Intertextualidade
em Os Passeios do Sonhador Solitário
de Almeida Faria
“O silêncio é, de todos os rumores,
O mais próximo da nascente”
Eugénio de Andrade
“A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu,
voyelles,
Je dirai un jour vos naissances latentes”
A. Rimbaud
Numa entrevista gravada em
vídeo na Universidade de Georgetown em 1984, Almeida Faria afirmava estar a
começar uma nova fase na sua produção literária, concluída a Tetralogia
Lusitana com o último volume, Cavaleiro Andante, ao qual se refere
como a “uma espécie de requiem não só
pelas minhas personagens, das quais aqui me despeço, mas também por uma certa
ideia de Portugal que desapareceu com o fim do império e que traumatizou
profundamente grande parte da população portuguesa”.[1]
A intenção de produzir uma literatura diferente tem na sua origem a desilusão
perante as insuficiências da revolução em Portugal e o desejo de entrar numa
nova fase de realismo fantástico, em que a realidade retratada seja dada de
modo menos realista.[2] Essa intenção encontra uma primeira
realização no conto Os Passeios do Sonhador Solitário, escrito em 1982-83. O seu
método de escrita basear-se-ia nesta fase fortemente em matéria onírica,
naturalmente trabalhada depois pelo escritor com pleno uso da razão desperta.[3] Assim, Os Passeios são dedicados à sua
“musa nocturna”, e têm como subtítulo contados por almeida faria a partir da “mise
en tombeau” de mário botas. A primeira intertextualidade é, pois, com
um desenho do pintor Mário Botas, seu amigo prematuramente desaparecido em
1983. O próprio escritor afirma[4]
ter colocado em rigoroso pé de igualdade a pintura e a escrita e retribuído, ao
misturá-las, o gesto intertextual do pintor, que gostava de dialogar com os
poetas e escritores.[5] Não era, de certo modo, difícil, dado o
carácter literário da própria pintura de Mário Botas.
Para além deste primeiro
diálogo intertextual, um segundo é imediatamente evidente no título, que é um pastiche do livro de Jean-Jacques
Rousseau Rêveries d’un Promeneur Solitaire (1776-78), diário das rêveries
do autor,[6]
invertendo em quiasmo os dois primeiros termos, mais ensaístico e
autobiográfico o texto de Rousseau e mais ficcional o texto de Almeida Faria.
Já Mário Botas revelava uma grande admiração por Rousseau, considerando-o
verdadeiramente revolucionário em finais do séc. XVIII pelo carácter intimista
e moderno da sua obra.[7]
Chega mesmo a desenhá-lo em 1977, inscrevendo no verso “Jean-Jacques Rousseau,
citoyen de Genève e seu pupilo Mário Botas”.[8] Não é, portanto, de espantar que o escritor
tenha querido, ao escolher Rousseau como figura tutelar do seu texto, ilustrar
o(s) desenho(s) do pintor. O narrador do conto de Almeida
Faria partilha com Rousseau, para além do gosto pela filosofia, o gosto pela
marcha – “Jamais je n’ai tant pensé, tant existé, tant vécu, tant été moi, si
j’ose ainsi dire, que dans les (voyages) que j’ai faits seul et à pied. La marche a quelque chose qui anime et
avive les idées”; também Almeida Faria faz dizer o seu narrador/protagonista:
“Caminhei longamente pelo parque dentro até não atinar onde estava e me sentir
cansado”.[9]
Nos dois textos a deriva da marcha está associada à rêverie (Rousseau) e
ao sonho (Almeida Faria). A etimologia de rêver é a palavra latina reexvagare,
e o primeiro sentido de sonhar é “vagabonder, errer au dehors (...) sortir de
soi, de son naturel, s’écarter du chemin tracé, se dévoyer, extravaguer.”[10]
A palavra rêverie está em Rousseau,
como em Montaigne, de cujos ensaios era grande admirador, ligada à ideia da
felicidade conquistada através de uma certa vagabundagem feliz do espírito.[11]
As Rêveries
terão tido uma importância decisiva na evolução semântica da palavra rêverie entre o séc. XVIII e o séc. XIX.
