(...)
É
uma natureza-morta invulgar, com um invulgar fundo negro e um conjunto invulgar
de objectos, um jarro de água e outro de vinho, um copo meio-cheio, uma pauta
de música, dois cachimbos e uma brida com correntes, como se usavam para domar
cavalos especialmente nervosos. Herbert
interpreta a composição como
uma alegoria da moderação, da temperança e do equilíbrio:
In ethical
categories Torrentius’s “Still Life” is not at all an allegory of Vanitas if my
suppositions are correct, but an allegory of one of the cardinal virtues called
Moderation, Temperantia, Sophrosyne. This interpretation is suggested by the
represented objects: a bridle, the reins of the passions, vessels that give shape
to formless liquids, and also the tumbler only half-filled as if recalling the
praiseworthy custom of the Greeks of mixing wine with water.” [1]
Há
ainda uma inscrição em pauta de música, escrita em holandês, que diz: “What
exists beyond measure (order) / in over-measure (disorder) will meet a bad
end.” Herbert observa, com razão, que esta interpretação do quadro contradiz a
vida do pintor: “A painter with such a scandalous life could not be an
apologist of restraint.”[2]
No final do ensaio, Herbert duvida que
tenha conseguido decifrar o homem incompreensível, o pintor enigmático: “I did
not manage to break the code” [3].
O pintor / narrador interroga-se também sobre o significado do quadro:
“Natureza-Morta com Brida, o seu único quadro conhecido ou sobrevivo, provável
alegoria da temperança, da áurea mediocridade e do domínio sobre os instintos –
tudo o que lhe terá faltado em vida – está em Amesterdão no Rijksmuseum.” (p.
58) [4].
Receio que sejamos induzidos em erro ao
ler o texto da inscrição da pauta de música como a “mensagem” do pintor – esta
inscrição parece na verdade uma apologia da temperança, mas creio que o texto
do pintor deve ler-se no todo da composição.
Vanitas encena oposições, algumas
delas centrais no pensamento ocidental: clássico / barroco, Apolíneo / Dionisíaco,
claro / escuro, frio / quente, vida / morte. Estas oposições binárias culminam
na oposição, proposta pelo fantasma, entre “natureza viva” e “natureza-morta”
(género em pintura). “Natureza viva” parece uma repetição inútil, enquanto
“natureza-morta” parece conter um paradoxo. A designação “natureza-morta”,
“still life”, terá surgido em meados do séc. XVII na Holanda, como contrário de
vrouwenleven, um modelo feminino que precisava de se mexer durante a
pose, enquanto stilleven –
frutos, flores, etc – designava um modelo que permanecia quieto[5].
A expressão em língua portuguesa, natureza-morta, contém um oxímoron, já que a
natureza como sucessão de vida e morte é um processo de vida infinito. O título
do quadro de Torrentius, Natureza-Morta com Brida, é um título
enigmático e incomum, por isso será legítimo questioná-lo para além da sua
lógica normal: é um título paradoxal, pois se a natureza é ou está morta não
precisa de brida, e a brida por seu lado aponta para uma natureza que é, por
natureza, viva, ou não precisaria de brida. A brida é o freio que permite ao
cavaleiro manobrar o cavalo, guiando-o através da boca, em conjunto com as
rédeas, refreando-o se for demasiado depressa. O que não está no quadro, mas sobressai ao ser sugerido pela falta de
cor do fundo profundamente negro e pelo poderoso símbolo de repressão da brida,
é não só o cavalo, mas o prado verde, a velocidade do cavalo e a beleza de um
ser selvagem, indomado, livre [6].
Há
uma semelhança entre Torrentius e o pintor / narrador, como o próprio explica:
pintor enigmático e
clandestino que me faria companhia nesta mansão onde vou expor As Lágrimas
de Eros, que não imaginei num ambiente tão solene. Quando me convidaram a
apresentar toda a série e acentuaram a palavra toda, aceitei sem
hesitar porque me apetecia vir a Paris e passar alguns dias no Louvre. (...)
Agora movia-me também o desafio do contraste entre os meus desenhos
escandalosos, nunca expostos, e a sóbria seriedade do vestíbulo do pequeno
olimpo da avenue d’Iéna (p. 32-3).
