sábado, 21 de agosto de 2010





Corpos Incomuns





O poeta Friedrich Schiller, figura central da herança cultural da Alemanha, companheiro de Goethe no classicismo alemão em Weimar e no movimento de juventude "Sturm und Drang", autor da ode "An die Freude" ("À alegria"), de 1785, sobre a qual Beethoven compôs o andamento final da sua Nona Sinfonia em 1823, tem recentemente tido destaque na imprensa alemã e sido objecto da atenção dos média com algum sensacionalismo. O corpus cultural foi momentaneamente desestabilizado pela suspeita de que a caveira de Schiller, sepultado em Weimar ao lado de Goethe na Cripta dos Príncipes ("Fürstengruft"), não corresponderia ao resto do esqueleto. É que a poderosa ordem simbólica também tem os seus suportes bem concretos.
Uma verdadeira história de mistério envolveu Schiller, autor da primeira narrativa policial da literatura alemã, Der Geisterseher (O Visionário), de 1789, que ficaria fragmentária. Schiller e Goethe repousam em Weimar, sede do classicismo alemão, daí regendo soberanamente a herança literária e recebendo a homenagem de milhares de visitantes. Mas, tal como noticiava a revista Der Spiegel a 4 de Maio de 2008, a caveira depositada na Cripta poderia não pertencer ao famoso poeta alemão. A polémica terá sido desencadeada por um livro escrito pelo jornalista Rainer Schmitz sobre faits divers da literatura mundial, a que o enigma que rodeia os restos mortais de Schiller dá o título, Was geschah mit Schillers Schädel? (O que aconteceu à caveira de Schiller?), publicado em 2006. A Fundação Clássica de Weimar terá descoberto em 2008, através de testes de ADN feitos às ossadas do poeta e de descendentes seus, próximos e longínquos, que a caveira depositada não corresponde ao resto das ossadas, nem ao ADN dos descendentes. Apesar das notáveis semelhanças com a máscara mortuária, bustos e retratos do poeta alemão, as ossadas não pertencem a Schiller. Mais, descobriu-se que os dentes tinham sido modificados de modo a poderem corresponder na perfeição à dentadura de Schiller. Os especialistas chegaram à conclusão de que não foi, certamente, por acaso que uma cópia tão perfeita da caveira chegou à Cripta, tal como diz a antropóloga de Freiburg Ursula Wittwer-Backofen, especialista em reconstituição facial. O historiador Ralf G. Jahn, que também participou nas investigações, é de opinião que a caveira foi, muito provavelmente, roubada e substituída por uma cópia quase perfeita.
Os factos são estes: Schiller foi sepultado a 12 de Maio de 1805 no mausoléu conhecido como "Kassengewölbe", no cemitério da "Jakobskirche", como muitas outras pessoas com estatuto social, mas que não dispunham de um jazigo familiar. O mausoléu estava demasiado cheio e foi revolvido várias vezes na tentativa de arranjar mais espaço. Assim, quando em Março de 1826 quiseram transladar os restos mortais de Schiller para um lugar mais digno do poeta, para a Cripta dos Príncipes, também em Weimar, não se conseguiu identificar o caixão. O presidente da câmara, K. L. Schwabe, desceu então à cova e escolheu um esqueleto e caveira que lhe pareceram ser os de Schiller, tendo as ossadas sido depositadas na Cripta em 1911. A caveira esteve durante um ano em casa de Goethe, em cima de veludo azul e coberta por uma câmpanula de vidro. Goethe escreveu nesta altura (1826) o poema "Bei Betrachtung von Schillers Schädel", "Contemplando a caveira de Schiller".
O genealogista Ralf G. Jahn suspeita de uma troca intencional da caveira de Schiller pouco depois da morte do poeta em 1805. A suspeita recai, entre outros, sobre o professor de Weimar W. F. von Froriep, que participara na transladação para a Cripta. Froriep terá conhecido bem Schiller e teria tido tempo, oportunidade e motivo para a troca - na época as caveiras eram objecto de um verdadeiro culto, pois se acreditava ser possível tirar conclusões sobre o "génio" a partir delas. A troca ter-lhe-ia, certamente, sido fácil, já que possuía uma colecção de 1.500 exemplares. O neto de Froriep, o investigador de Tübingen August von Froriep, questiona em 1911 a autenticidade da caveira de Schwabe. Desce por isso à cova do cemitério da "Jakobskirche" e escolhe entre 53 outras caveiras uma como a autêntica. Na Cripta dos Príncipes passa, assim, a haver duas caveiras, supostamente de Schiller.
Na sequência das investigações recentes, provou-se no entanto, sem margem para qualquer dúvida, que nenhuma das duas caveiras nem as restantes ossadas pertenciam a Schiller. No documentário do canal MDR, intitulado O código Friedrich Schiller, uma equipa internacional de antropólogos, genealogistas e especialistas em ADN expôs os resultados dos exames feitos às ossadas e caveiras. Ao mesmo tempo, decorria uma exposição da Fundação Clássica de Weimar em 2009, pelos 250 anos de Schiller, A caveira de Schiller - fisionomia de uma ideia fixa, publicando-se por ocasião da efeméride uma monografia com o mesmo título. Nela se explica o culto quase religioso de que é objecto Schiller na Alemanha, como grande autor nacional.
A Fundação Clássica de Weimar teve de lidar com problemas de identidade e fragmentação, já que se trata afinal de uma das figuras tutelares da literatura alemã. O presidente da Fundação, Hellmut Seemann, explicou à revista Der Spiegel que, desde então, o túmulo de Schiller em Weimar está vazio. Manifestando-se sobre a possibilidade de isto eventualmente afastar os visitantes do local de repouso de Goethe e Schiller em Weimar, património mundial da UNESCO, Seemann diz que o facto contribuirá, muito pelo contrário, para acentuar ainda mais a singularidade de Weimar: "aqui não há só poetas ao lado de príncipes, mas também um poeta (Goethe) com um esqueleto completo, e o outro poeta (Schiller) sem esqueleto nenhum."
Bibliografia seleccionada
  • Albrecht Schöne, Schillers Schädel. München: C. H. Beck Verlag, 2002
  • Herbert Ulrich, ... und ewig währt der Streit um Schillers Schädel. München: Verlag Dr. F. Pfleil, 2008
  • Jonas Maatsch / Christoph Schmälze, Schillers Schädel - Physiognomie einer fixen Idee. Göttingen: Wallstein Verlag, 2009
  • Rainer Schmitz, Was geschah mit Schillers Schädel. Alles, was Sie über Literatur nicht wissen. Frankfurt a.M.: Eichhorn Verlag, 2006
  • Vários artigos de Der Spiegel e Die Welt on-line