Infância e escrita em dois contos de Irene Lisboa e
Raduan Nassar *
1955 – Uma
escritora portuguesa pouco conhecida, que ainda há bem pouco tempo assinava as
suas publicações com um pseudónimo masculino para proteger o teor
autobiográfico desses textos, publica o segundo livro para crianças e jovens, Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma.
Tem 63 anos e o conto inaugural da colectânea de “historietas”, como as
designa, intitula-se “As aventuras de Rosalina” e narra um dia especial na vida
da menina que a mãe mandara fazer um recado “ali tão perto” (Lisboa, 52000: 25).[1]
1961 – Um
jovem brasileiro de origem libanesa “à procura de uma escrita” (Lemos, 2003:
81-112) escreve o seu primeiro texto, que só virá a publicar em 1994, no final
de uma fulgurante carreira literária. Fulgurante e algo breve, já que
constituída, como ele próprio diz, por “livro e meio”. Esse texto inaugural
intitula-se “Menina a caminho” e narra a travessia iniciática de uma menina sem
nome por uma pequena cidade do interior do Estado de S. Paulo, durante a qual
encontra personagens-tipo da imigração brasileira, traçando as “fronteiras
perdidas” de um “Mediterrâneo caboclo”. (Idem, ibidem, passim)
A escritora, tê-lo-ão
adivinhado, é Irene Lisboa, o escritor é Raduan Nassar. Escrevendo estes contos
com uma diferença de seis anos mas a grande distância geográfica e em contextos
quer pessoais quer sociais diversos, surpreenderão as semelhanças dos dois
textos. A protagonista de Irene Lisboa, Rosalina, e a “menina a caminho” de
Raduan Nassar, personagem sem nome, têm aproximadamente a mesma idade, crianças
quase a entrar na adolescência. Ambas crescem num ambiente rural. E ambas descobrem,
num dia de aventuras ou encontros vários, o corpo e a sensualidade ou a sexualidade.
Mais, em ambos os escritores a passagem da infância à adolescência retratada
nestes textos está ligada à descoberta da escrita. Será meu propósito mostrar como
essa passagem inaugura o processo da escrita nos dois casos. Finalmente,
questionaremos estes contos no contexto da literatura infanto-juvenil na
tradição literária europeia, reflectindo sobre elementos do género
eventualmente desenvolvidos em variação nos dois contos que ajudem a
compreender a problemática de cada um deles.
Quando escreve
Uma mão cheia de nada outra de coisa
nenhuma, Irene Lisboa tem já sete livros publicados, quase todos com o
pseudónimo de João Falco, entre eles a novela Começa uma vida, de 1940. Neste último retrata a sua infância,
terminando a narrativa, feita da perspectiva da idade adulta, exactamente na
passagem para a adolescência. Retomará essa revisitação em 1956 com Voltar atrás para quê?, livro no qual a narradora evoca o período difícil que passa em casa do
pai e da madrasta entre os treze e os dezoito anos. Foram tempos muito traumáticos para a autora, a que ela
repetidamente sente necessidade de regressar, transformando-os através da
escrita. Entre os dois livros, Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma
retoma o tema da infância e juventude, com a intenção de divertir e entreter o
público dos mais pequenos.[2] As
referências fortemente autobiográficas, não imediatamente visíveis numa
primeira leitura, são referidas por Paula Morão: estas histórias “são relatos
de sonhos de uma rapariguita atormentada por medos nocturnos ou tentando
escapar ao que a cerca, criando um outro mundo, melhor que o das ‘más mulheres’
a que se vê sujeita; nela se pode facilmente reconhecer a menina que
protagoniza Começa uma vida e Voltar atrás para quê?, tão flagrantes
são as semelhanças”.[3]
Podemos
acompanhar, comparando o texto de “As aventuras de Rosalina” com os dois livros
atrás citados, como a emergência do mundo da escrita coincide na vida de Irene
Lisboa com o início da adolescência.[4] Em
Começa uma vida, a narradora conta como
foi o médico de família quem mudou a vida dela e da irmã, receitando-lhes “ares
