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segunda-feira, 25 de março de 2013







Intertextualidade no conto de Almeida Faria Os passeios do sonhador solitário


(cont.)

       Mas não é só a relação afectiva com a cidade aquilo que liga este conto à escrita de Borges. Os dois instantes de verdade do texto, ou os dois lados do instante de verdade do texto, são uma afirmação das leis, se é que as há, do texto ficcional, com a sua liberdade e o seu “mentir-vrai”.[1] Durante a narração da sua história na terceira noite, em que tatua no braço esquerdo do protagonista hieróglifos para lhe servirem de amuleto em Manhattan,[2] o homem-cão acaba por dizer o que lhe cala mais fundo: “o grande Rousseau julgava-se compositor de génio, a música dele não vale nada e foi escrevendo que embarcou na imortalidade; e contudo deve à música o cerne da sua estética baseada nas leis do coração, não do discurso; mas não é fácil viver com o coração nas mãos, (...) seja sensibilidade ou sinceridade, pois naquilo a que ele chama coração se instala a verdade insofismável, jamais superada embora suprimível, soterrada por tanta má mentira”.[3] Rousseau acredita nas leis do sentimento e da verdade, e Les Rêveries contêm  um capítulo dedicado à verdade, o quarto Passeio, no qual distingue entre a verdade dos factos, a veracidade, e a verdade moral, que respeita ao essencial. A verdade que lhe interessa é a verdade existencial ligada à máxima do templo de Apolo “Conhece-te a ti mesmo”, máxima aliás difícil de seguir, já que toda a representação de si próprio é sempre uma recriação. Os Passeios problematizam sobretudo a escrita de Rousseau como identificando verdade com sinceridade, o que não deixa espaço para o texto ficcional, para o “mentir-vrai”. Por outro lado poderia dizer-se que esta crítica é injusta para com Rousseau, já que a sua sinceridade e preocupação com a verdade, bem como o traçado autobiográfico da sua escrita, são o seu próprio estilo. Pode dizer-se que as regras que aqui reinam são as da afirmação da liberdade do texto ficcional, pelo menos em relação a uma verdade unidimensional. Por outro lado, o problema da relação da verdade com a escrita coloca-se sempre, já que toda a escrita é em certa medida autobiográfica (como dizia Flaubert, “Madame Bovary, c’est moi.”) Escrever implicará então sempre a relação  da memória com a identidade,[4] questão aliás colocada na obra seguinte de Almeida Faria, o romance O Conquistador (1990). O trabalho de leitura é, num texto como Os Passeios, semelhante ao trabalho do detective, que persegue os traços individuais apagados na massa anónima da cidade.[5] Os duplos significam neste contexto sobretudo a dificuldade em compreender a própria identidade, que aparece fragmentada e como que alienada da consciência de si próprio.

