Tal como afirmámos no início, o chapéu simboliza o pensamento, o espírito e
a imaginação, esconde um espaço interior da personagem que o texto revela: “Atendendo a que a sua cabeça
repousara no largo, tranquilo e silencioso espaço marítimo, o bruá-á do eléctrico
superlotado não a incomodou” (p. 15). Esse desvendar do texto, usando sempre
uma serena racionalidade, inaugura-se e tem a sua razão de ser na “precisa
claridade da manhã” (p. 14) e perdura mesmo através da nortada da tarde. A
personagem, espelho da autora/narradora, está protegida pela nítida atmosfera
abrangente: “Havia na manhã clara e lavada como que uma acumulação de
claridades. A luz límpida que caía a prumo sobre a vasta extensão líquida do
mar era reflectida de novo para o céu dum azul brando que nem a mácula duma
nuvem turvava” (p. 8). O ruído circundante e eventuais pensamentos deprimentes
ficam longe: “’Vamos arrefecendo ao longo da vida mesmo antes que a morte
chegue.’ Mas esse pensamento não teve para ela qualquer característica
deprimente, ocupava uma zona longínqua, irónica e quase risonha da sua alma”
(p. 14).
Dois sentimentos caracterizam
o momento existencial da mulher do chapéu de palha, cujo percurso físico e
interior acompanhamos, seguindo fascinados a descrição magistral de Graça Pina
de Morais, em que não há nem uma só palavra supérflua: “A mulher era
absolutamente banal mas sob a aba caída do seu feio chapéu apercebiam-se uns
olhos brilhantes e sonhadores, olhar aparentemente distraído mas que tudo
destacava até ao mais ínfimo pormenor” (p. 17). Esta natureza de artista que observa e transfigura revela-se aqui por debaixo
do chapéu de palha, que acaba por se transformar em símbolo da imaginação e da
escrita. Dois sentimentos, aparentemente contraditórios, marcam este instante da
existência que preside à escrita do texto. Em primeiro lugar, a comunhão com os outros: “Experimentava nesse dia um sentimento de
profunda fraternidade em relação aos humanos como ela. Isto não quer dizer que
a mulher se sentisse feliz ou mesmo infeliz, não passava por assim dizer de
mais um elemento do claro mundo que a cercava” (p. 10-1). Este sentimento
caracterizará o desfecho do conto, ligando-se ao símbolo central do chapéu de
palha; o segundo sentimento, a solidão, pode aqui coincidir com o primeiro: “A sua solidão era-lhe cara,
aliás não se sentia só, sentia-se sempre acompanhada dum Deus em que não
acreditava” (p. 24).
E será a este Deus, mesmo
inexistente, a este horizonte de sentido que se dirigem as duas perguntas que
faz o texto de Graça Pina de Morais, uma por cada metade do conto. A primeira
surge muito sucintamente formulada: “O que poderá ter para mim ainda um
sentido?” (p. 17); mas a atmosfera circundante, pela sua perfeita
transparência, não dá qualquer resposta, ou nem admite a pergunta: “Pensou e
essa pergunta ficou como que suspensa e não lhe deu continuação” (p. 17). Assim, a interrogação transitará, reforçada, para a segunda metade do conto, à
medida que a agressão da nortada transforma o calmo mundo matinal num universo
hostil.
Em 1991, Fátima Maldonado chamou à obra de Graça Pina de Morais - no “Posfácio” à
reedição do romance A Origem, de 1985 - “máquina interrogativa”
(utilizando uma expressão de Herberto Helder) e “poderosa máquina de silêncio”[1].
Segundo esta crítica, o texto da autora “não fornece esclarecimentos
nem acrescenta clarificações. Apenas nos expõe à mira da alma contribuindo
assim para que ela se nos torne ainda mais estranha”[2].
