segunda-feira, 10 de março de 2014

"A Mulher do Chapéu de Palha" de Graça Pina de Morais: uma demanda sem Graal II

 
 
 
 
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       Tal como afirmámos no início, o chapéu simboliza o pensamento, o espírito e a imaginação, esconde um espaço interior da personagem que o texto revela: “Atendendo a que a sua cabeça repousara no largo, tranquilo e silencioso espaço marítimo, o bruá-á do eléctrico superlotado não a incomodou” (p. 15). Esse desvendar do texto, usando sempre uma serena racionalidade, inaugura-se e tem a sua razão de ser na “precisa claridade da manhã” (p. 14) e perdura mesmo através da nortada da tarde. A personagem, espelho da autora/narradora, está protegida pela nítida atmosfera abrangente: “Havia na manhã clara e lavada como que uma acumulação de claridades. A luz límpida que caía a prumo sobre a vasta extensão líquida do mar era reflectida de novo para o céu dum azul brando que nem a mácula duma nuvem turvava” (p. 8). O ruído circundante e eventuais pensamentos deprimentes ficam longe: “’Vamos arrefecendo ao longo da vida mesmo antes que a morte chegue.’ Mas esse pensamento não teve para ela qualquer característica deprimente, ocupava uma zona longínqua, irónica e quase risonha da sua alma” (p. 14).

       Dois sentimentos caracterizam o momento existencial da mulher do chapéu de palha, cujo percurso físico e interior acompanhamos, seguindo fascinados a descrição magistral de Graça Pina de Morais, em que não há nem uma só palavra supérflua: “A mulher era absolutamente banal mas sob a aba caída do seu feio chapéu apercebiam-se uns olhos brilhantes e sonhadores, olhar aparentemente distraído mas que tudo destacava até ao mais ínfimo pormenor” (p. 17). Esta natureza de artista que observa e transfigura revela-se aqui por debaixo do chapéu de palha, que acaba por se transformar em símbolo da imaginação e da escrita. Dois sentimentos, aparentemente contraditórios, marcam este instante da existência que preside à escrita do texto. Em primeiro lugar, a comunhão com os outros: “Experimentava nesse dia um sentimento de profunda fraternidade em relação aos humanos como ela. Isto não quer dizer que a mulher se sentisse feliz ou mesmo infeliz, não passava por assim dizer de mais um elemento do claro mundo que a cercava” (p. 10-1). Este sentimento caracterizará o desfecho do conto, ligando-se ao símbolo central do chapéu de palha; o segundo sentimento, a solidão, pode aqui coincidir com o primeiro: “A sua solidão era-lhe cara, aliás não se sentia só, sentia-se sempre acompanhada dum Deus em que não acreditava” (p. 24).

       E será a este Deus, mesmo inexistente, a este horizonte de sentido que se dirigem as duas perguntas que faz o texto de Graça Pina de Morais, uma por cada metade do conto. A primeira surge muito sucintamente formulada: “O que poderá ter para mim ainda um sentido?” (p. 17); mas a atmosfera circundante, pela sua perfeita transparência, não dá qualquer resposta, ou nem admite a pergunta: “Pensou e essa pergunta ficou como que suspensa e não lhe deu continuação” (p. 17). Assim, a interrogação transitará, reforçada, para a segunda metade do conto, à medida que a agressão da nortada transforma o calmo mundo matinal num universo hostil.
 
       Em 1991, Fátima Maldonado chamou à obra de Graça Pina de Morais -  no “Posfácio” à reedição do romance A Origem, de 1985 - “máquina interrogativa” (utilizando uma expressão de Herberto Helder) e “poderosa máquina de silêncio”[1]. Segundo esta crítica, o texto da autora “não fornece esclarecimentos nem acrescenta clarificações. Apenas nos expõe à mira da alma contribuindo assim para que ela se nos torne ainda mais estranha”[2].