 
       E eis-nos assim chegados ao instante de verdade final, à consciência do não reconhecimento do eu passado. O que está projectado nos vídeos/écrans é fixo, é memória, real ou hipotética, daí as designações de “cópia” e “xerox”: “A vida é um xerox; tu uma cópia apenas.”[6] A vida aparece aqui como algo de estranho e exterior ao indivíduo, a que este assiste como a um filme, depois de vaguear sonâmbulo pela cidade, solitário na companhia de um melancólico contador de estórias. A recordação no final do conto é, mais ainda do que transformadora, verdadeiramente arrasadora, uma autêntica mise en tombeau do eu. No lugar da recordação, do que fora fixado pela memória, surge agora a consciência, o instante de  verdade de que fala o narrador/protagonista, e que poderia implicar a substituição de vida como “um xerox” e de personalidade como “uma cópia apenas” por algo que não chega a encontrar formulação neste texto, porque o conto termina aí. Este instante de verdade é comparável à definição dada por Borges de facto estético: “ciertos crepúsculos y ciertos lugares quieren decirnos algo, o algo nos dijeron que nos hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético.”[7] A importância fulcral deste instante é sublinhada pela permanência num presente que parece alargado pela convergência entre passado e futuro – é um instante de simultaneidade, de ligação passado/futuro, um instante de “eternidade”, que Susan Sontag tão bem definiu falando de Borges e citando Browning ao definir o presente como “the instant in which the future crumbles into the past.”[8] A citação implica uma possibilidade de inverter a linearidade temporal, a causalidade, principais razões da estranheza do nosso destino – como escreve Borges, “Nuestro destino no es espantoso por irreal; es espantoso porque es irreversible y de hierro.”[9] A única maneira de escapar, no texto de Borges, à causalidade mesquinha, à repetição, às séries infinitas, à multiplicidade do real, é a própria arte narrativa, já que ela pode inverter a causalidade, a linearidade temporal, significando uma verdadeira libertação. O texto de Borges aproxima-se mais, neste contexto, para alguns intérpretes, do realismo mágico do que do idealismo ou solipsismo – julgo-o mais próximo, no entanto, de uma estética baseada no sonho. Para além de se caracterizar por grande abertura e indeterminação, é um texto no qual tudo pode transformar-se em tudo a qualquer momento.[10] Acresce ao que já foi dito que a definição de facto estético proposta por Borges é uma reminiscência romântica, já que a verdade é indizível para os Românticos, que ao contrário dos Iluministas não acreditavam que fosse possível dizer toda a verdade.[11]


       A posição de observador que deambula incógnito pela cidade[12] faz do narrador alguém que se compraz na contemplação da alteridade e da variedade das vidas humanas, mas ao mesmo tempo o próprio sujeito que percepciona, que observa, fica entregue à deriva da sua observação.[13] Assim, o que afasta Os Passeios do Sonhador Solitário das Rêveries de Rousseau e simultaneamente os aproxima de Borges é este modo de percepcionar a realidade como uma série sucessiva de impressões, que resultam alheias, estranhas, longínquas ao sujeito, que por seu turno permanece incapaz de se reconhecer a si próprio, de se refugiar numa unidade perdida do eu, que permanece em suspenso.[14] Daí a nostalgia por um “instante pleno, absoluto, que contivesse os demais”.[15] A deriva de Rousseau, por seu turno, conduz sempre à revelação da identidade do sujeit; o que ele encontra nos seus passeios é um instante de plenitude, tendo feito em si o vazio, de que é condição o esquecimento, conseguindo assim encontrar se não talvez a experiência mística, pelo menos a revelação da poesia.[16] Tal não acontece em Os Passeios, onde a fragmentação do eu, tão evidente através do aparecimento de múltiplos duplos, corresponde à perda da aura de que fala Benjamin,[17] tal como esse “instante pleno” corresponde à definição dada por Borges de “facto estético”. A perda da aura, da unidade do eu e do seu carácter único, correspondem por sua vez ao fim das grandes narrativas na cultura ocidental, à falta de enquadramento de sentido, de referência . Assim a perda da aura é também a perda da origem como princípio e fim, do silêncio primordial, originário. O que resta, segundo escreve Sylvia Molloy citando Borges, são “exercícios de consolação”, “pequenos agrupamentos parciais”, “identidades momentâneas”.[18]


       Talvez, no entanto, a compreensão de “origem” não como derivação linear de um princípio em direcção a um fim, mas antes tal como a entende Walter Benjamin, possa suprir a falta de enquadramento original e possibilite a construção de sentido e o sentimento de coerência do sujeito sem recorrer às grandes narrativas: “although a thouroughly historical category, (origin) nonetheless has nothing to do with beginnings (...). The term origin does not mean the process of becoming of that which has emerged, but much more, that which emerges out of the process of becoming and disappearing. The origin stands in the flow of becoming as a whirlpool (…); its rhythm is apparent only to a double insight.”[19] Nesta definição, a origem não é linearidade, nem circularidade (eterno retorno), mas sim permanente transformação, contínuo processo de devir e de desaparecer. O deambular na cidade – no espaço – seria deste modo uma negação da falta de liberdade no tempo (irreversibilidade). Para além disso, o deambular pressupõe a ideia de cidade como labirinto com múltiplas saídas, um labirinto sem saída única, i. e., sem metafísica, sem um enquadramento, um referente fixo.


