Polifonia em 'Parábola del Palacio' de Jorge Luis Borges
(...)
De natureza mais similar é a relação entre o texto de Borges e a
parábola de Kafka "Eine kaiserliche Botschaft". Esta parábola tem sido interpretada
de muitas maneiras diferentes, e dela se poderia afirmar o mesmo que
Deleuze/Guattari afirmam da obra de Kafka em geral, respondendo à pergunta:
“How can we enter into Kafka’s work? This work is a rhizome, a burrow.”[1]
A razão pela qual é possível interpretar a obra de Kafka de tantas maneiras
diferentes, é a principal característica desta obra, que os dois autores
resumem deste modo: “Only the principle of multiple entrances prevents the
introduction of the enemy, the Signifier and those attempts to interpret a work
that is actually open to experimentation.” [2]
A definição de facto estético como “inminencia de una revelación, que no se
produce” [3], é o principal elemento que Borges herdou
de Kafka, tal como o encontramos em "Eine kaiserliche Botschaft". O Imperador
moribundo (a velha ordem, a autoridade, a concepção essencialista de texto)
envia pelo seu poderoso mensageiro uma mensagem que nunca chega ao súbdito, ao
“tu” distante do Sol imperial. A mensagem chega apenas através do sonho, da
imaginação, acentuando assim a liberdade da leitura e a ambiguidade do texto e
da mensagem. Kafka e Borges, pertencendo embora à Modernidade, antecipam teses
fundamentais das Teorias do texto do séc. XX e da Pós-Modernidade.
Resta a nostalgia da
“palavra do Universo”, a que o ser humano não tem acesso. Só Deus poderia
entender essa palavra e a sua infinita polifonia. Só a memória de Deus poderia
ser infinita e eterna. A memória humana, conservada nas instituições da
Literatura e da Biblioteca, não é eterna nem infinita. Repetidamente Boeges
exprime a nostalgia pela metafísica perdida, e o desejo de totalidade, de ordem
no universo. Em "Parábola
del Palacio", isso traduz-se na ficção da recriação do
mundo pelo poeta numa composição poderosa, constituída por uma só palavra, a
palavra do universo: “Al pie de la penúltima torre fue que el poeta (que estaba
como ajeno a los espectáculos que eran maravilla de todos) recitó la breve
composición que hoy vinculamos indisolublemente a su nombre (...) El texto se ha perdido; hay quien entiende que constaba de un verso;
otros, de una sola palabra.” [4]
Este texto improbable
gozaria das virtudes da representação conseguida e perfeita: “Lo cierto, lo
incredible, es que en el poema estaba entero y minucioso el palacio enorme, com
cada ilustre porcelana y cada dibujo en cada porcelana y las penumbras y las
luces de los crepusculos y cada instante desdichado o feliz de las gloriosas
dinastías de mortals, de dioses y de dragones que habitaron en el desde el
interminable pasado.” [5] Aqui temos mais um exemplo de enumeração em Borges para reproduzir a
realidade, neste caso o palácio do Imperador. Na verdade, o palácio é uma
metáfora para os ditames da realidade exterior e da representação estética. O
exemplo mais conhecido na obra de Borges de tentativa de dar a realidade em
toda a sua multiplicidade e complexidade é o Aleph. Mas Borges conhece bem as
limitações dos possíveis prismas artísticos, dos vários Alephs, sejam eles
simulacros ou verdadeiros. Se o universo for infinito, a ideia de totalidade na
arte (a representação conseguida na “palavra do universo”), ou na enumeração,
não faz o menor sentido, pois será sempre incompleta, parcial; em segundo
lugar, da ausência de tempo, de História, de perspectiva linear, causal,
resulta a incapacidade de ordenar, de perspectivar. A enumeração apenas
reproduz a desordem da realidade, e a representação em arte (mimésis) é
impossível. Mas como se continua a pensar arte em termos de representação, todo
o espelho se torna para o artista um verdadeiro pesadelo.[6]
Ao mesmo tempo, subsiste
uma imensa nostalgia da coincidência e harmonia dos dois universos, da arte e
da realidade, e da possibilidade de a arte dizer, nomear a realidade. Esse é o
“facto estético” que Borges herda de Kafka, para quem tudo é ainda
representação. A realidade é sonho para Kafka, o sonho traz a realidade, a
realidade é ainda representável. Embora a realidade – a mensagem imperial –
seja inalcançável para Kafka, aquilo que nos é dado sempre é o plano do sonho,
da arte, da representação. Borges tem em comum com Kafka a visão lúcida e
céptica perante uma realidade social que só pode alcançar-se pela ironia. Nessa
visão crítica da sociedade, são semelhantes. Mas para Kafka a arte tem ainda o
poder de representação, ainda é habitável. Para Borges, é inalcançável, é
infindável, o segredo que o mensageiro transporta não chega nunca, fica sempre
aquém da existência humana. Para Borges, a arte não é representação do real. A
realidade é dura demais e a arte situa-se noutro plano, não cria nem muda a
realidade, como em Yourcenar. Em vez disso, chama a atenção para os limites do
humano, para a tragédia da condição humana – a realidade sociológica e
ontológica, impiedosa e imperante, impõe-se, tal como vemos no final de "Parábola del Palacio". Nesta sua visão céptica do poder redentor do verbo poético e do seu
poder de representação, Borges aproxima-se do pensamento estético vienense do
séc. XIX, que escolhe o silêncio como condenação da palavra poética, por não
ser capaz de exprimir a realidade.