       Essa capacidade de interrogação, esse pensamento crítico radical perdurará neste último texto publicado de Graça Pina de Morais. A personagem continua a pensar durante a segunda parte do conto “O que é que na realidade poderia ainda interessá-la e ter um sentido para ela? Cumprir uma missão importante.” A nortada desorganiza tudo no texto; é conhecido o poder transformador e revolucionário do vento como símbolo na literatura[3], e também aqui, já que o pensamento, que ficara suspenso na claridade cristalina da manhã, se formula agora com toda a sua audácia: “Levar a uma pessoa eminente e que residisse no outro lado da terra uma carta necessária e de cujo sentido dependesse a vida de milhares de seres humanos. Essa mensagem teria de ser levada em circunstâncias inacreditavelmente perigosas e num constante risco de vida, de forma que o seu sopro vital estivesse sempre em suspenso” (p. 30-1). É como se a própria vida interrogasse a personagem-máscara da autora, que lhe tem de dar uma resposta.
 
       Esta capacidade de interrogação radical da mulher do chapéu de palha caracteriza o ofício da escrita, em flagrante contraste com o uso instrumentalizado da linguagem, como nos cartazes revolucionários e no discurso do aldrabão de feira, vendedor de “banha da cobra”, a anunciar um xarope panaceia para todos os males. “’Devia ter comprado o remédio’, reflectiu com amargura. ‘Talvez que o xarope curasse corações cansados de viver até às pontas dos cabelos’” (p. 38). Assim, queixa-se de cansaço como se estivesse numa demanda que se confunde com a própria existência, uma demanda sem Graal, e que mesmo assim prossegue: “Levar uma carta a um poderoso personagem... Mas quem é na terra poderoso e eminente? Ninguém. Sobre a terra não existia tal personagem” (p. 34).

       Imagina-se então a “atravessar a atmosfera com a tal carta de transcendente importância” (p. 34). O texto ecoa um passo do romance Jerónimo e Eulália: “Nos seus passeios ociosos, nos quais aliás se sentia perfeitamente ocupado, como se um ente invisível o tivesse incumbido de transmitir uma fantástica mensagem a um povo inexistente”[4], mostrando como é antiga a preocupação da autora com este tema. Já que a personagem a quem quer dirigir a pergunta não existe na terra, ela imagina-se a percorrer o universo: “Via-se montada numa vassoura como uma bruxa, com o seu feio e extravagante chapéu de palha, de planeta em planeta, de estrela em estrela, levando talvez a esse ser em que não acreditava a urgente mensagem” (p. 36). A carta de transcendente importância, destinada ao tal ser transcendente que talvez não exista, continha uma única e simples pergunta: “’Qual o motivo por que numa vida tão curta, irrisória e cruel, os seres humanos ainda conseguiam energias anímicas para se brutalizarem uns aos outros?” (p. 35).

       Quando li o conto de Graça Pina de Morais pela primeira vez, em Agosto de 2008, pareceu-me claro estar perante uma reescrita da parábola de Kafka “Eine kaiserliche Botschaft”, “Uma Mensagem Imperial”, de 1917, publicada em 1919 na revista judaica Selbstwehr e em 1920 na colectânea Ein Landarzt, integrando a obra publicada postumamente Beim Bau der Chinesischen Mauer. Nesse texto, extraordinariamente curto e denso, o imperador moribundo envia uma mensagem ao súbdito mais longínquo. Apesar da sua força e do seu poder, o mensageiro não consegue chegar, acabando o destinatário por sonhar a mensagem, sentado à janela quando a tardinha cai. O que impede o mensageiro de chegar é a multiplicação dos obstáculos à medida que os vai ultrapassando, vendo no final diante de si a cidade “completamente atulhada nos seus resíduos”. Disto parece ser eco o texto da nossa autora: “Mas, o universo era infinito! Poderia alguém imaginar uma parede ou refúgio que constituísse o fim do universo?” (p. 36).

