Polifonia em 'Parábola del Palacio' de Jorge Luis Borges
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Ler a 'Parábola del Palacio', breve texto publicado em 1960 no livro
central de Borges El Hacedor, traz necessariamente à memória dois outros textos
mais antigos, de autores bem conhecidos de Borges, o primeiro de Franz Kafka, a
parábola 'Eine kaiserliche Botschaft', publicada em 1919 na narrativa Beim
Bau der chinesischen Mauer, o segundo de Marguerite Yourcenar, a novela
inaugural das suas Nouvelles Orientales, 'Comment Wang-Fô fut sauvé', de 1938.
A intertextualidade com Kafka não é uma surpresa, já que Borges
traduzira em 1938 nove contos de Kafka para espanhol, incluindo Beim
Bau der chinesischen Mauer. Este conto de Kafka era o seu preferido, e
contém o gérmen do que viria a ser o essencial da obra de Borges, sendo 'A
Lotaria de Babilónia', 'As Ruínas Circulares' e 'A
Biblioteca de Babel' aqueles textos em que a influência de Kafka é mais
nítida.[1]
Quanto ao segundo texto, é igualmente conhecido o interesse de Marguerite
Yourcenar por Borges, a quem dedica em 1989 um belíssimo estudo intitulado 'Borges
ou le Voyant', na colectânea de ensaios En pélerin et étranger.
Os dois escritores conheciam-se pessoalmente e terão conversado em várias
ocasiões. Une-os sobretudo uma concepção de literatura baseada no sonho,
evidente no ensaio de Yourcenar, no qual louva a arte do texto de Borges, no
qual “tout s’échange et devient autrement la même chose”.[2]
A parábola de Kafka parte, para além de muitos outros escritos sobre o Oriente,
de que era conhecedor, de um poema de Hugo von Hofmannsthal, 'Der
Kaiser von China spricht', de 1897. O conto de Marguerite Yourcenar
baseia-se, segundo a própria autora, num apólogo taoísta lido em 1936 na Revue de Paris.[3]
Assim, a corrente originada na sequência destes textos, além de possuir
implicações intertextuais que tentarei deslindar, é à partida uma ilustração da
construção de literatura em Borges como escrita realizada ao longo dos tempos
através de vários escritores, tal como a descreve no conto 'El Inmortal', de 1949.
Tendo como personagens principais figuras míticas de imperadores
orientais e figuras de artistas – um “tu” que sonha a mensagem do imperador em
Kafka, o pintor Wang-Fô em Yourcenar, e o poeta em Borges, o tema dos três
contos é o poder do imperador, que é absoluto, excepto pelo contrapoder do
artista, que lhe equivale ou o ultrapassa. São textos sobre a comunicação
estética, o poder da arte e a criação poética. A 'Parábola del Palacio' é
composta por duas partes, a primeira a descrição que o Imperador Amarelo (o
mais antigo e mítico Imperador da China, a quem é atribuído o Taoísmo) faz ao
Poeta dos labirínticos domínios do seu palácio imperial. A segunda relata como
o poeta, chegados à torre do palácio, recita uma breve composição que faz
desaparecer o palácio. A parábola termina sem lição moral, num tom desiludido e
desencantado em relação ao poder de representação da arte.
Não é a primeira vez que Borges escreve sobre este tema. Em 1952, no
volume Otras Inquisiciones, trata o tema do Imperador e do Poeta no
texto 'El Sueño de Coleridge'. Aqui Borges relata a experiência onírica
que, segundo o próprio Coleridge, o terá inspirado a escrever o poema 'Kubla
Khan'. Borges traça o paralelo com o sonho do imperador mongol que dá o
nome ao poema e que, cinco séculos antes, sonhara um palácio e o edificara segundo
essa visão: “Un imperador mongol, en el siglo XIII, sueña un palacio y lo
edifica conforme a la visión; en el siglo XVIII, un poeta inglés que no pudo
saber que esa fábrica se derivó de un sueño, sueña un poema sobre el palacio.” [4]
A explicação final para este
paralelismo, a cinco séculos de distância é, segundo Borges, a seguinte: “Acaso
un arquetipo no revelado aún a los hombres, un objeto eterno (...), esté
ingresando paulatinamente en el mundo; su primera manifestación fue el palacio;
la segunda el poema. Quien los hubiera comparado habría visto que eran
esencialmente iguales.” [5]
Ora a questão que se coloca é a seguinte: como é que o poeta e o
imperador, que em 'El Sueño de Coleridge' são manifestações da universalidade do
Espírito e do sentido ecuménico da Arte, se tornam em opostos inconciliáveis na
'Parábola
del Palacio'? Esta é a questão que coloca este labirinto de textos. Em
vez de sugerir uma saída do labirinto textual, vou propôr mais alguns fios para
adensar o problema, à medida que tentamos resolver a charada. Embora Borges não
refira Marguerite Yourcenar, conhecia sem dúvida o belo conto 'Comment
Wang-Fô fut sauvé'. Nesse conto, os dois mundos do Imperador e do pintor
Wang-Fô são opostos e inconciliáveis. A arte é ao mesmo tempo a condenação e a
salvação do artista. Wang-Fô é condenado à morte pelo imperador, que acha os
quadros do pintor demasiado belos, demasiado perfeitos, dando uma ideia errada do
mundo e dos homens. Simultaneamente, nesse poder de transfiguração da realidade
circundante, a arte salva Wang-Fô, que se evade do mundo da corte do imperador
sem que ninguém possa detê-lo. Esta concepção de arte é ainda romântica e
metafísica – o mundo do Imperador opõe-se irremediavelmente ao mundo da arte,
que lhe é muito superior, e ao qual não tem qualquer capacidade de acesso, nem
de apreensão do seu conteúdo, nem no final, para interferir na fuga de Wang-Fô
e do seu discípulo. É certamente à luz
desta antinomia romântica arte/vida que podemos compreender a mudança no texto
de Borges desde a intrínseca similitude entre Imperador e Poeta de 'El
Sueño de Coleridge', e a oposição irredutível entre os dois que
encontramos na 'Parábola del Palacio'.
(a continuar)
[1] Cf. Margaret Boegeman, 'From Amhoretz to
Exegete: The Swerve from Kafka by Borges', in: Jaime Alazraki, Critical
Essays on Jorge Luis Borges. Boston, 1987, p. 173-5.
[2]
Cf. Marguerite Yourcenar, 'Borges ou le Voyant', in: M. Y. , En
pélerin et étranger, Paris, 1989.
[3] Cf. Revue de Paris, 43.4 (15 février
1936), p. 848-859.
[4]
Cf. Jorge Luis Borges, Obras completas de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Emecê,1974, p. 644.
[5] Cf. id. ibid., p. 645.