Essa capacidade de
interrogação, esse pensamento crítico radical perdurará neste último texto publicado de Graça Pina de Morais. A personagem continua a pensar durante a
segunda parte do conto “O que é que na realidade poderia ainda interessá-la e
ter um sentido para ela? Cumprir uma missão importante.” A nortada desorganiza
tudo no texto; é conhecido o poder transformador e revolucionário do vento como
símbolo na literatura[3],
e também aqui, já que o pensamento, que ficara suspenso na claridade cristalina
da manhã, se formula agora com toda a sua audácia: “Levar a uma pessoa eminente
e que residisse no outro lado da terra uma carta necessária e de cujo sentido
dependesse a vida de milhares de seres humanos. Essa mensagem teria de ser
levada em circunstâncias inacreditavelmente perigosas e num constante risco de
vida, de forma que o seu sopro vital estivesse sempre em suspenso” (p. 30-1).
É como se a própria vida interrogasse a personagem-máscara da autora, que lhe tem de dar uma resposta.
Esta capacidade de
interrogação radical da mulher do chapéu de palha caracteriza o ofício da escrita, em flagrante contraste com o
uso instrumentalizado da linguagem, como nos cartazes revolucionários e no
discurso do aldrabão de feira, vendedor de “banha da cobra”, a anunciar um
xarope panaceia para todos os males. “’Devia ter comprado o remédio’, reflectiu
com amargura. ‘Talvez que o xarope curasse corações cansados de viver até às
pontas dos cabelos’” (p. 38). Assim, queixa-se de cansaço como se estivesse numa
demanda que se confunde com a própria existência, uma demanda sem Graal, e que mesmo assim prossegue: “Levar uma carta
a um poderoso personagem... Mas quem é na terra poderoso e eminente? Ninguém.
Sobre a terra não existia tal personagem” (p. 34).
Imagina-se então a “atravessar
a atmosfera com a tal carta de transcendente importância” (p. 34). O texto ecoa
um passo do romance Jerónimo e Eulália:
“Nos seus passeios ociosos, nos quais aliás se sentia perfeitamente ocupado,
como se um ente invisível o tivesse incumbido de transmitir uma fantástica
mensagem a um povo inexistente”[4],
mostrando como é antiga a preocupação da autora com este tema. Já que a
personagem a quem quer dirigir a pergunta não existe na terra, ela imagina-se a
percorrer o universo: “Via-se montada numa vassoura como uma bruxa, com o seu
feio e extravagante chapéu de palha, de planeta em planeta, de estrela em
estrela, levando talvez a esse ser em que não acreditava a urgente mensagem” (p. 36). A carta de transcendente
importância, destinada ao tal ser transcendente que talvez não exista, continha
uma única e simples pergunta: “’Qual o motivo por que numa vida tão curta,
irrisória e cruel, os seres humanos ainda conseguiam energias anímicas para se
brutalizarem uns aos outros?” (p. 35).
Quando li o conto de Graça
Pina de Morais pela primeira vez, em Agosto de 2008, pareceu-me claro estar perante uma reescrita da parábola de Kafka “Eine
kaiserliche Botschaft”, “Uma Mensagem Imperial”, de 1917, publicada em 1919 na
revista judaica Selbstwehr e em 1920
na colectânea Ein Landarzt,
integrando a obra publicada postumamente Beim
Bau der Chinesischen Mauer. Nesse texto, extraordinariamente curto e denso,
o imperador moribundo envia uma mensagem ao súbdito mais longínquo. Apesar da sua força e do seu poder, o mensageiro não consegue chegar, acabando o destinatário por sonhar a mensagem, sentado à janela quando a tardinha cai. O que impede o mensageiro
de chegar é a
multiplicação dos obstáculos à medida que os vai ultrapassando, vendo
no final diante de si a cidade “completamente atulhada nos seus resíduos”.
Disto parece ser eco o texto da nossa autora: “Mas, o universo era infinito!
Poderia alguém imaginar uma parede ou refúgio que constituísse o fim do
universo?” (p. 36).
Mas no Outono de 2009, quando
pensava ter
ideias arrumadas quanto à intertextualidade com Kafka, um novo dado veio
desarrumar o meu esquema de trabalho: li on-line
a entrevista que Graça Pina de Morais dera a Manuel Poppe para um programa de
televisão, mais de uma hora de filme, que nunca chegou a ser transmitido. Este
depoimento encontra-se publicado no livro de Manuel Poppe Memórias, José Régio e Outros Escritores[5].