Para os contemporâneos de Rousseau, a palavra teria o significado de folies. É mérito de Rousseau ter dado um
sentido positivo à palavra, que evolui do sentido pejorativo de délire, que tinha na época clássica,
para o sentido de meditação que tem
já no início do séc. XIX. O sonhador, rêveur,
seria aquele que escuta a sua vida interior, e a rêverie, o devaneio passa
a ser o espelho da alma do “homem segundo a natureza”.[12]
Nas Rêveries
o termo vai aparecer nas seguintes acepções: méditation no primeiro Passeio, contemplation, chimère, égarements, imagination e amusement no sétimo Passeio,
sempre num contexto hedonista de jouissance, plaisir, joie.[13]
O devaneio aparece em Rousseau como condição indispensável para a busca da
felicidade individual e implica a ociosidade, o farniente do quinto Passeio, uma certa liberdade e
vagabundagem do espírito que opõe a rêverie
ao trabalho intelectual, com abolição das categorias de tempo e espaço.[14]
A rêverie pura, que é interior e muda, está condenada à exterioridade e
opacidade da escrita; mas sendo a escrita-leitura um acto não só de reflexão,
mas sobretudo de rememoração, escrever será reviver, tentando reconquistar a
essência evasiva do passado e daquilo que é inefável.[15]
Este trabalho de leitura, a
que Jean Starobinski chama “rêverie seconde”, consiste em “résorber la
multiplicité et la discontinuité de l’expérience vécue, en inventant un
discours unifiant au sein duquel tout viendrait se compenser et
s’égaliser.” [16]
Esta procura intimista da
felicidade terá pouco a ver com a rêverie
romântica que é vizinha do ennui,
estado psicológico do poeta romântico que traduz a profunda inadaptação do eu ao mundo.[17]
Estas rêveries são realmente devaneios, mais do que sonhos,
condizendo a palavra com os passeios solitários e a vagabundagem criativa do
autor.
O título do conto de Almeida
Faria não utiliza a palavra rêverie,
demasiado delicada talvez e algo démodée
para a vigorosa ironia do autor. Este sonhador que, numa das suas viagens,
passeia na Nova Iorque nocturna, é mais moderno, o sonho tem aqui um sentido
muito mais surrealista, como algo relacionado com as pulsões mais profundas do eu, que eventualmente poderá ajudar a
manifestar-se. Enquanto Rousseau, cansado da sociedade humana e desiludido com
os seus semelhantes, passeia em plena natureza mesmo sem sair de Paris, fazendo
prova por essa comunhão do primitivismo que defende em outros ensaios e obras,
o narrador de primeira pessoa de Os Passeios do Sonhador Solitário,
protagonista do conto, encontra-se na cidade de Nova Iorque à procura do seu eu mais profundo e verdadeiro, num mundo
estrangeiro e estranho, diferente entre os diferentes – note-se desde logo o
emprego de inúmeras palavras estrangeiras sem uso do itálico, sobretudo da
língua inglesa e francesa. Este dépaysement
é, no entanto, sobretudo de si mesmo, como se estivesse o narrador/protagonista
“en étrange pays dans son pays lui-même”,[18]
sentindo ainda a afirmação de Rimbaud que resume o sentimento de alienação
radical do eu dos Modernos, “Je est
un autre”.[19]
Que se trata de investigação do inconsciente é claro desde logo no início do
conto pela localização no metropolitano, no subway
nova-iorquino, e pela predominância, ao longo do conto, de cenas nocturnas, mal
iluminadas e passadas mesmo em cenários de bas
fonds. O próprio autor refere na Entrevista em Georgetown o valor
terapêutico que este tipo de escrita teria tido para ele nessa fase.[20]
E a influência de Rimbaud ecoa ainda nas palavras de uma das personagens
fantásticas do conto, um homem-cão, que se apresenta como primogénito de
Rousseau, e que fala a certa altura da sua narrativa na sua “saison chez
Wundt”, referência ao texto de Rimbaud Une Saison en Enfer. Rousseau
descreve-se nas Rêveries como estranho aos outros homens mas em paz consigo
mesmo, em comunhão com todos os seres e com a natureza. A Paris das várias Promenades
