Nesta altura da narrativa a
mulher do chapéu de palha perde o chapéu, levado pela forte ventania: “Levou de
súbito uma mão assustada aos profusos e curtos cabelos desgrenhados pelo vento.
‘Ai que perdi o meu chapéu! Era feio mas fazia-me jeito! Gostava dele!” (ibid.).
Mas é então que duas outras mulheres de idade se aproximam com o chapéu para o
devolver à sua dona - gente modesta, simples, com um olhar doce que a narradora
descreve: “Esse olhar era tranquilo, tranquilidade que conseguiram transmitir à
alma inquieta e crispada da mulher.” Nelas encontra algo que reconhece como
seu, a gentileza, “que é sem dúvida uma qualidade da alma” (p. 39). E, tendo
perguntado como a conheciam, elas respondem “Conhecíamos a senhora por causa do
chapéu!”, transformando-se o velho e feio chapéu no elemento principal da
identidade da mulher e justificando o título do conto. Se a pergunta dirigida na segunda metade do conto ao "ser transcendente" não chega ao
destinatário por inexistência dele, o certo é que no texto há uma resposta para
a comunicação, dada por estas duas velhotas simpáticas, que reconhecem
chapéu e dona e o vêm entregar. No sorriso agradável e fraterno que as une
nesse momento de reconhecimento há uma resposta, talvez não a resposta plena de
uma transcendência perfeita, mas pelo menos a resposta possível de uma fraternidade humana.
A categoria de “Ereignis” (acontecimento, evento) é tão antiga como a própria literatura, identificada
nalguns casos mesmo como o relato do novo, da novidade, como por exemplo no
género literário conhecido como “novela”, que é a narrativa de um
“acontecimento inaudito”: sem novidade, não há literatura. Mas a modernidade
parece inverter os termos: Jorge Luís Borges, por exemplo, afirma que toda a
escrita é uma re-escrita e que não há nada de novo à face da terra. O novo, a
novidade, o acontecimento, o evento passa para os média com o significado de
espectáculo, perdendo assim aos poucos o carácter de evento, desvirtuando-se. A
literatura passa a narrar a ausência de acontecimento, o não acontecer das
coisas. Paradigma disso é a peça de Beckett Waiting
for Godot, En attendant Godot. A
condição humana passa a ser caracterizada como uma infinita espera, sem
qualquer sentido, de algo que nunca chegará porque não existe. A
pós-modernidade irá desenvolver e desconstruir todas as grandes narrativas que
constituíam a tradição ocidental. Derrida interpreta em 1985, neste contexto,
uma outra parábola de Kafka como símbolo de qualquer texto, literário,
filosófico ou outro, como “espera infinita” – trata-se da parábola “Vor dem
Gesetz”, “Diante da lei”[1],
que se encontra no capítulo “Die Kathedrale” do romance Der Prozess. Também conhecida como “Türhüterlegende“ ou
„Türhüterparabel“, esta parábola foi publicada em 1915 na revista Selbstwehr e em 1919 na colectânea Ein Landarzt, finalmente no romance
publicado em 1925. Na interpretação de Derrida, a lei é atópica, um nada que,
num lugar vazio, difere incessantemente o acesso à lei[2].
Estar diante da lei é o mesmo que estar diante do texto literário – a sua
intangibilidade não vem de uma essência escondida, mas da sua própria
acessibilidade[3].
No caso do presente texto de
Graça Pina de Morais, se a mensageira é apenas um desejo da narradora e não
existe nem mensagem – apenas uma interrogação – nem destinatário, há no entanto
algo – tal como na parábola de Kafka “Eine kaiserliche Botschaft” - que interrompe
o vazio total, mesmo acentuando o silêncio. Se o evento pode definir-se como
aquilo que irrompe, que se destaca na continuidade do acontecer, que sobressai
no fluir quotidiano, então neste conto é a própria mulher do chapéu de palha
que acaba por ser o evento. É ironia da vida que seja um objecto comum, o seu
velho e feio chapéu de palha, que se transforma em elemento de identidade e de
expectativa. Graça Pina de Morais refere-se num passo de A Origem ao que entende por “vida”: “nada acontecia naquela casa.
Se se pode chamar Vida a uma sequência de acontecimentos, aquelas raparigas não
a tiveram; mas a vida não é isso e, nos seres solitários, o vazio exterior vai
criando, pelo contrário, uma densidade existencial funda, apurada e
transcendente.”[4]
A diferença da perspectiva da autora, relativamente a uma
posição como a de Borges na definição do “facto estético” – algo que está para
acontecer mas que fica sempre no limiar desse mesmo acontecer, pode
verificar-se num importante passo do conto “Desencontro”, publicado em O Pobre de Santiago, no qual Lúcia tenta
descrever a Carlos o que sente ao ouvir música clássica: “Era uma espécie de
alegria funda tumultuosa... Era como quem vai chegar... Como alguém que está
perto de alguma coisa desconhecida e total. Como se tudo que tenho, de filha
dum Deus, se desprendesse dentro de mim! Uma exaltação do ser, mas do próprio
ser humano, porque eu sou terrena. Apetecia-me gritar: ‘Mais! Mais!’ para
alcançar qualquer coisa de completo, que pressinto que quase posso tocar. É
como quem está a chegar... mas não chega... (...) Não é uma morte por desânimo
da vida, mas por excesso, porque tudo é demasiado à nossa volta.”[5]
Assim, o que acontece em A Mulher do Chapéu de Palha é o
comunicar desse fundo existencial, que se confunde com a situação da escrita do
texto, que a narradora partilha com o leitor como uma busca, uma demanda, mesmo
se uma demanda sem Graal. A capacidade crítica substitui o relato do evento, a interrogação
substitui as respostas no texto. Essa demanda sem Graal que é a escrita do
texto confunde-se com a própria vivência existencial, daí o carácter
metaficcional do conto não ser propriamente discursivo, mas sim implícito. É a
mulher do chapéu de palha que se torna o próprio evento, a própria
exterioridade/interioridade no texto, com a sua capacidade de interpelação do
real e do sentido da vida. Dela emana uma mensagem que é uma pergunta, e um
sentido que é um encontro humano. Teresa Almeida destaca na obra de Graça Pina
de Morais esta “comunicação misteriosa que se estabelece entre os seres e entre
estes e o universo”, conseguindo "apagar a crueldade da vida, como se houvesse sempre lugar
para um deslumbramento inicial” [6].