       Mas no Outono de 2009, quando pensava ter ideias arrumadas quanto à intertextualidade com Kafka, um novo dado veio desarrumar o meu esquema de trabalho: li on-line a entrevista que Graça Pina de Morais dera a Manuel Poppe para um programa de televisão, mais de uma hora de filme, que nunca chegou a ser transmitido. Este depoimento encontra-se publicado no livro de Manuel Poppe Memórias, José Régio e Outros Escritores[5]. Graça Pina de Morais declara a dada altura: “ainda na Quinta, em Mesão Frio, a minha avó deu-me a mim e à minha irmã o Miguel Strogoff. Esse destemido correio do Czar que leva uma carta através de perigos incomensuráveis encheu-me a imaginação e muitas vezes disse à minha irmã ‘eu sou Miguel Strogoff, o correio do Czar’. Como ele era destemida e amava já profundamente a aventura”[6]. Mais tarde verifiquei que havia uma outra referência a esta fonte no texto de A Origem, quando a narradora descreve as leituras de Maria Clara e do sobrinho João: “Ambos seguiram com o mesmo entusiasmo inocente a viagem de Miguel Strogoff através da Rússia, e esta simples frase ‘Miguel Strogoff, o Correio do Czar’, bastava para entusiasmar a mulher e a criança. Assim viviam os dois numa espécie de sonho, num mundo irreal, mas que para eles era inteiramente lógico”[7].

       Portanto, não era só a intertextualidade deste conto com a parábola de Kafka – que acredito também existir, como segunda influência –, mas ainda a intertextualidade da própria parábola do autor checo que estava em jogo. O texto de Kafka foi escrito quatro meses após a morte do Imperador austro-húngaro Franz Joseph I, e essa é sem dúvida uma das referências do intemporal texto kafkiano ao tempo histórico. A segunda referência é que “Kaiserliche Botschaft” foi também o nome dado pelo Chanceler Bismarck, a 17 de Novembro de 1881, a uma mensagem do Imperador Wilhelm I que contemplava uma série de medidas sociais relativas a acidentes, doença e velhice dos trabalhadores. Esta mensagem imperial visava conter os crescentes protestos dos operários ameaçados de pobreza e exploração pelo rápido crescimento técnico e económico.
 
       Depois de ler o conto de Graça Pina de Morais (tais são as aventuras da leitura e das intertextualidades), gostaria de sugerir que Kafka talvez tenha lido também Miguel Strogoff de Jules Verne – a parábola de Kafka data de 1917 e o romance de Verne de 1876.
 
       Miguel Strogoff, o correio do Czar, tem como missão transportar uma carta que este lhe entregara para levar através da larga superfície da Rússia ao irmão, o Grão-Duque, avisando-o do perigo que representava o chefe dos Tártaros. Strogoff é um homem de 30 anos, forte e inteligente, infatigável, corajoso – a verdadeira coragem, aquela que não conhece a cólera – e sabe a mensagem da carta de cor, caso precise de se desfazer da carta para ela não ir parar às mãos do inimigo. A caracterização do correio do Czar e do mensageiro imperial coincidem assim em muitos pontos.

       Mas se a relação de A Mulher do Chapéu de Palha com Verne se pode dar como certa por testemunho directo da autora, parece-me possível concluir que ela conheceria igualmente a parábola de Kafka. Afinal, a missão de Miguel Strogoff é bem concreta, tal como o destinatário da carta, e o texto de Verne é um romance de aventuras destinado à juventude. Ora, o conteúdo da reescrita de Graça Pina de Morais é mais moderno e problemático: ela interroga, tal como vimos atrás, o sentido da vida num universo vazio: “A mensagem era inútil, a carta fora esfarrapada pelo vento norte e para lá do universo ninguém existia a não ser um vazio hostil, inconsciente e inútil, tão inútil como a sua incumbência, tão infrutífero como todos os pensamentos que há anos ocupavam o seu espírito” (p. 37).

(a continuar)
 
 
Ana Maria Delgado
( Universidade de Leipzig, Instituto Camões, CLEPUL)
Texto publicado na revista Colóquio Letras nº 184, Setembro/Dezembro 2013, p. 170-180

[1] Cf. Fátima Maldonado, “Uma máquina de silêncio” , posfácio a Graça Pina de Morais, A Origem, Lisboa, Antígona, 1991, p. 249-251.
[2] Idem, ibid., p. 251.
[3] Basta pensar em “Ode to the West Wind”, de Shelley.
[4] Graça Pina de Morais, Jerónimo e Eulália (1969), Lisboa, Antígona, 2000, p. 163.
[5] Manuel Poppe, ob. cit.
[6] Idem, ibid., p. 140.
[7] Graça Pina de Morais, A Origem, ed. cit., p. 102-3.