       O final do conto mostra quanto a percepção do eu está ligada à perda da aura na arte – o eu aparece percebido como cópia e a vida como xerox. O narrador não consegue conciliar o eu vivido com o eu potencial. É no momento da perda da aura que a nostalgia de uma experiência aurática é maior, aparecendo a frustração existencial do narrador face às suas potencialidades por realizar como nostalgia de um eu não fragmentado, consciente, único e completo. Mas onde, se não na literatura e na arte, poderá o ser humano procurar a sua própria identidade? Já Borges nos dizia no poema "Arte Poética": “El arte debe ser como ese espejo/ Que nos revela nuestra propia cara.”[20] Mas não haverá um caminho único, conhecido, predestinado. Deambular corresponde mais ao remoinho da origem do que ao curso linear de uma vida. Encontramos esta compreensão do destino humano, por ex., em W. Blake[21] e em F. Hölderlin,[22] que em vez de um único caminho “direito” (“eben”) fazem o elogio do caminho que contém desvios (“crooked road”), mas também em Thomas Mann se encontra a noção de caminho que passa pela morte e a ultrapassa.[23]


       No final, o narrador deseja “Oxalá o meu duplo não aperte os prazos, não venha cedo demais.”[24] A aparição mimética do golem, espécie de cópia mecânica e sem voz, e as designações de vida como xerox e de indivíduo como cópia mostram a preocupação de um autor que foi sempre crítico de um certo realismo e agora defende uma via para a criação literária ligada à imaginação e ao sonho, um realismo fantástico. Memória, cópia, xerox, homem-robot, golem aparecem relacionados com o realismo; recordação, sonho, imaginação, ficção com o realismo fantástico, e na verdade com o próprio texto, que como toda a arte deve nascer da interioridade, não de uma realidade pré-existente. Como diz T. Todorov,  “L’art n’est donc pas la reproduction d’une ‘réalité’, il ne vient pas à la suite de celle-ci en l’imitant; il demande des qualités toutes différentes et être ‘authentique’ peut même, comme dans le cas présent, nuire.” (trata-se do conto de Henry James "The Real Thing", de 1892).[25] A obra de arte não se refere a nada de anterior a si própria, ela é original em si mesma: “Dans le domaine de l’art, il n’y a rien qui soit préalable à l’oeuvre, qui soit son origine; c’est l’oeuvre d’art elle-même qui est originelle, c’est le secondaire qui est le seul primaire. ”[26] Do ponto de vista da criação poética, é isto que este texto de Almeida Faria, entre a escrita surrealista e a desconstrução, nos diz.


       Acrescentaria que o sentido, o segredo do curso de uma vida não é predeterminado, e corresponde à indeterminação, à abertura do texto.[27] Não há uma transcendência única de sentido – como na teoria essencialista de Ingarden – apenas uma imanência que inclui um leque de possibilidades. Os contos de Henry James mostram restos de literatura como sentido único, como transcendência, como dado metafísico, mas apesar disso são exemplos supremos da arte da ambiguidade, leia-se da indeterminação. A revelação constituiria um sentido único, superior e soberano. A iminência da revelação, pelo contrário, garante a indeterminação, a abertura, a liberdade do texto. Daí que Borges muito justamente defina o facto estético não como a revelação de uma verdade superior, transcendente, mas como a iminência dessa revelação que nunca chega a produzir-se. A revelação seria uma cópia da verdade superior; a iminência da revelação deixa-nos uma pausa de leveza sem determinismo, na qual, sem termos de lamentar a perda do sentido metafísico, o podemos a todo o momento recriar ou imaginar – é a situação da parábola de Kafka Eine kaiserliche Botschaft – não é a mensagem soberana, toda-poderosa do Imperador moribundo aquela que chega ao tu, a mensagem que chega é a que o próprio tu sonha e imagina na lonjura do sol imperial.