É, no fundo, uma postura de
vida e escrita que implicando e incluindo a interrogação, seja ela qual for, dá
como inequívoca resposta um muito largo “sim”[7],
aceitando no final a sua identidade e diferença, mesmo se anónima, de ser
humano e escritora, depois do reconhecimento pelas duas gentis senhoras mais
velhas que, na sua simplicidade e modéstia, se tornam espectadoras/leitoras e
cúmplices do texto: “Segurou com ambas as mãos as abas do chapéu e enterrou-o
na cabeça, escondendo assim os vastos cabelos desgrenhados e o olhar sonhador e
brilhante. Era, na realidade, uma mulher absolutamente anónima, indistinguível
de qualquer outro ser humano no meio de uma multidão mas o seu feio e insólito
chapéu tornava-a diferente” (p. 45-46).
Gostaria de terminar citando
Teresa Almeida, que sublinha a força da voz de Graça Pina de Morais: “Poucas
vezes a literatura portuguesa conseguiu conciliar de uma forma tão radical a
denúncia implacável da hipocrisia do ambiente social e familiar com a
compreensão instintiva da grandeza e da miséria da condição humana.”[8]
Por isso, salienta Teresa Almeida, “Um dia será necessário percorrer os textos
das mulheres que a história esqueceu. Algumas registaram o seu testemunho em
manuscritos que poucos tiveram o privilégio de ler; outras viram os seus livros
rodeados por uma espécie de muro de silêncio, interrompido por uma ou outra voz
dissonante. Graça Pina de Morais pertence a este segundo grupo – a sua obra,
apesar dos prémios e das críticas, não ocupa dentro do cânone literário o lugar
a que teria direito.”[9]
Junto assim a minha voz crítica à de Teresa Almeida, Fátima Maldonado, Graça
Abranches, Manuel Poppe e João Gaspar Simões[10],
para que esta singular escritora portuguesa tenha finalmente o reconhecimento
devido, enriquecendo a nossa herança literária com o cada vez maior grupo de
vozes femininas, tão diferentes entre si.
Manique, 16 de Março de 2011
Ana Maria Delgado
( Universidade de Leipzig, Instituto Camões, CLEPUL)
Texto publicado na revista Colóquio Letras nº 184, Setembro/Dezembro 2013, p. 170-180
[1]
Jacques Derrida, “Devant la loi”. In: Alan Udoff, Kafka and the contemporary critical
performance: Centenary Readings.
Bloomington: Indiana University Press, 1987, p. 128-149.
[2]
Cf. Pierre Delayin, “Préjugés, devant la loi”, Setembro de 2008, Blog de l’orloeuvre.
[3]
Cf. Rafael Haddock-Lobo, “Considerações sobre um ‘hiper-ceticismo’ em Jacques
Derrida”. In: Dubito ergo sum. Páginas de
ceticismo, 2008, passim.
[4]
Cf. A Origem, edição citada, p. 31.
[5]
Graça Pina de Morais, O Pobre de Santiago.
Lisboa: Antígona, 22001, p. 117.
[6]
Teresa Almeida, “Um olhar implacável sobre o mundo”. In: Expresso, 21 de Julho de 2001, p. 45.
[7]
Refiro-me ao final da belíssima conferência que fechou o ciclo das Harvard Lectures de Leonard Bernstein,
“The Poetry of the Earth”, na forma de um “Credo”,
uma “Profissão de Fé”. Referindo-se
à Unanswered Question de Charles Ives,
afirma Bernstein: “I believe (…) that Ives’s Unanswered Question has an answer. I’m not longer quite sure what
the question is, but I do know the answer – and the answer is ‘Yes’.”
[8]
Teresa Almeida, op. cit.
[9] Id. ibid.
[10]
Vd. Manuel Poppe, op. cit., p. 136:
“Bernardo Santareno sabia disso tudo, tal qual não ignorava a riqueza humana de
Graça Pina de Morais nem as suas grandes – invulgares – qualidades de ficcionista,
que, obviamente, não escaparam a João Gaspar Simões: ‘Sejam quais forem as
restrições que venham a fazer-se a este romance, é fora de dúvida que A Origem pertence ao número de obras
excepcionais da nossa ficção contemporânea”, escrevia ele a páginas 429 da Crítica III.”