não é a cidade, mas mais natureza, paisagem, e é nessa paisagem que Rousseau
procura a paz interior, identificando-se com ela. Demasiado preocupado com a
crítica da sociedade e dos outros para se preocupar demasiado com as suas
próprias contradições, o eu que lhe
oferece refúgio seguro é ainda um modelo de sujeito unívoco, não contraditório
do iluminismo.[21] E
isto apesar de, no auto-retrato que nos traça através de vários textos – as Confessions,
os Dialogues, as Rêveries, as cartas a Malesherbes,
as notas agrupadas sob o título de Mon portrait, e o ensaio Persifleur,
Rousseau se nos apresentar como uma natureza complexa e rica, um “homem das
sensações”, com gosto pelo paradoxo e um temperamento ciclotímico que
constantemente o faz tornar-se “outro”. Mas toda esta natureza aparentemente
contraditória se metamorfoseia por seu turno no exercício da rêverie,
que revela uma unidade última do ser em comunhão com a natureza, uma plenitude
que é “permanência no ser”.[22]
Em resumo, poderíamos dizer que toda a ruptura da continuidade do eu que
se sente tornar-se um outro se transforma em Rousseau em metamorfose e unidade
do ser, em integração, no eu, do outro.[23]
O sujeito problemático e dividido, dilacerado, surge com os Românticos, de que
o Surrealismo e toda a Modernidade, incluindo a Pós-Modernidade, são herdeiros.[24]
(a continuar)
In: CARTAPHILUS 4 - Revista de Investigación y Crítica Estética (2008), p. 38-49
Este texto foi apresentado numa versão abreviada como comunicação ao V Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) realizado na Universidade de Minnesota em Outubro de 2006
Ler o texto completo aqui
Imagem: capa da 2ª edição de Os passeios do sonhador solitário, sobre desenho de Mário Botas
[1]
Cf. Almeida Faria, Entrevista na Universidade de Georgetown em
1984 (gravação em vídeo: National
Conference of the Teaching of Portuguese. Author Series 1984).
[2]
Cf. id. ibid., “Não volto, julgo que não volto a esta família (a da Tetralogia
Lusitana), e gostava de fazer um tipo de literatura diferente, talvez
que a decepção perante o fracasso que foi em grande parte a revolução em
Portugal me tenha levado a preferir falar de uma realidade irreal, se é que se
pode dizer isto, ou de um realismo fantástico, que eu comecei a abordar numa
novela curta, também ilustrada por Mário Botas, e que eu considero, apesar de
curta, uma das obras mais estimulantes que eu escrevi.”
[3]
Cf. id. ibid., “Eu devo confessar que escrevo, quando tenho tempo, de
manhã, gosto de escrever de manhã, levanto-me às 6 ou 7 da manhã e tento captar
os restos dos meus sonhos. E a partir dessas imagens vagas que nos ficam dos
sonhos eu geralmente parto para histórias que podem até não ter nada a ver com
aquela imagem ou resto dela, mas que me estimulam a imaginação para uma ficção,
uma invenção”, e “a obra tem de ser
depois corrigida à luz implacável da vigília, do dia, da consciência e da
razão. Deste diálogo entre o inconsciente e a consciência é que eu julgo que
pode nascer alguma coisa de válido, que eu julgo que ainda não escrevi, mas que
um dia espero vir a escrever.”
[4]
Cf. id. ibid., “Este livro não foi ilustrado por Mário Botas, fui eu que
ilustrei um desenho dele, chamado em francês justamente mise en tombeau, e que apresenta figuras extremamente inquietantes,
uma delas é um auto-retrato do pintor, e as outras são figuras dificilmente
definíveis, mas com facies de cão, e
de outros animais fantásticos.” Trata-se de facto de um desenho e de uma
colagem sobre esse desenho: “Em Mise au tombeau, um duplo do pintor
flutua em imponderabilidade entre monstros que procriou. Numa transformação
desse quadro operada por colagem e intitulada Íamos na minha saison chez
Wundt..., a figura central, híbrida de homem e cão, ressurge sob a
configuração do artista, que assim afirma a sua errância pelos seus mundos.” –
cf. António Vieira, A Fenomenologia da Criação Artística em Mário Botas.
Porto, 1984, p. 18-9.