 
       O sentido não é o curso inequívoco que provém da fonte original, mas pode ser constituído por várias leituras. No soneto de Rimbaud, não há uma fonte única, mas várias nascentes, e nascentes latentes até. Voltar a essas nascentes poderá significar a verdadeira fidelidade às origens (a si próprio) e a possibilidade de se ser verdadeiramente autor do texto, em vez de se ser surpreendido, como o protagonista de Os Passeios do Sonhador Solitário, pela projecção da sua vida passada num écran de uma loja de audiovisuais, como se de algo de estranho e alheio se tratasse. A questão da fidelidade do leitor ao texto não se colocará então à velha maneira essencialista, como se o leitor ecoasse o texto, ou reproduzisse em cópia fiel o sentido original contido unilateral e univocamente no texto.[28]

 
       No que respeita ao destino espiritual do homem, o presente e o que contém de futuro não são também um xerox, uma cópia do passado ou de um curso anterior, conduzindo inequivocamente a um único futuro previsível e controlável, mas o momento, o instante de liberdade, certamente relativa mas talvez por isso mesmo mais preciosa ainda, em que permanentemente escolhemos e elegemos quer o futuro, quer mesmo o passado, que também ele não é fechado e perfeito para sempre. E se é verdade que “Cada época sonha a seguinte”,[29] não menos verdade é que cada época reescreve também a anterior, tal como cada autor cria a sua própria história literária, os seus precursores.[30]

 
       O texto literário, com a sua ambiguidade fundamental, de abertura e liberdade, questiona-nos e põe-nos constantemente em questão – por isso Sylvia Molloy põe em paralelo “sentir-se em texto” e “sentir-se em morte”,[31] o que talvez queira afinal dizer neste contexto “sentir-se em vida”, mas na vida autêntica, aquela que não exclui a morte em nenhum momento, a vida consciente e criativa: como escreveu Rousseau, “Nous mourrons et nous naissons à chaque instant de notre vie.”[32] A deriva do caminhante, seja ele sonhador ou flâneur, modernas variantes domésticas do viajante,[33] tem afinal um sentido, e esse sentido é a própria deriva, o próprio caminho, que é afinal também o próprio texto.

 
Ana Maria Delgado

(Georgetown University/Instituto Camões)