Os
quadros de As Lágrimas de Eros são então escandalosos, excessivos – como
escrevia J. C. a Marta no Cavaleiro Andante, “só o excesso me interessa”
[7].
As Lágrimas de Eros é o título do
último livro de Georges Bataille, de 1961, que esteve proibido pela censura em
França. É com certeza uma homenagem de Almeida Faria a Bataille, segundo o
próprio autor [8]. É difícil evitar a comparação do pintor / narrador
de Vanitas com Mário Botas, quer pela ocasião que levou o escritor a
Paris, Avenue d’Iéna, quer pelo conteúdo da exposição As Lágrimas de Eros,
a que o fantasma se refere como “esses seus mistérios da morte e de Diónisos”
(p. 50). Na Entrevista em Georgetown, Almeida Faria refere-se ao seu
trabalho mais recente:
fascina-me mais uma ficção em
que a invenção ou o onírico tenha um papel importante. É o que estou a fazer
mais recentemente, também sobre desenhos do Mário Botas, desta vez
desenhos altamente eróticos, que ele me pediu para guardar porque eram bastante
chocantes até para os próprios pais do pintor e ele quis que eu os guardasse,
que ficasse com eles e escrevesse a partir deles, se isso me interessasse. Para
mim interessa-me, porque os desenhos dele são da natureza dos sonhos, de resto
já Shakespeare dizia que somos feitos da
natureza de que os sonhos são feitos.
Penso
que o escritor se refere ao romance O Conquistador, que se seguiu aos Passeios
do Sonhador Solitário, e que glosa sete desenhos de Mário Botas. Nada mais
natural do que Vanitas retomar essa recordação, mesmo que tal não seja
muito do domínio consciente do autor. A liberdade de expressão é uma
preocupação dos escritores que ainda escreveram num regime dominado pela
censura, e a “literatura de transgressão” certamente um sinónimo dessa
liberdade.
Susan Sontag, ao escrever sobre o tema
da pornografia, diz que tem origem numa sociedade hipócrita e repressiva, que
precisa de uma efusão de pornografia como a um tempo sua expressão lógica e seu
antídoto, e entende a pornografia como fazendo parte de uma crise da imaginação
contemporânea, desde finais do séc. XVIII já não exclusivamente religiosa [9].
Para Sontag, a poesia de transgressão é também conhecimento, parte da consciência
humana: “He who transgresses not only breaks a rule. He goes somewhere that the others are not; and
he knows something the others don’t know.” [10] Não é a pornografia em si que é perigosa: “all
forms of serious art and knowledge – in other words, all forms of truth – are
suspect and dangerous” [11], e o
artista é um explorador de limites: “a freelance explorer of spiritual dangers”
[12]. A sua função não é só, como tradicionalmente, edificar e divertir, mas
também fascinar e cativar: “His principal means of fascinating is to advance
one step further in the dialectic of outrage.” [13]
Em conclusão, Sontag não faz, obviamente, uma defesa da pornografia
em si, mas propõe uma melhor compreensão de uma arte que possa conter elementos
semelhantes à pornografia, incluindo, como argumenta: “the whole body of
contemporary literature insistently focused on extreme situations and
behaviour.” [14]. A literatura contemporânea inclui zonas de
escrita estruturalmente semelhantes ao registo pornográfico, mas não podemos
excluir esse registo do que é humano. O que está em causa é “an infinitely varied register of forms and
tonalities for transposing the human voice into prose narrative” [15], bem como “the complexities of consciousness
itself.”
Talvez o conto Vanitas, na sua procura da justa medida, do
equilíbrio, acabe por funcionar como repressão de um outro texto, mesmo sem
sabermos qual. O quadro de Torrentius seria uma verdadeira mise-en-abîme
de Vanitas, de certo modo também uma natureza-morta com brida. A brida é
a rigorosa moldura lógica dentro da qual está contido o texto como numa
narrativa credível e verosímil: a mesma contenção narrativa do ensaio de Poe,
para quem escrever é, como vimos, um exercício de precisão e cálculo quase
matemático. Vanitas parodia estes processos, imitando-os ou
executando-os aparentemente, mas com uma ironia soberana e grande prazer de
narrar, apontando para além desses processos, para problemas de expressão e de
liberdade na literatura e na arte [16].