de praia”. (Lisboa, 1993: 71)[5] Foi nesse Verão que o paiu da narradora conheceu uma jovem quase da idade da filha. Ao mesmo tempo que a adolescente frequenta o colégio inglês, faz as primeiras amigas e se sente rodeada de novidade e capaz de se libertar de "velhos recintos e hábitos" (p. 74), o pai começa uma relação que se revelará funesta para a filha: "Eu começava a gozar uma espécie de eamncipação e o meu pai encetava mais uma das suas mancebias. Esta, porém, anunciava-se laboriosa e absorvente, de um estilo diferente das anteriores." (p. 74) Assim, quando a jovem começava a despertar para uma nova vida, e eventualmente a libertar-se das velhas feridas e do estigma de ter pais incógnitos e nunca ter conhecido a mãe, eis que se vê privada da madrinha que lhe tinha feito as vezes de mãe e mergulhada num quotidiano em que é "rebaixada e desorientada, sem o amor de ninguém" (p. 80). O pai acaba por trazer para casa a jovem amante e a mãe dela, mulher mesquinha e interesseira, que transformam a vida da narradora num inferno. Esta nova rejeição, dentro daquela que tinha sido até aí a sua própria casa, dá-se no momento decisivo da passagem para a adolescência: "Foram dois anos em que troquei a pele de criança pela de mulher, mas sem as demoras e as curiosidades graciosas e veladas das raparigas das outras famílias." (p. 80)
Assim termina o texto de Começa uma vida, retomado dezasseis anos mais tarde em Voltar atrás para quê? (1956), para
reencontrar a protagonista na mesma altura em que a tínhamos deixado: “Ainda
nem os treze anos completara!”. (Lisboa, 1994: 22)[6] A
situação insustentável que passa a viver dentro de casa do pai, com as duas
mulheres a intrigar contra ela e a envenenar-lhe a existência, com o objectivo
de conseguirem que o pai a deserde, vai transformá-la profundamente: “Por
razões confusas, idade, desamparo, saberia ela já bem por quê? entrou a andar
fugida. À laia de pássaro ou de animal bravio. Antes como um ser feliz e
desgraçado, tudo a um tempo.” (p. 22) Quase inevitavelmente, os livros e a
imaginação passam a ser o seu refúgio, bem como os passeios para fora da
quinta, em que se sente livre: “Passou a viver e a alimentar-se da sua própria
imaginação” (p. 27).
A menina de
treze anos vive fora de casa, com os bichos e a natureza, a vida afectiva que
lhe negam dentro da casa paterna: “O amor dos gatos e dos cães e até o dos
bichos da capoeira ocupavam-na muito. Entretinham-na durante aqueles longos
dias, ociosos e vadios, que eram os seus.” (p. 32). A jovem adolescente deixou
de estudar, e o pai esqueceu-se completamente da sua existência: “Dois anos,
dois anos apenas, ela assim passou, seguidos mas tão incompletos. Tão longos,
tão cheios e tão vazios! Lembrados como nenhuns outros da sua vida.” (p. 33).
Assim se vai familiarizando com a natureza e com as flores como se fossem as
amigas que lhe faltam e com quem se pode identificar, porque crescem como ela
sem nenhum apoio:
as rosas-chá e as flores de beladona, os bons-dias e as
boas-noites, a lúcia-lima, a baunilha e as papoilas-da-índia... que cresciam
sem trato num pequeno jardim traseiro da casa e nos mirantes descuidados da
quinta [...]. Para ela, as flores tinham romances, uma vida íntima [...] as
flores e também os pássaros, as estrelas... Um dos seus gostos, quando ninguém
a via, consistia em se deitar no chão, de olhos para o céu, como se o estivesse
bebendo. E tudo isto lhe era permitido, enfim, porque vivia ao deus-dará,
abandonada, e era tida como um ser vicioso e desprezível. (p. 33)
Ora há um
passo em Voltar atrás para quê? que
gostaria de destacar como texto inaugural paralelo a “As aventuras de
Rosalina”, pois a passagem da infância para a adolescência aparece em clara
ligação com a descoberta de um mundo novo, que virá a ser o mundo – de algum
modo redentor – da escrita:
Certa manhã, seria domingo, dia de festa? Ela saiu para a
estrada e da estrada, com aquela impressão de liberdade furtiva e aguda que lhe
entrava no corpo, posto o pé fora da quinta, achou o campo maravilhoso. Nunca
lhe parecera e nunca mais lhe pareceu tão radioso o ar, tão linda a floração
campestre, tanta novidade em tudo, como naquela ocasião. Lembrando-se de tão
especial sensação ou surpresa, põe naquela data, que foi a dos seus treze anos
iniciados, uma ideia de eclosão nítida da vida ou do mundo. (p. 27)
Em “As
Aventuras de Rosalina”, a protagonista vai fazer um recado à mãe e tem de
atravessar a praia. De tal maneira se encanta com o sol, o mar e a areia, que
perde a noção do tempo e passa o dia todo na praia, só regressando a casa
quando é já noite fechada e a mãe a procurava, muito aflita. Rosalina terá
aproximadamente a mesma idade da protagonista de Começa uma vida, e tal como ela é uma menina solitária e sonhadora.
Só assim se explica a relação que estabelece com a praia e o mar, ouvindo uma
voz que a chama repetidamente. Esta voz é a voz da natureza, que diz “Anda cá,
menina.” (p. 23). Rosalina pensa que a voz vem das ervas, nas dunas, e depois
do mar. Entrega-se a uma vivência de sensualidade na praia, sentindo o corpo:
“À borda do mar de pés descalços, é que era gozar.” (p. 23), “Pôs-se a
cantarolar e enterrou os braços na areia. Estava tão quente! Até escaldava.”