[1]  A expressão é de Aragon, no título do conto de 1964, Le Mentir-vrai.
[2]  A epígrafe das Confessions de Rousseau dizia Intus et in cute (No interior e sob a pele) – trata-se, pois, de pôr o coração a nu, de uma vivisecção moral – cf. Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. cit., p. 47. Já a referência seguinte de Os Passeios à septicemia alude possivelmente a Borges, que de certo modo deve a ter estado gravemente doente com uma septicemia, a seguir a um acidente, o começo da sua escrita ficcional com o conto Pierre Ménard, autor do Quixote (1938).
[3]  Cf. Almeida Faria, op. cit., 46-47.
[4] Cf. Susan Rubin Suleiman, “Aragon’s le mentir-vrai: Reflections on truth and self-knowledge in autobiography”, in: Romanic Review (Harvard University), Jan-Mar 2001.
[5]  Cf. Walter Benjamin, op. cit., p. 45.
[6]  Cf. Almeida Faria, op. cit, p. 50.
[7]  J. L. Borges, Otras Inquisiciones (1952), p. 12.
[8]  Cf. Susan Sontag, “A Letter to Borges”, in: S. S., Where the Stress Falls. NY 2002, p. 11: “You had a sense of time that was different from other people’s. The ordinary ideas of past, present and future seemed banal under your gaze. You liked to say that every moment of time contains the past and the future, quoting (as I remember) the poet Browning, who wrote something like ‘the present is the instant in which the future crumbles into the past.’ ”
[9]  J. L. Borges, Otras Inquisiciones, p. 256.
[10]  Como tão bem diz Marguerite Yourcenar no seu belíssimo ensaio sobre Borges, “Borges ou le voyant”, in: En Pélerin et Étranger (Essais). Paris, 1989, p. 250: “Dans l’atmosphère du monde borgésien, où tout s’échange et devient autrement la même chose”.
[11]  Cf. Georges Gusdorf, Du néant à Dieu dans le savoir romantique. Paris, 1983, p. 419: “La pensée des lumières (…) admet la possibilité de faire toute la lumière. La pensée romantique se voit imposer la loi du secret ; impossible de tout dire”, também porque o que está em causa não é tanto uma verdade do conhecimento, mas mais uma verdade do ser, uma verdade existencial. A verdade que Borges antepõe a Evaristo Carriego (1939) numa citação de Thomas de Quincey  é “... a mode of truth, not of truth coherent and central, but angular and splintered.”
[12] Cf. Walter Benjamin, op. cit., p. 4 : “Der Beobachter ist ein Fürst, der überall im Besitze seines Inkognitos ist.”
[13]  Cf. Sylvia Molloy, Las letras de Borges, Rosario, 1999, p. 194-5.
[14]  Cf. id. ibid., p. 194:
[15]  Cf. id. ibid., p. 196:
[16]  Cf. Marcel Raymond, op. cit., p. 12.
[17] Cf. Walter Benjamin, “Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit”, in: W. B. Gesammelte Schriften I, 2. Frankfurt a. M. 1974, p. 439-441.
[18]  Cf. Sylvia Molloy, op. cit., p. 196.
[19]  Cf. Walter Benjamin, Der Ursprung des deutschen Trauerspiels, I, p. 226.
[20]  Cf. J. L. Borges, “Arte Poética”, in: El Hacedor (1960).
[21]  Cf. William Blake, “Improvement makes straight roads, but the crooked roads without Improvement are roads of Genius”, in: The Marriage of Heaven and Hell - A União do Céu e do Inferno, ed. João Ferreira Duarte. Lisboa, 1979, p. 75.
[22]  Cf. Friedrich Hölderlin, "Lebenslauf": “denn nie habt ihr Himmlischen, ihr Alles Erhaltenden, dass ich wüsste, mich mit Vorsicht des ebenen Pfades geführt”.
[23]  “Zum Leben gibt es zwei Wege: der eine ist der gewöhnliche, direkte und brave; der andere ist schlimm, er führt über den Tod, and das ist der geniale Weg.”
[24] Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 50. Gostaria de referir brevemente aqui um outro duplo ameaçador que surge ao protagonista do conto de Henry James The Jolly Corner (1908) como aquilo que poderia ter sido, como “alter ego do passado condicional”[24]: The penumbra, dense and dark, was the virtual screen of a figure which stood in it as still as some image erect in a niche or as some black-vizored sentinel guarding a treasure.” Mas neste conto, diferentemente do que costuma acontecer em Henry James, há, para além da presença/ausência do fantasma e da “busca impossível da ausência”, o acordar para além da morte provocada pelo duplo. É a personagem de Alice Staverton quem possibilita ao protagonista, Spencer Brydon, a aceitação de quem é / não é / poderia ter sido, e o uso não egoísta da experiência.
[25]   Cf. T. Todorov, Poétique de la prose. Paris, 1971, p. 106.
[26]   Id. ibid.
[27]  Cf. Ana Maria Delgado, “A Note on Misreading”, in: Proceedings of the Xth Congress of the ICLA in New York 1982, New York 1985.
[28] “C’est en allant vers la mer que le fleuve est fidèle à sa source”, sendo aqui a fonte, como origem, o ponto de união de vida e morte, vistas dialecticamente como processo de devir e de desaparecer, embora a metáfora contenha uma ideia de linearidade que não corresponde ao conceito de origem tal como a entende Benjamin.
[29]  Cf. Jules Michelet, in: Susan Buck-Morss, op. cit., p. 114.
[30]  Cf. J. L. Borges, “Kafka y sus precursores”, in: Otras Inquisiciones (1952).
[31]  Cf. Sylvia Molloy, op. cit., p. 197.
[32]  Cf. Marcel Raymond, op. cit., p. 141.
[33]  Cf. George Santayana, Filosofia del Viagem (1912).