E porque devemos seguir o texto mais do que o autor / narrador, como se, de certo
modo, o texto o soubesse melhor do que ele ao texto, muito nesta Vanitas
aponta para fora da brida, da suposta justa medida: a ironia, a construção do
texto que questiona a própria desconstrução, tomando como referência central o
período barroco, cuja mundivisão não pode compreender-se sem algumas das
oposições binárias cuja suposta “hierarquia violenta” a desconstrução quer
eliminar. É também assim que este belo texto pode tratar o tema de “vanitas”,
tradicionalmente ligado à transitoriedade e à morte, sem estar ele mesmo sob o
signo de Saturno e da melancolia – aqui reina outra lógica, a do sonho e da
imaginação, e talvez seja essa a sua medida própria [17].
O que interessa a Almeida Faria é a reflexão metaficcional, a relação entre forma
e conteúdo, primeiro como relação entre o palácio do nº 51 da avenida de Iena e
a colecção de quadros da pinacoteca de Calouste Gulbenkian, e depois como
adequação entre esse mesmo espaço e a exposição As Lágrimas de Eros.
O ensaio de Poe sistematiza critérios
rigorosos para a criação do belo, que resultam exteriores, artificiais,
forçados. O belo ideal, para Poe, nega a morte, anula-a, pretende ultrapassá-la
através da beleza, território privilegiado da imortalidade e transcendência. Vanitas
distancia-se - colocando en-abîme o quadro Natureza-Morta com Brida
- deste conceito de beleza e de criação, contrapondo ao modelo de Poe uma
experiência viva que, para melhor compreendermos, está ausente do quadro – o
seu fundo negro significa isso mesmo, ausência de cor – num outro universo, numa
outra dimensão, num outro registo, sem limitação (sem brida). O contexto no
qual em Vanitas aparece o quadro de Torrentius, Natureza-Morta com Brida,
faz-nos entendê-lo, este sim, como as verdadeiras lágrimas do criador – do
artista – sobre uma beleza / natureza que se sente ser impossível e mesmo
tornar-se inatingível se privada da sua liberdade e sujeita a regras, limites,
critérios de exterioridade [18].
Como diz Susan Stewart, “In
contrast to (the) model body, the body of lived experience is subject to
change, transformation, and most importantly, death”[19]. É assim que a aceitação
da morte resulta, de algum modo, na sua superação – a transformação permanente
da natureza, com os seus ciclos de vida e morte, que é em última análise um processo
de vida.
O texto termina calma e
despreocupadamente num tom de boa disposição com a recordação de um “jongleur
de boulevard” que, em vez de estar quieto como as naturezas-mortas e outros
artistas de rua, é um explorador, um funâmbulo. Este breve flashback narrativo faz terminar o conto regressando ao momento com
que começara a narrativa, quando o narrador revê, antes de adormecer, o que
fizera durante o dia, dando deste modo
ao texto uma circularidade perfeita.
In: Letras Com Vida nº 4, 2º semestre de 2011, Setembro de 2012
Ler o texto completo aqui
Imagem: Jan Simonsz van de Beeck (Torrentius), Natureza-Morta com Brida, Rijksmuseum, Amesterdão
[1] Id. ibid., p. 101.
[2] Id. ibid., p. 105.
[3] Id. ibid., p. 106.
[4] Das várias versões do mito de Eros, salientaria as de Platão, em O
Banquete e Fedro. Neste último diálogo, o homem tocado pelo amor –
Eros – é comparado ao condutor de um carro puxado por dois cavalos, um
representando o equilíbrio e o outro o excesso. É um longo passo do qual destaco apenas o seguinte: “And now they are
close to the beloved, and they see the beloved’s face, flashing like lightning.
As the charioteer sees it, his memory is carried back to the nature of beauty
and again sees it standing together with self-control on a holy pedestal; at
the sight it becomes frightened, and in sudden reverence falls on its back, and
is forced at the same time to pull back the reins so violently as to bring both
horses down on their haunches, the one willingly, because of its lack of
resistence to him, but the horse of excess much against its will.” Cf. Plato, Phaedrus. London :
Penguin, 2005, p. 35.
