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Um dos traços que mais claramente separa Borges dessa estética
representacional ou mimética é o carácter de simulacro dos seus textos, o não-reconhecimento de uma origem, de
um modelo ou arquétipo a imitar.[1]
No Prefácio ao seu livro de 1968 Différence
et répétition, o filósofo francês Gilles Deleuze propõe o exemplo do
conto de Jorge Luis Borges “Pierre Menard, autor del Quixote” para ilustrar a relação de correspondência entre os conceitos de
repetição e diferença: “On sait que Borges excelle dans le compte rendu de
livres imaginaires. Mais il va plus loin lorsqu’il considère un livre réel, par
exemple le Don Quichotte, comme si c’était un livre imaginaire, lui-même
reproduit par un auteur imaginaire, Pierre Ménard, qu’il considère à son tour
comme réel. Alors la répétition la plus exacte, la plus stricte a pour
correlat le maximum de différence.”[2] Para Deleuze, os conceitos de diferença e
repetição substituem os conceitos hegelianos de identidade e contradição, sendo
a Modernidade caracterizada pela falência da representação, pela perda das
identidades e pela descoberta das forças que agem sob a representação do
idêntico[3],
e afirma que o mundo moderno é um mundo de simulacros.[4]
O simulacro difere da cópia, representação ou mimésis pela relação de
não-dependência, de distância total em relação a um hipotético original, já que
é uma cópia sem original.[5]
Esta perda da origem contida no simulacro corresponde à perda da historicidade
e das grandes narrativas na nossa cultura. O reconhecimento da realidade como
pólo inalcançável, bem como a afirmação simultânea da arte como pólo
independente dessa mesma realidade, correspondem à falência da representação na
estética ocidental que caracteriza o pós-modernismo. A caracterização do texto
de Borges como simulacro mostra o reconhecimento por Deleuze, já em 1968, de
uma característica própria da obra deste escritor que faz dele, antes do mais
neste traço que consideramos essencial, um precursor do pós-modernismo.
A alguns anos de distância, em 1980, Deleuze, escrevendo então de
parceria com Guattari, continua a explorar a característica não-mimética da
literatura e propõe a imagem do rizoma para caracterizar quer o texto
literário, quer o texto musical moderno: “Le système-radicelle, ou racine
fasciculée, est la seconde figure du livre, dont notre modernité se réclame
volontiers.”[6] O livro-radícula distingue-se do
livro-raiz: “Un premier type de livre, c’est le livre-racine. L’arbre est déjà l’image du monde, ou bien
la racine est l’image de l’arbre-monde. C’est le livre classique, comme belle
interiorité organique, signifiante et subjective (les strates du livre). Le
livre imite le monde, comme l’art, la nature”.[7]
Diferentemente o livro-radícula: “le livre n’est pas image du monde, suivant
une croyance enracinée. Il fait rhizome avec le monde, il y a évolution
aparallèle du livre et du monde, le livre assure la déterritoralisation du
monde”.[8]
O conceito de mimésis, que serve ainda para o livro-raiz, não é suficiente para
o livro-radícula, ou livro-rizoma: “Le mimétisme est un très mauvais concept,
dépendant d’une logique binaire, pour des phenomènes d’une tout autre nature.”[9]
Nesta definição de escrita, a literatura e a música ficam próximas: “Écrire,
faire rhizome, accroître son territoire par déterritorialisation, étendre la
ligne de fuite jusqu’au point où elle couvre tout le plan de consistance en une
machine abstraite.”[10]
Os princípios que regem o desenvolvimento do rizoma e o distinguem da árvore do
conhecimento (que não deverá ser confundida com a árvore bíblica do
conhecimento), são os princípios de heterogeneidade e de conexão: “n’importe
quel point d’un rhizome peut être connecté avec n’importe quel autre, et doit
l’être. C’est très différent de l’arbre ou de la racine qui fixent un point, un
ordre.”[11]
Também a música é comparável ao rizoma: “La musique n’a pas cessé de faire
passer ses lignes de fuite, comme autant de ‘multiplicités à transformation’,
même en renversant ses propres codes qui la structurent ou l’arbrifient; c’est
pourquoi la forme musicale, jusque dans ses ruptures et proliférations, est
comparable à la mauvaise herbe, un rhizome.”[12]
Encontramos a mesma imagética do reino vegetal em Pierre Boulez para
descrever a música:[13] “Vous la plantez dans un mauvais terreau,