In: CARTAPHILUS - Revista de Investigación y Crítica Estética, nº 4 (2008), p. 38-49


Este texto foi apresentado, numa versão abreviada, como comunicação ao V Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) realizado na Universidade de Minnesota em Outubro de 2006

Ler o texto completo aqui


Imagem: 1ª edição de Os passeios do sonhador solitário

sábado, 19 de janeiro de 2013



Intertextualidade em Os Passeios do Sonhador Solitário de Almeida Faria
 
“O silêncio é, de todos os rumores,
O mais próximo da nascente”
 
Eugénio de Andrade
 
“A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu, voyelles,
Je dirai un jour vos naissances latentes”
 
A. Rimbaud
       Numa entrevista gravada em vídeo na Universidade de Georgetown em 1984, Almeida Faria afirmava estar a começar uma nova fase na sua produção literária, concluída a Tetralogia Lusitana com o último volume, Cavaleiro Andante, ao qual se refere como a “uma espécie de requiem não só pelas minhas personagens, das quais aqui me despeço, mas também por uma certa ideia de Portugal que desapareceu com o fim do império e que traumatizou profundamente grande parte da população portuguesa”.[1] A intenção de produzir uma literatura diferente tem na sua origem a desilusão perante as insuficiências da revolução em Portugal e o desejo de entrar numa nova fase de realismo fantástico, em que a realidade retratada seja dada de modo menos realista.[2]  Essa intenção encontra uma primeira realização no conto Os Passeios do Sonhador Solitário, escrito em 1982-83. O seu método de escrita basear-se-ia nesta fase fortemente em matéria onírica, naturalmente trabalhada depois pelo escritor com pleno uso da razão desperta.[3]  Assim, Os Passeios são dedicados à sua “musa nocturna”, e têm como subtítulo contados por almeida faria a partir da “mise en tombeau” de mário botas. A primeira intertextualidade é, pois, com um desenho do pintor Mário Botas, seu amigo prematuramente desaparecido em 1983. O próprio escritor afirma[4] ter colocado em rigoroso pé de igualdade a pintura e a escrita e retribuído, ao misturá-las, o gesto intertextual do pintor, que gostava de dialogar com os poetas e escritores.[5]  Não era, de certo modo, difícil, dado o carácter literário da própria pintura de Mário Botas.
 
