segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Ciclo "Sur l´écran noir de mes nuits blanches" (4)







A música ambivalente de Spellbound




Spellbound, em português A Casa Encantada, é um dos filmes de Alfred Hitchcock que tomam como ponto de referência a psicanálise, e o meu preferido, mesmo reconhecendo a superioridade formal de Vertigo, A Mulher que Viveu Duas Vezes. Grande parte do fascínio que sobre mim exerce este filme provém da sua banda sonora, da autoria do compositor americano de origem húngara Miklós Rózsa. Rózsa ganhou três Óscares pela melhor composição original, por Spellbound em 1945, A Double Life em 1948, e Ben-Hur em 1959, para além de ter recebido dez nomeações para o mesmo troféu.



Nascido em Budapeste em 1907 e falecido em Los Angeles em 1995, Miklós Rózsa desde cedo seguiu o exemplo de compositores de vanguarda seus conterrâneos, como Béla Bartók e Zoltán Kodály, anotando nas aldeias à volta de Budapeste canções populares húngaras que viriam a influenciar decisivamente a sua obra. Começa a estudar violino com cinco anos de idade, e em 1926 estuda música no Conservatório de Leipzig, onde tem como professor de composição Hermann Grabner, discípulo de Max Reger. A formação académica alemã, que se reflecte na predilecção pelo contraponto e fuga, liga-se até ao fim da sua carreira com o sentido melódico herdado da música popular húngara. Este sentido melódico canaliza igualmente outras influências na obra de Rózsa, tais como Richard Strauss, Claude Debussy e Maurice Ravel.


O Óscar recebido pela melhor composição granjeou a Rózsa o ressentimento de Hitchcock, já que Spellbound não obteve o galardão para melhor filme ou melhor realizador (no que se segue utilizarei o capítulo dedicado à música de Spellbound no livro de Jack Sullivan, Hitchcock's Music, New Haven and London: Yale University Press, 2006). Rózsa rapidamente compôs o tema principal, depois de ter visto o filme em Pasadena, numa sessão em que as imagens foram acompanhadas por música de outros filmes, uma prática estranha, mas comum na época. A elegância e sofisticação do tema de Spellbound resulta da capacidade perfeita de correspondência com a fotografia de George Barne, elemento crucial para a solução do enigma da história narrada no filme. A música de Rózsa, tal como a fotografia de Barne, consegue dar o contraste entre um mundo de escuridão e sombras e um outro mundo de brancura clínica. A música é simultaneamente claustrofóbica e sinistra, elevada e transcendente, combinando loucura e romance no seu expoente máximo. Rózsa soube interpretar na perfeição a noção de Hitchcock de que pouco separa a paixão e o terror.

Assim, podemos ouvir no excerto que se segue de Spellbound - um momento de cinema inesquecível - o instante no filme em que os dois temas surgem intimamente ligados, o tema da loucura nascendo do tema da paixão, como duas versões do mesmo tema, uma lírica e outra sinistra, correspondendo à predilecção de Hitchcock pelos duplos. O tema de amor, absolutamente resplandecente, e o motivo ameaçador tocado no teremim são, na verdade, variações um do outro.

O teremim, usado pela primeira vez num filme em Spellbound, é um instrumento musical electromagnético, cujos sons são produzidos por movimentos da mão aproximando-se ou afastando-se do campo magnético. É um dos poucos instrumentos musicais que os músicos tocam sem contacto corporal com o instrumento. Foi inventado em 1919 pelo professor de Física russo L. S. Termen (1896-1993), que mais tarde adoptou o nome ocidental Leon Theremin. O teremim foi apresentado em 1921 em Moscovo ao 8º Congresso de Electrotecnia da União Soviética. Em 1928, Theremin conseguiu uma patente para o instrumento nos EUA. Em 1929 foi fabricado em Leipzig um "Aetherophon", uma outra designação para o teremim.

O enorme sucesso da banda sonora de Spellbound deve-se, em grande parte, à utilização deste novo instrumento musical. O teremim parece um instrumento mágico, quer pela maneira como o som é produzido, quer pela qualidade misteriosa do som (o "mágico" de Spellbound é Stanley Hoffmann, verdadeiro mago do instrumento, que continuou a tocar em muitos outros filmes). Não é magia, claro, apenas o resultado de um campo magnético, mas o teremim era o instrumento perfeito para o primeiro encontro entre ciência (a psicanálise) e música a que assistimos neste filme de Alfred Hitchcock. Nos anos 1920 e 1930, o teremim era considerado um instrumento revolucionário, que poderia mesmo vir a substituir o piano e o disco. O produtor David Selznick ficou entusiasmado com o ideia de usar o teremim e chamou a este tema do filme "white theme", "tema branco", seguindo a associação da cor branca ao terror que se encontra na cultura americana desde Melville (cf. o capítulo de Moby-Dick "Whiteness of the Whale", "A brancura da baleia").

O tema musical ambivalente de Spellbound espelha a ambiguidade sexual: a cena citada em baixo, o primeiro beijo dos protagonistas, com as portas abrindo-se para o infinito, a afirmação mais dramática do tema lírico, é imediatamente seguida pelo tema tocado no teremim, quando John começa a ver linhas paralelas no roupão de Constance. A cena repete-se mais tarde na cena em casa de Alex, com a música a sublinhar mais uma vez o padrão de atracção e repulsa.


A música acompanha as imagens praticamente do princípio ao fim do filme. E se Spellbound não é o primeiro filme de Hitchcock em que a música mostra e revela o mundo da psique humana, é o primeiro a fazer desse mundo psíquico o tema do filme. Jack Sullivan afirma que nunca se tinha ouvido no cinema antes de Spellbound uma tal música de desintegração mental (ambivalente, como vimos, pois corresponde simultaneamente à amnésia e paranóia, e à paixão). O poder da música, conclui Sullivan, reside precisamente nessa unidade, nessa capacidade de se desenvolver em poderosas ideias musicais a partir do pequeno núcleo que contém ambos os registos, o do amor e o do terror.

Como se os dois, amnésia e enamoramento, ligassem o ser humano a uma época arcaica, primordial, que foi esquecida e reprimida e por isso se tornou "unheimlich", estranha, ameaçadora, inquietante (Freud foi na verdade buscar o termo "unheimlich", que designa o que foi outrora familiar, conhecido, íntimo, aos escritos do filósofo romântico alemão Schelling: o prefixo mostra, em língua alemã, a marca do recalcamento ou repressão), como se amnésia e enamoramento tivessem a mesma raiz psíquica, concluo eu...


Fonte principal:


Jack Sullivan, Hitchcock's Music. New Haven and London: Yale University Press, 2006.