O chapéu de uma escritora pode bem transformar-se em símbolo da sua obra e ajudar-nos a compreendê-la, sobretudo se figura no título, é elemento fulcral da narração e a sua imagem principal, como no caso do conto A Mulher do Chapéu de Palha[1] de Graça Pina de Morais. De uma maneira geral, o chapéu representa a cabeça e o pensamento, o espírito e a imaginação, podendo ainda ser um símbolo de identidade[2]. Escrito em 1986, e publicado postumamente em 2000, esta ficção tem uma forte componente autobiográfica. A capa reproduz um pormenor de uma fotografia da autora no final da década de 1980, com um chapéu em tudo semelhante ao descrito no texto. O editor explica na badana do livro que este conto foi escrito durante umas férias de Graça Pina de Morais no Rio de Janeiro.
De uma serenidade e luminosidade apenas
comparáveis à transparência nítida da manhã da Foz do Douro que
descreve no início, este conto é uma narração autobiográfica na terceira pessoa, com
características fortemente metaficcionais, em que a autora reflecte sobre a
função da literatura e do escritor e a sua relação com o leitor, fazendo indirectamente
o balanço da sua vida e produção literária. Esta será a razão do grande, embora
empenhado, distanciamento e até ironia (também autoironia) do texto, não muito comum na obra de Graça Pina de Morais: este seu último texto
publicado é uma reflexão apolínea sobre uma obra e uma realidade de traços
dionisíacos (o fundo existencial denso, excessivo) mostrando que a autora, se
leu e preferiu Dostoievski, certamente leu também Tolstoi, tal como conta em
entrevista[3].
Nesta obra não predominam os espaços fechados, quer físicos quer psicológicos, nem as personagens
que “procuram, sem o conseguir, transcender a irrealidade, vazio e absurdo da existência”[4]; aqui a narrativa começa com uma frase concisa e
lapidar: “A mulher bateu a porta de casa e saiu para a avenida” (p. 7). Já
vão longe os tempos em que evocou espaços claustrofóbicos de uma casa duriense do
romance de 1958 A Origem, onde cria
inesquecíveis personagens “paradigmáticas de um tempo e de um país.”[5] Embora a escrita
permaneça intimista, o tom é diferente, tal como os tempos: “A política estava na ordem
do dia, não discutia limitara-se a ouvir. Não era uma política era um ser que,
o mais honestamente que lhe era possível, procurava compreender de que lado
estava a razão” (p. 26-7). Em todo o conto predomina a descrição da realidade circundante, acompanhada porém pelas reflexões e
estados de alma da personagem, que a conduzem a espaços cada vez
mais largos. Quando a viagem de eléctrico a leva, no
fim da linha, ao mercado de Matosinhos, a realidade política irrompe mais uma
vez com os sinais do tempo histórico: “Nas suas paredes perduravam os cartazes
coloridos, com todas as mensagens que o processo revolucionário trouxera ao
país. / Segundo a imprensa o processo revolucionário terminara mas dir-se-ia que
não” (p. 18).
Nestas páginas, a autora regressa
aos sítios do seu passado, no Porto: “Vivíamos na Foz do Douro. A
minha alma ficará para sempre ligada a esse mar bravio que rebenta contra a
praia com uma violência estrondosa. Aí passei toda a minha adolescência e uma
parte da minha juventude.”[6]
Na claridade translúcida da manhã, a narradora diz da sua personagem que anseia
por largueza: “Como todo o ser humano que cresce à beira mar a mulher tinha a
nostalgia dos largos espaços” (p. 8). Esta “mulher sem idade, nem nova nem
velha” (p. 7) anseia por horizontes largos, por ir ao limite da sua capacidade
humana de compreensão: “Gostava sempre que a linha do horizonte lhe fosse
acessível, de poder ver tudo quanto o seu humano olhar abrangia. Nas vastidões
desérticas experimentava a sensação de que a alma com a alma se encontrava”
(p. 9). A natureza deste encontro será o tema do presente estudo.
Este belo texto de poucas
páginas divide-se em duas partes: a primeira descreve o percurso
físico-geográfico da personagem pela Foz do Douro, em direcção à piscina de
Leça, durante uma manhã excepcionalmente clara; a segunda parte descreverá a
tarde, a partir das três horas, muito diferente da manhã transparente e serena,
por se ter levantado nortada e tudo ter adquirido “uma aparência turva e
movediça” (p. 25). A primeira parte da narrativa foca a sua atenção no que a
mulher vê e ouve em redor e no que vai pensando, fazendo o
balanço do seu percurso numa altura que poderia ser a “metade da vida”
hölderliniana: “Ainda não sou velha mas já não sou nova!“ (p. 14).
O que distingue esta mulher de meia-idade aparentemente incaracterística é o chapéu: “Subiu para o carro eléctrico que conduzia a
Matosinhos e toda a gente olhou para ela. Não porque se distinguisse dos outros
por algo de excepcional mas porque o chapéu era feio” (p. 14). O chapéu é
descrito com todo o pormenor, tratando-se de um elemento fulcral da narrativa,
com um simbolismo próprio e que dá o título ao conto: “O chapéu era feio,
digamos mesmo invulgarmente feio. Tinha uma copa alta e amachucada, a sua aba
larga caía em torno da cara da mulher como se fosse pendurada. Recordava
insolitamente os chapéus utilizados na cabeça dos espantalhos” (p. 12-13). É este elemento que caracteriza a mulher sem nome – talvez por isso
uma máscara da autora, uma “dupla” autobiográfica – aos olhos das outras
pessoas, passando a funcionar como elemento central da sua identidade: “Tirou
do saco de praia um chapéu e a mulher que se assemelhava a qualquer outro ser
humano e passaria inapercebida num aglomerado de gente passou a ser diferente”
(p. 12).
(a continuar)
[1]
Graça Pina de Morais, A mulher do chapéu
de palha. Lisboa: Antígona, 2000 (todas as citações
se referem a esta edição).
[2] Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, “Chapeau”, Dictionnaire des Symboles (1969),
Paris, Robert Laffont, 1982, p. 207-8.
[3]
Cf. “Depoimento de Graça Pina de Morais”, no livro de Manuel Poppe, Memórias, José Régio e Outros Escritores. Ensaio de Autobiografia,
Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2001, p. 140: “o
livro que mais amei ler foi Os Irmãos
Karamazov, de Dostoievski, que li aos 26 anos. (...) Pensei ‘Até que enfim
que encontro pessoas que se parecem comigo’. (...) Embora lesse um ano mais
tarde Guerra e Paz, embora a grandeza
e a profunda harmonia dessa obra genial me transmitissem também um clima de
serenidade e alegria (...) a verdade é que sinto muito maiores afinidades com
esse quase inacreditável Dostoievski que descreve a alma humana em toda a sua
grandeza, em toda a sua miséria, em toda a sua loucura.”
[4]
Cf. Graça Abranches, “Maria da Graça Monteiro Pina de Morais”, in: AA.VV., Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas
de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Verbo, 1999, p. 932-4.
[5] Idem, ibid., p. 934.
[6]
Cf. “Depoimento de Graça Pina de Morais”, ob. cit.
Ana
Maria Delgado
( Universidade de Leipzig,
Instituto Camões, CLEPUL)
Texto publicado na revista Colóquio Letras nº 184, Setembro/Dezembro 2013, p. 170-180