       Para além deste primeiro diálogo intertextual, um segundo é imediatamente evidente no título, que é um pastiche do livro de Jean-Jacques Rousseau Rêveries d’un Promeneur Solitaire (1776-78), diário das rêveries do autor,[6] invertendo em quiasmo os dois primeiros termos, mais ensaístico e autobiográfico o texto de Rousseau e mais ficcional o texto de Almeida Faria. Já Mário Botas revelava uma grande admiração por Rousseau, considerando-o verdadeiramente revolucionário em finais do séc. XVIII pelo carácter intimista e moderno da sua obra.[7] Chega mesmo a desenhá-lo em 1977, inscrevendo no verso “Jean-Jacques Rousseau, citoyen de Genève e seu pupilo Mário Botas”.[8]  Não é, portanto, de espantar que o escritor tenha querido, ao escolher Rousseau como figura tutelar do seu texto, ilustrar o(s) desenho(s) do pintor. O narrador do conto de Almeida Faria partilha com Rousseau, para além do gosto pela filosofia, o gosto pela marcha – “Jamais je n’ai tant pensé, tant existé, tant vécu, tant été moi, si j’ose ainsi dire, que dans les (voyages) que j’ai faits seul et à pied. La marche a quelque chose qui anime et avive les idées”; também Almeida Faria faz dizer o seu narrador/protagonista: “Caminhei longamente pelo parque dentro até não atinar onde estava e me sentir cansado”.[9] Nos dois textos a deriva da marcha está associada à rêverie (Rousseau) e ao sonho (Almeida Faria). A etimologia de rêver é a palavra latina reexvagare, e o primeiro sentido de sonhar é “vagabonder, errer au dehors (...) sortir de soi, de son naturel, s’écarter du chemin tracé, se dévoyer, extravaguer.”[10] A palavra rêverie está em Rousseau, como em Montaigne, de cujos ensaios era grande admirador, ligada à ideia da felicidade conquistada através de uma certa vagabundagem feliz do espírito.[11] As Rêveries terão tido uma importância decisiva na evolução semântica da palavra rêverie entre o séc. XVIII e o séc. XIX. Para os contemporâneos de Rousseau, a palavra teria o significado de folies. É mérito de Rousseau ter dado um sentido positivo à palavra, que evolui do sentido pejorativo de délire, que tinha na época clássica, para o sentido de meditação que tem já no início do séc. XIX. O sonhador, rêveur, seria aquele que escuta a sua vida interior, e a rêverie, o devaneio passa a ser o espelho da alma do “homem segundo a natureza”.[12] Nas Rêveries o termo vai aparecer nas seguintes acepções: méditation no primeiro Passeio, contemplation, chimère, égarements, imagination e amusement no sétimo Passeio, sempre num contexto hedonista de jouissance, plaisir, joie.[13] O devaneio aparece em Rousseau como condição indispensável para a busca da felicidade individual e implica a ociosidade, o farniente do quinto Passeio, uma certa liberdade e vagabundagem do espírito que opõe a rêverie ao trabalho intelectual, com abolição das categorias de tempo e espaço.[14] A rêverie pura, que é interior e muda, está condenada à exterioridade e opacidade da escrita; mas sendo a escrita-leitura um acto não só de reflexão, mas sobretudo de rememoração, escrever será reviver, tentando reconquistar a essência evasiva do passado e daquilo que é inefável.[15] Este trabalho de leitura, a que Jean Starobinski chama “rêverie seconde”, consiste em “résorber la multiplicité et la discontinuité de l’expérience vécue, en inventant un discours unifiant au sein duquel tout viendrait se compenser et s’égaliser.” [16] Esta procura intimista da felicidade terá pouco a ver com a rêverie romântica que é vizinha do ennui, estado psicológico do poeta romântico que traduz a profunda inadaptação do eu ao mundo.[17] Estas rêveries são realmente devaneios, mais do que sonhos, condizendo a palavra com os passeios solitários e a vagabundagem criativa do autor.
 
