda a afirmação sobre o texto implica a sua apropriação por parte do leitor e a sua reintegração na realidade; o que os diferentes “formalismos” fazem é cortar os diversos laços passados e futuros que ligam o texto à realidade e encerrá-lo na sua “prisão”, mas ao fazê-lo apenas estão, de facto, a integrá-lo negativamente na realidade.


(a continuar)


[1] ISER, Wolfgang, Die Appellstruktur der Texte. Unbestimmtheit als Wirkungsbedingung literarischer Texte. Konstanz, 1970.
[2] Cf. BARNOUW, Dagmar, “Is there anything left to read for Iser’s reader?”, in: Proceedings of the IXth Congress of the ICLA, Innsbruck 1979, vol. II: Literary Communication and Reception, ed. Por Z. Konstantinovic, M. Naumann, H. R. Jauss. Innsbruck, 1980.
[3] Cf. ISER, Wolfgang, Der implizite Leser. Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett. München, 1972, p. 9.
[4] Cf. ISER, Wolfgang, Der Akt des Lesens. München, 1976, p. 39: „A obra é a constituição do texto na consciência do leitor” (“Das Werk ist das Konstituiertsein des Textes im Bewusstsein des Lesers”).
[5] Cf. NAUMANN, Manfred, “Werk und Literaturgeschichte”, in: Weimarer Beiträge, 1, 1982, p. 59: „só o texto lido, quer dizer o texto a que se deu significado e, portanto, valoração, é a verdadeira obra” (“erst der gelesene, das heisst der bedeutete und damit bewertete Text ist das wirkliche Werk”).
[6] Cf. Map, p. 3: “there are no texts, but only relationships between texts.”
[7] Cf. Anxiety, p. 7.
[8] Cf., por exemplo, KAYSER, Wolfgang, Das sprachliche Kunstwerk. Bern e München, 51959, p. 138: „A obra de arte literária vive como tal e em si mesma” (“Das sprachliche Kunstwerk lebt als solches und in sich“).

sábado, 15 de outubro de 2011



Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto*


       Nas suas obras The Anxiety of Influence [1] e A Map of Misreading[2], Harold Bloom propõe a categoria central de “misreading” – “ler mal” – para a compreensão da história da poesia, que não pode, a seu ver, distinguir-se da influência poética, “uma vez que os poetas fortes fazem essa história lendo-se mal uns aos outros” (p. 5). “Ler mal” aparece, na perspectiva de Bloom, no sentido positivo de “mal-entendido produtivo”. Poderia traçar-se a história do sugestivo termo proposto por Bloom: de facto, vários outros críticos usam expressões semelhantes para denotar leitura produtiva. Assim, Robert Escarpit fala de “’traição criativa’ como chave da literatura”[3] e, referindo-se a Julia Kristeva e ao seu conceito de entropia do discurso literário, toma a “predisposição da obra à traição” como um critério da sua especificidade literária[4]. As diferentes interpretações não significam, de igual modo, na perspectiva de Roland Barthes, uma tendência dos leitores para ‘errar’, mas antes uma “disposição da obra literária para a abertura”[5]. Umberto Eco também desenvolveu no seu já famoso livro Opera aperta[6] as noções de “obra aberta” e de “obra em movimento”. Para ele, a liberdade do texto – a sua abertura – deveria ser igual à liberdade do leitor. Concebendo a forma como um campo de possibilidades, Eco também atribui ao texto a razão das diferentes leituras, através da sua intenção de comunicar mais do que uma mensagem inequívoca.
       A noção de “ler mal” como leitura produtiva parece, à primeira vista, ser o contrário do conceito clássico de “ler mal” tal como é desenvolvido na obra mais importante de Roman Ingarden[7]. Considerando, no entanto, os dois conceitos de “ler mal” mais de perto, chega-se a outra conclusão, pois definir a qualidade literária de uma obra como a sua predisposição à traição é o último passo na linha essencialista de Ingarden, uma vez que a noção de “traição criativa” pressupõe que a obra possui uma imanência de sentido, um significado fixo que pode ser traído.
       Uma das maiores preocupações de Ingarden era defender a obra de leituras não-adequadas, de “mis-readings”. Por outro lado, tem-se desenhado entre os críticos literários uma tendência para sublinhar a criatividade do leitor, criticando o facto de o leitor ser levado pelo texto, com o argumento de que pouco restaria então ao leitor para ler. Os seguidores mais fiéis de Ingarden protestariam, por outro lado, contra o uso do texto como mero pre-texto por parte do leitor.
       O centro da aparente contradição contida nestas posições está já presente na tentativa de Ingarden de definir o modo de existência da obra literária: Ingarden deixa de fora autor e leitor, mas escreve que a obra existe nas diferentes concretizações e através delas[8]. No seu receio de concretizações inadequadas, Ingarden preferiria ver lacunas e passos de indeterminação da obra preenchidos no acto da sua composição; se restam ainda espaços abertos no texto, caberá ao leitor completar a polifonia da obra, preenchendo as lacunas. O problema é, evidentemente, que se as diferentes concretizações não passam de um resultado da estrutura polifónica da obra, pouco mais restaria ao leitor do que o papel de eco ou espelho do texto. Exagerar, por outro lado, a função das lacunas e dos passos de indeterminação do texto, poderia levar a concepções idealistas de comunicação através de pura intuição, de transmissão de energia através do mero acto expressivo.
       Mas o destino das “lacunas” na crítica literária viria a ser diferente.
(a continuar)



*O presente texto é a tradução da comunicação que apresentei ao X. Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada AILC/ICLA em Nova Iorque a 24 de Agosto de 1982, intitulada no original “A Note on Misreading, or: Filling the Author’s Gaps”, publicada nas Actas do Congresso, e a publicar a seu tempo também em língua inglesa aqui no Comparatista e Detective. Este texto é a versão revista do texto publicado em Cadernos de Literatura do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, Nº 19, 1984, p. 39-44.

[1] BLOOM, Harold, The Anxiety of Influence. New York, 1973 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[2] BLOOM, Harold, A Map of Misreading. New York, 1975 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[3] ESCARPIT, Robert, “’Creative Treason’ as a Key to Literature”. In: Yearbook of Comparative and General Literature, Bloomington, nº 10, 1961.
[4] ESCARPIT, Robert, Le littéraire et le social. Paris. 1970, p. 28.
[5] BARTHES, ROLAND, Critique et vérité. Paris, 1970, p. 50: “A variedade dos sentidos não revela uma visão relativista sobre os costumes humanos; ela designa, não uma predisposição da sociedade para o erro, mas sim uma disposição da obra para a abertura; a obra detém, ao mesmo tempo, vários sentidos, por estrutura, não por defeito daqueles que a lêem”.
[6] ECO, Umberto, Opera aperta. Forma e indeterminazione nelle poetiche contemporanee. Milano, 1962.
[7] INGARDEN, Roman, Das literarische Kunstwerk. Halle (Saale), 1931, p. 361 (tradução portuguesa com o título A obra de arte literária. Lisboa, 21979).
[8] Id. ibid., cap. 13, “Das ‘Leben’ des literarischen Werkes”, p. 342-389. INGARDEN escreve, por exemplo, „que se devem contrapor à própria obra as suas concretizações, que dela se distinguem em muitos aspectos” (“daß dem Werke selbst seine Konkretisationen entgegenzusetzen sind, die sich in mancher Hinsicht von ihm unterscheiden”, p. 342).