et tout d’un coup, elle se met à proliférer comme de la mauvaise herbe.” Esta descrição da música como proliferação
corresponde à concepção de melodia que encontramos em Bernstein: o que
distingue a melodia de uma simples canção (“tune”), que é acabada, fechada em
si mesma, repetitiva, é a existência de um tema (“theme”) a desenvolver.[14]
A música é aqui (na transformação da desordem, do caos em ordem, em cosmos) bem
sucedida onde a literatura falha, também porque está livre da obrigação e
responsabilidade da representação. Na Literatura, imitação é geralmente
sinónimo de mimésis, cópia, representação, e tem a ver com o conceito
filosófico de identidade.[15]
Na Música, que não é mimética, a imitação significa desenvolvimento, variação,
e é elemento constitutivo do cânone, contraponto, fuga. Não representando o
mundo real, ela é sinónimo de vida como movimento, mudança, evolução,
crescimento.[16] A
imitação literária a que costumamos chamar mimésis facilmente se torna
limitadora e até mesmo entorpecedora, ao passo que a imitação musical, sinónimo
de desenvolvimento, é libertadora, ou melhor ainda, é a própria liberdade
enquanto vida, movimento. [17]
E podemos agora fazer a ponte com o texto de Borges que nos propomos
analisar. Borges é frequentemente
entendido como um autor demasiado intelectual, cerebral, seco, os seus escritos
como confusos, complexos, intrigantes. Será meu propósito mostrar, neste
ensaio, a qualidade musical do texto borgesiano, com as implicações que atrás
foram expostas, exactamente através dessa grande complexidade sinfónica que o caracteriza. A minha proposta de
leitura vai no sentido de entender a intertextualidade que é seu traço
primeiro, sempreviva e autêntica “chambre d’échos”,[18]
como presença de várias vozes, ou melhor ainda:
vários temas e variações na sua escrita. Tentarei escutar essas várias
vozes e, ousarei mesmo dizê-lo agora, melodias nela presentes, fazendo jus ao
Borges lírico, que na Arte Poética exprime o desejo de dar à sua escrita
uma qualidade musical. [19]
[1]
Cf. Georges Teyssot, “Specular relation”, in: Assemblage, Nº 20, 1993, p. 79: “Through (…) a nomadism that
inserts itself between dichotomies, thought comes in some measure to free
itself from the ‘fundamental’ notion of origin, by which traditionally the copy
follows the model and the type the archetype.”
[2]
Cf. Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris
1968, p. 1.
[3]
Cf. id. ibid., p. 1: “la pensée moderne naît de la faillite de la représentation, comme de la perte des
identités, et de la découverte de toutes les forces qui agissent sous la
représentation de l’identique.”
[4]
Cf. id. ibid., p. 1: “Le monde moderne est celui des simulacres”.
[5]
Cf. Fredric Jameson, “Post-modernism, or The Cultural Logic of Late
Capitalism”, in: NLR, 146, July/August 1984, p. 89:
“’simulacrum’ – the identical copy for which no original has ever existed.”
[6] Cf. Gilles Deleuze / Félix Guattari,
“Rhizome”, in: Capitalisme et
Schizophrénie. Mille Plateaux. Les Éditions de Minuit, Paris 1980,
p. 12.
[7] Cf. id. ibid., p. 11.
[8]
Cf. id. ibid., p. 18.
[9]
Cf. id. ibid.
[10]
Cf. id., ibid., p. 19.
[11]
Cf. id. ibid., p. 13.
[12]
Cf. id. ibid., p. 19.
[13]
Cf. id. ibid.
[14]
Cf. Leonard Bernstein, Young People’s
Concerts, “What is a Melody?”, 21 de Dezembro de 1962.
[15] Cf. Gilles Deleuze, Différence et Répétition, p. 1: “O primado da identidade (...)
define o mundo da representação.” Mas também: “o pensamento moderno nasce do
falhanço da representação, como da perda das identidades (...) o mundo moderno
é o mundo dos simulacros.”
[16]
Cf. Leonard Bernstein, “Young People’s Concerts”, a 13 de Dezembro de 1958,
“What Makes Music Symphonic?”
[17]
Em 1997 Deleuze delimita Literatura e escrita do conceito de mimésis nos
seguintes termos: “To write is certainly not to impose a form (of expression)
on the matter of lived experience. Literature rather moves in the direction of
the ill-formed or the incomplete (…) Writing is a question of becoming, always
incomplete (…) To become is not to attain a form (identification, imitation,
Mimesis) but to find the zone of proximity, indiscernibility, or
undifferentiation (…)”. In: G.D., “Literature and Life”, Critical Inquiry
23, Winter 1997, p. 225.
[18]
Cf. Rimbaud e Roland Barthes.
[19] Cf. a este respeito ainda o cap.
“Variaciones del mar”, de Vicente Cervera Salinas, in: La poesia de Jorge
Luis Borges: Historia de una eternidad. Univ. de Murcia, 1992.