Ao mesmo tempo que aspira
à revelação metafísica, à totalidade, Borges mostra verdadeiro terror do
infinito, como mostra a personagem Funes el Memorioso, o homem que não consegue
esquecer.[7] Aqui fala da recordação como “Lo recuerdo (yo no tengo derecho a
pronunciar esse verbo sagrado, sólo un hombre en la tierra tuvo derecho y esse
hombre há muerto)”.[8] Tal como no poema "Everness", só Deus conserva tudo
na sua “profética memoria”.[9] Em "La Biblioteca de Babel", de Ficciones (1944), distancia-se claramente dessa verdade contida na mensagem
metafísica: “la Biblioteca incluye todas las estructuras verbales, todas las
variaciones que permitem los veinticinco símbolos ortográficos, pero no un solo
disparate absoluto.” [10]
A única ordem possível é a desordem “que, repetido, sería un ordem, el Orden”.
Este é o único lenitivo para a saudade da metafísica perdida: “Mi soledad se
alegra com esa elegante esperanza.”[11]
Daí o elogio da forma curta e concisa, mas ao mesmo tempo a continuação da
tentativa de enumeração paratáctica em várias descrições da realidade exterior
na sua obra. Mesmo sem a capacidade para descrever a complexidade do real dada
na hipotaxe, a parataxe corresponde mais ao rizoma na obra de Borges, à rede de
relações que estabelece entre textos, sem contudo estabelecer uma hierarquia. O
que aparece na obra de Borges é, assim, o próprio mundo dos livros e dos
textos, a Biblioteca, que se substitui à realidade exterior, aliás com toda a
nostalgia do mundo real como no poema "El Outro Tigre". Borges parte de
universos literários e recria-os. Aceitando a não-totalidade, a não-solução dos
enigmas, a não-revelação, ele acaba por continuar a colocar questões
metafísicas, mesmo sem acreditar na metafísica. A aspiração romântica do poeta
em "Parábola del Palacio" é recriar o universo pelo poder ideal da palavra. Esse ideal revela-se
utópico. A realidade impõe-se na crueza dos seus limites: a morte e o
esquecimento. A palavra do universo permanece como demanda sem fim, a arte é a
arte do inacabado, do impossível.
Para concluir, gostaria de
situar estes dois textos de Borges e de Kafka no quadro de uma mudança de
paradigma na transição da Modernidade para a Pós-Modernidade, mudança essa mais
acentuada em Borges, mas manifestando-se já claramente em Kafka. Resumindo e
esquematizando, às noções estáticas de Livro e Biblioteca correspondem as noções dinâmicas de Texto e Escrita. À Intersubjectividade das teorias essencialistas de Literatura correspondem a Intertextualidade
das modernas teorias textuais do séc. XX. A perspectiva monológica
da estética da representação é substituída pelo dialogismo da estética pós-moderna e pela desconstrução. A noção de Tempo é substituída pela
noção de Espaço, a Árvore de conhecimento hierárquica é substituída pelo conceito multirelacional de Rizoma. O Labirinto da
Modernidade dá lugar à Rede, um labirinto sem saída única, i. e., sem metafísica. Finalmente, os
conceitos aristotélicos de identidade, substância, causalidade e definição dão
lugar aos conceitos de analogia, relação, oposição não-exclusiva, e portanto de
dialogismo e ambivalência.[12]
Na verdade, e muito embora
os Imperadores e Poetas dos três textos analisados se oponham entre si e não
criem uma relação de diálogo, a prática dos três autores, nomeadamente a de
Borges, situa-se já claramente na Pós-Modernidade, pela sua relação dialógica,
intertextual e dinâmica com outros textos, sem os quais o leitor não pode
estabelecer toda a riqueza potencialmente contida nesta "Parábola del Palacio".
Ana Maria Delgado
Instituto Camões /
Georgetown University
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[1]
Cf. Gilles Deleuze/Felix Guattari, Kafka
– Toward a Minor Literature, Minnesota, 1986, p. 3.
[2] Cf. id. ibid.
[3] Cf. Other Inquisitions, (1950),
in: J.L.B., Obras Completas, p.
635.
[4]
Cf. p. 801.
[5]
Id. ibid.
[6] Cf. o poema "Los Espejos", em
El Hacedor, p. 814-5.
[7] Em
Artificios, 1944, talvez uma variação da personagem de Hitchcock
Mr. Memory, no filme The 39 Steps.
[8] Cf. id. ibid., p. 485.
[9]
Cf. El Otro, El Mismo, 1964, p. 927.
[10] Cf. p. 470.
[11] Cf. p. 471.
[12]
Cf. Julia Kristeva, op. cit., passim.