Graça Pina de Morais declara a dada altura: “ainda na Quinta, em Mesão Frio, a
minha avó deu-me a mim e à minha irmã o Miguel
Strogoff. Esse destemido correio do Czar que leva uma carta através de
perigos incomensuráveis encheu-me a imaginação e muitas vezes disse à minha
irmã ‘eu sou Miguel Strogoff, o correio do Czar’. Como ele era destemida e
amava já profundamente a aventura”[6]. Mais tarde verifiquei que havia uma outra referência a esta fonte no
texto de A Origem, quando a narradora
descreve as leituras de Maria Clara e do sobrinho João: “Ambos seguiram com o
mesmo entusiasmo inocente a viagem de Miguel Strogoff através da Rússia, e esta
simples frase ‘Miguel Strogoff, o Correio do Czar’, bastava para entusiasmar a
mulher e a criança. Assim viviam os dois numa espécie de sonho, num mundo
irreal, mas que para eles era inteiramente lógico”[7].
Portanto, não era só a
intertextualidade deste conto com a parábola de Kafka – que acredito também
existir, como segunda influência –, mas ainda a intertextualidade da própria
parábola do autor checo que estava em jogo. O texto de Kafka foi escrito quatro meses
após a morte do Imperador austro-húngaro Franz Joseph I, e essa é sem dúvida
uma das referências do intemporal texto kafkiano ao tempo histórico. A segunda
referência é que “Kaiserliche Botschaft” foi também o nome dado pelo Chanceler
Bismarck, a 17 de Novembro de 1881, a uma mensagem do Imperador Wilhelm I que
contemplava uma série de medidas sociais relativas a acidentes, doença e
velhice dos trabalhadores. Esta mensagem imperial visava conter os crescentes
protestos dos operários ameaçados de pobreza e exploração pelo rápido
crescimento técnico e económico.
Depois de ler o conto de Graça Pina de Morais (tais
são as aventuras da leitura e das intertextualidades), gostaria de sugerir que
Kafka talvez tenha lido também Miguel Strogoff de Jules Verne – a parábola de Kafka data de 1917 e o romance de
Verne de 1876.
Miguel Strogoff, o correio do Czar, tem como missão transportar
uma carta que este lhe entregara para levar através da larga superfície da
Rússia ao irmão, o Grão-Duque, avisando-o do perigo que representava o chefe
dos Tártaros. Strogoff é um homem de 30 anos, forte e inteligente, infatigável,
corajoso – a verdadeira coragem, aquela que não conhece a cólera – e sabe a
mensagem da carta de cor, caso precise de se desfazer da carta para ela não ir
parar às mãos do inimigo. A caracterização do correio do Czar e do mensageiro
imperial coincidem assim em muitos pontos.
Mas se a relação de A Mulher do Chapéu de Palha com Verne se
pode dar como certa por testemunho directo da autora, parece-me possível
concluir que ela conheceria igualmente a parábola de Kafka. Afinal, a missão de
Miguel Strogoff é bem concreta, tal como o destinatário da carta, e o texto de
Verne é um romance de aventuras destinado à juventude. Ora, o conteúdo da
reescrita de Graça Pina de Morais é mais moderno e problemático: ela interroga,
tal como vimos atrás, o sentido da vida num universo vazio: “A mensagem era
inútil, a carta fora esfarrapada pelo vento norte e para lá do universo ninguém
existia a não ser um vazio hostil, inconsciente e inútil, tão inútil como a sua
incumbência, tão infrutífero como todos os pensamentos que há anos ocupavam o
seu espírito” (p. 37).
(a continuar)
Ana Maria Delgado
( Universidade de Leipzig, Instituto Camões, CLEPUL)
Texto publicado na revista Colóquio Letras nº 184, Setembro/Dezembro 2013, p. 170-180
[1]
Cf. Fátima Maldonado, “Uma máquina de silêncio” , posfácio a Graça Pina de
Morais, A Origem, Lisboa, Antígona,
1991, p. 249-251.
[3] Basta pensar em “Ode to the
West Wind”, de Shelley.
[4] Graça Pina de Morais, Jerónimo e
Eulália (1969), Lisboa, Antígona, 2000, p. 163.
[5]
Manuel Poppe, ob. cit.
[6] Idem, ibid., p. 140.
[7]
Graça Pina de Morais, A Origem, ed. cit., p. 102-3.