(p. 23). O apelo que lhe fazem, é a realidade estival que lho faz, mas em
coincidência com o que, ao mesmo tempo, descobre de si própria. O que Rosalina
descobre neste dia de Verão é não só o
fascínio da praia que apela aos seus sentidos, mas a sua própria sensualidade e
o seu corpo de quase adolescente, que reage ao chamamento da vida.
O conto
inaugural de Uma mão cheia de nada outra
de coisa nenhuma parece corresponder ao dia de festa descrito no romance
autobiográfico em que fala de “uma ideia de eclosão nítida da vida ou do
mundo”. Um dia inteiro descrito em três páginas como luz e cores, até à
vivência final do sol. Tudo é além disso fluido, lento ou veloz como num sonho.
Esta eclosão pode ser interpretada como a transição da infância para a
adolescência e a descoberta simultânea do mundo da escrita. Irene Lisboa resume
num poema de 1937 esta vocação programática que perdura muito para além da
juventude: “Nova! Nova! Nova! Nova!”,[7]
vindo a reconhecer o valor da escrita e das palavras na sua vida quando, em
1956, afirma em Voltar atrás para quê?:
“As suas mais preciosas jóias, que nunca poderá alienar nem perder, são, a bem
dizer, palavras” (p. 89).
A própria vida
é o assunto principal da obra de Irene Lisboa – pouco mais parece acontecer
nesta obra feita sobretudo de
recordações traumáticas do tempo da adolescência e da infância. Contudo, a
colectânea de contos para a juventude Uma
mão cheia de nada outra de coisa nenhuma reflecte e contradiz ao mesmo
tempo a claustrofobia e clausura das diversas formas da sociedade portuguesa da
época – o que há de novo no que escreve, para além dos movimentos de alma do
mundo interior da escritora, são os momentos luminosos da escrita.[8]
Luz que chega pela vivacidade da linguagem, pela espontaneidade da forma de
comunicação, muito coloquial, e por uma vida que, sob o nosso olhar atento,
mais uma vez começa, a da escritora Irene Lisboa, que no-la descreve em
variação, desta vez simbolicamente nesse dia inaugural de exploração de um
mundo exterior que enfeitiça Rosalina e faz com que descubra a sensualidade e o
corpo, também ela “a caminho” da adolescência.
Irene Lisboa
tinha já 63 anos quando, em 1955, escreveu “As aventuras de Rosalina”, e viria
a morrer em Novembro de 1958, poucos dias antes do seu 66º aniversário. Em
termos de escrita, estava mais jovem do que nunca, “Nova! Nova! Nova! Nova!”,
tal como desejara programatica e existencialmente no poema de 1937 de Outono havias de vir.
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig / Instituto Camões / CLEPUL)
(a continuar)
[2] Cf.
Morão, Paula, “Histórias para maiores e mais pequenos se entreterem”, in: O essencial sobre Irene Lisboa. Lisboa:
INCM, 1985.
[3] Também Óscar Lopes refere a inspiração biográfica do volume de contos
para a juventude: vd. LOPES, Óscar, “Uma lágrima engolida no ‘comum existir’, in:
Voltar a Irene Lisboa. Colóquio Letras,
nº 131, Janeiro-Março 1994, 11.
[4] Vd.
Lopes, Óscar, op. cit., 11.: “a
protagonista conheceu o seu éden rural precisamente nos anos em que se descobriu, se intimizou, escrevendo as suas primeiras poesias, iniciando o seu
primeiro diário (coisas depois perdidas), descobrindo segredos do próprio corpo
no seu quarto de reclusão, entregando-se ao ‘prazer da tristeza’, cismando
sozinha fantasias, escapando à sanha paterna nos ramos ou sob as franças baixas
de árvores tão amadas”.
[5]
Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição.
[6]
Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição.
[7] Vd.
“Nova! Nova! Nova! Nova!”, Outono havias
de vir, in: Lisboa, 1991: 296.
[8] Já
Violante Florêncio acentua no “Prefácio” a Uma
mão cheia de nada outra de coisa nenhuma esta característica da obra: “A
maioria das vezes a acção é efeito de se olhar um espaço sedutor, para o que
contribui o jogo de luz e sombra (...) A esta ‘claridade’, espalhada por todo o
lado (...) associa-se a cor branca, que é predominante. O olhar vai-se tornando
interior em função do brilho que recebe do exterior. E o brilho está em todo o
lado, pelo que a cada página se encontram exemplos.” (p. 16).
* Comunicação apresentada ao 9º Congresso dos Lusitanistas Alemães, na Universidade de Viena, em 2011, na secção dirigida por Gabriela Fragoso, "Representações da infância em contextos literários lusófonos: que espaço para a utopia?". Publicado em FRAGOSO, Gabriela (org.), Literatura para a Infância. Infância na Literatura. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, p. 63-73.