[5] Cf. Guy Davenport ,
Objects on a Table. Harmonious Disarray in Art and Literature.
Washington, D. C.: Counterpoint, 1998, p. 3-4.
[6] Por alguma razão este quadro me sugere os versos de Lorca do “Romance
Somnámbulo”: “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas. / El
barco sobre la mar / y el caballo en la montaña”, e a frase surrealista que
caracteriza o sonho como “chose de vitesse”; algumas belas páginas de Clarice
Lispector no final de Perto do coração selvagem e em Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres: “Existe um ser que mora dentro de mim como se
fôsse casa dêle, e é. Trata-se de um cavalo prêto e lustroso que apesar de
inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe
puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo
uma doçura primeira de quem não tem medo (...)”; ainda o soneto barroco de Frei
António das Chagas Ao cavalo do Conde de Sabugal, que fazia grandes curvetas,
em que os movimentos do cavalo são comparados à música. Não se trata nestes
exemplos de intertextualidades com Vanitas – 51, avenue d’Iéna, mas sim
de associações e paralelismos com textos e autores que usam um simbolismo
semelhante ao do quadro de Torrentius.
[7] Almeida Faria, Cavaleiro Andante, Lisboa: INCM, 1983, p. 199.
[8] A expressão encontra-se ainda num artigo de Eduardo Lourenço
intitulado “Eros e Eça”, in: O Canto do Signo. Existência e Literatura
(1957-1993). Lisboa: Ed. Presença, 1994, p. 251: “O mais erótico dos nossos
autores é o único que entreviu entre os esplendores, os sortilégios, os
êxtases, as felicidades sensíveis de que o Destino se reveste, a dor, a
angústia, a tristeza, a miséria, em suma, o oceano não menos inesgotável que o
da sensualidade e sua ofuscação, o das lágrimas d´Eros.”
[9] Cf. Susan Sontag, “The Pornographic
Imagination”, in: op. cit., p.
205-233.
[10] Id. ibid., p. 232.
[11] Id. ibid., p. 233.
[12] Id. ibid., p. 212.
[13] Id. ibid.
[14] Id. ibid., p. 209.
[15] Id. ibid.
[16] O problema da obscenidade em literatura está exemplarmente tratado, a
meu ver, por Marguerite Yourcenar no Prefácio a Alexis ou le traité du vain
combat, que narra o caso de um homosexual numa época na qual não era ainda
moda escrever sobre homosexualidade. Yourcenar diz que este problema da
liberdade sensual é um problema de expressão, embora se distancie do uso de
linguagem obscena, por incapacidade inovadora: “L’obscénité (...) est une
technique de choc défendable s’il s’agit de forcer un public prude ou blasé à
regarder en face ce qu’il ne veut pas voir, ou ce que par excès d’habitude il
ne voit plus.” (p. 13-14) Mas esta solução brutal continua a ser exterior: “La
brutalité du langage trompe sur la banalité de la pensée et (...) reste
facilement compatible avec un certain conformisme.” (p. 14) Também para
Marguerite Yourcenar é uma questão de voz e de registo: “Comme tout récit écrit
à la première personne, Alexis est un portrait d’une voix (...) Il fallait laisser à cette voix son propre
registre, son propre timbre” (p. 15). Cf. Marguerite Yourcenar, Alexis. Le Coup de Grâce. Paris:
Gallimard, 1971 (1ª edição de Alexis 1929).
[17] Recordo sempre a propósito desta noção o poema
de Emily Dickinson: “I aimed my Pebble - but Myself / Was all the one that fell
- / Was it Goliah – was too large - / Or was myself - too small?”
[18] De certo modo, é a luta do criador pela forma, que implica quase
sempre uma violência em relação ao assunto, tema ou objecto tratado. É
Yourcenar, em minha opinião, quem melhor resume este dilema em O tempo, esse
grande escultor: “Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o
conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é
recriar um ser e não prendê-lo.”
[19] Cf. Susan Stewart, On Longing. Narratives of the Miniature, the
Gigantic, the Souvenir, the Collection. Durham
and London :
Duke University Press, 21993 (1ª ed. 1984), p. 133.