[5] Cf. id. ibid., p. 35: “Fui sempre um
pintor do lado da escrita, opondo-me e unindo-me a ela. O que pinto gosta de se
encontrar com as palavras, sobretudo com as palavras dos outros.”; e ainda,
distanciando-se do estatuto de ilustrador e reivindicando para si o estatuto
poético e fantástico de “pintor-poeta” e de co-autor: “Raramente procuro
ilustrar, mas antes realizar uma obra paralela que só se esclareça inteiramente
pelo relacionamento feito entre ambas.” – cf. José Manuel de Vasconcelos, “Os
demónios da interioridade – a propósito da pintura de Mário Botas”, in: Catálogo
da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes. Lisboa,
1999, p. 46. Vd. a este propósito o artigo de Eduardo Lourenço, “Mário Botas ou
a pintura como poesia”, in: E. L., O Espelho Imaginário. 21996,
p. 169-174.
[6] Neste diário, Rousseau teria inventado
uma forma literária nova, a rêverie poética em prosa – cf. Jean-Jacques
Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. Érik Leborgne. Paris, 1997, p. 27.
[7]
Cf. Almeida Faria, “O pintor à porta dos infernos”, in: Catálogo
da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes, p. 11,
citando Botas: “A grande revolução do fim do século XVIII não é a turba a
cortar sucessivamente as cabeças a Luís XVI, a Danton e a Robespierre. É
Jean-Jacques a escrever As Confissões. A minha pintura assume
naturalmente esse descuidado rigor de um diário ou de uma confissão. (...)
Rousseau foi um dos mitos da minha adolescência”.
[8]
Cf. Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões
Inquietantes, p. 169.
[9]
Cf. Almeida Faria, Os Passeios do Sonhador Solitário.
1982, p. 23.
[10]
Cf. Marcel Raymond, La quête de soi et la rêverie. Paris,
1962, p. 159.
[11] Cf.id. ibid., p. 186.
[12]
Cf. Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire,
ed. cit., p. 36.
[13]
Cf. id. ibid.
[14]
Cf. id. ibid., p. 36-39.
[15]
Cf. Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau. La Transparence et
l’obstacle. Paris, 1971, p. 416-7.
[16] Cf. id. ibid., p. 419.
[17]
Cf. J.-J. Rousseau, op. cit., p. 41.
[18]
Cf. o título de Louis Aragon, En étrange pays dans mon pays lui-même
(1945).
[19] Cf. Arthur Rimbaud, “Lettre à Georges
Izambard”, mai 1871 (“JE est un autre”), e “Lettre à Paul Demeny”, mai 1871
( “Car Je est un autre”). In : Arthur Rimbaud, Oeuvres. Ed. A. Adam. Paris, 1957.
[20]
Cf. Entrevista em Georgetown: “Esta técnica para mim é hoje de
certo modo uma psicanálise que faço de mim mesmo e que me permite um certo
equilíbrio psíquico, julgo eu que sem escrever eu teria tensões profundas, e
como tal a escrita é-me útil e até necessária.”
[21]
Cf. J.-J. Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire,
ed. cit., p. 31-2: “Plus qu’un opposant des Lumières, Rousseau en est peut-être
un révélateur, dans le sens où son oeuvre élabore une critique interne de la
pensée philosophique du XVIIIe siècle.”
[22]
Cf. Robert Mauzi, L’ idée du bonheur dans la littérature et la
pensée française au XVIIIe siècle. Paris, 1994, p. 297.
[23]
Cf. Marcel Raymond, op. cit., p. 47; vd. também p. 75: “Rousseau parvient (…) au sentiment de
l’unité et de l’unicité de son être.”
[24]
Cf. id. ibid., 193: “L’homme moderne, l’homme de l’Occident, est obsédé
par sa figure, son double. (...) Depuis la fin du moyen âge, depuis l’époque où
l’on a commencé à se contempler dans les beaux miroirs polis des Vénitiens,
depuis Pétrarque, depuis Montaigne, plus précisément depuis Rousseau – à
travers le romantisme, le symbolisme, l’existentialisme, Baudelaire, Amiel,
Kirkegaard, Nietzsche, Mallarmé, Valéry, Kakfa – une part essentielle de
l’aventure de l’homme moderne est celle de la conscience de soi comme hantise –
et aussi comme passion.”