       O título do conto de Almeida Faria não utiliza a palavra rêverie, demasiado delicada talvez e algo démodée para a vigorosa ironia do autor. Este sonhador que, numa das suas viagens, passeia na Nova Iorque nocturna, é mais moderno, o sonho tem aqui um sentido muito mais surrealista, como algo relacionado com as pulsões mais profundas do eu, que eventualmente poderá ajudar a manifestar-se. Enquanto Rousseau, cansado da sociedade humana e desiludido com os seus semelhantes, passeia em plena natureza mesmo sem sair de Paris, fazendo prova por essa comunhão do primitivismo que defende em outros ensaios e obras, o narrador de primeira pessoa de Os Passeios do Sonhador Solitário, protagonista do conto, encontra-se na cidade de Nova Iorque à procura do seu eu mais profundo e verdadeiro, num mundo estrangeiro e estranho, diferente entre os diferentes – note-se desde logo o emprego de inúmeras palavras estrangeiras sem uso do itálico, sobretudo da língua inglesa e francesa. Este dépaysement é, no entanto, sobretudo de si mesmo, como se estivesse o narrador/protagonista “en étrange pays dans son pays lui-même”,[18] sentindo ainda a afirmação de Rimbaud que resume o sentimento de alienação radical do eu dos Modernos, “Je est un autre”.[19] Que se trata de investigação do inconsciente é claro desde logo no início do conto pela localização no metropolitano, no subway nova-iorquino, e pela predominância, ao longo do conto, de cenas nocturnas, mal iluminadas e passadas mesmo em cenários de bas fonds. O próprio autor refere na Entrevista em Georgetown o valor terapêutico que este tipo de escrita teria tido para ele nessa fase.[20] E a influência de Rimbaud ecoa ainda nas palavras de uma das personagens fantásticas do conto, um homem-cão, que se apresenta como primogénito de Rousseau, e que fala a certa altura da sua narrativa na sua “saison chez Wundt”, referência ao texto de Rimbaud Une Saison en Enfer. Rousseau descreve-se nas Rêveries como estranho aos outros homens mas em paz consigo mesmo, em comunhão com todos os seres e com a natureza. A Paris das várias Promenades não é a cidade, mas mais natureza, paisagem, e é nessa paisagem que Rousseau procura a paz interior, identificando-se com ela. Demasiado preocupado com a crítica da sociedade e dos outros para se preocupar demasiado com as suas próprias contradições, o eu que lhe oferece refúgio seguro é ainda um modelo de sujeito unívoco, não contraditório do iluminismo.[21] E isto apesar de, no auto-retrato que nos traça através de vários textos – as Confessions, os Dialogues, as Rêveries, as cartas a Malesherbes, as notas agrupadas sob o título de Mon portrait, e o ensaio Persifleur, Rousseau se nos apresentar como uma natureza complexa e rica, um “homem das sensações”, com gosto pelo paradoxo e um temperamento ciclotímico que constantemente o faz tornar-se “outro”. Mas toda esta natureza aparentemente contraditória se metamorfoseia por seu turno no exercício da rêverie, que revela uma unidade última do ser em comunhão com a natureza, uma plenitude que é “permanência no ser”.[22] Em resumo, poderíamos dizer que toda a ruptura da continuidade do eu que se sente tornar-se um outro se transforma em Rousseau em metamorfose e unidade do ser, em integração, no eu, do outro.[23] O sujeito problemático e dividido, dilacerado, surge com os Românticos, de que o Surrealismo e toda a Modernidade, incluindo a Pós-Modernidade, são herdeiros.[24]
 
(a continuar)
 
Ana Maria Delgado (Universidade de Georgetown / Instituto Camões)
 
In: CARTAPHILUS 4 - Revista de Investigación y Crítica Estética (2008), p. 38-49

 

Este texto foi apresentado numa versão abreviada como comunicação ao V Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) realizado na Universidade de Minnesota em Outubro de 2006
 

Ler o texto completo aqui


Imagem: capa da 2ª edição de Os passeios do sonhador solitário, sobre desenho de Mário Botas


[1]  Cf. Almeida Faria, Entrevista na Universidade de Georgetown em 1984 (gravação em vídeo: National Conference of the Teaching of Portuguese. Author Series 1984).
[2]  Cf. id. ibid., “Não volto, julgo que não volto a esta família (a da Tetralogia Lusitana), e gostava de fazer um tipo de literatura diferente, talvez que a decepção perante o fracasso que foi em grande parte a revolução em Portugal me tenha levado a preferir falar de uma realidade irreal, se é que se pode dizer isto, ou de um realismo fantástico, que eu comecei a abordar numa novela curta, também ilustrada por Mário Botas, e que eu considero, apesar de curta, uma das obras mais estimulantes que eu escrevi.”
[3]  Cf. id. ibid., “Eu devo confessar que escrevo, quando tenho tempo, de manhã, gosto de escrever de manhã, levanto-me às 6 ou 7 da manhã e tento captar os restos dos meus sonhos. E a partir dessas imagens vagas que nos ficam dos sonhos eu geralmente parto para histórias que podem até não ter nada a ver com aquela imagem ou resto dela, mas que me estimulam a imaginação para uma ficção, uma invenção”, e  “a obra tem de ser depois corrigida à luz implacável da vigília, do dia, da consciência e da razão. Deste diálogo entre o inconsciente e a consciência é que eu julgo que pode nascer alguma coisa de válido, que eu julgo que ainda não escrevi, mas que um dia espero vir a escrever.”
[4]  Cf. id. ibid., “Este livro não foi ilustrado por Mário Botas, fui eu que ilustrei um desenho dele, chamado em francês justamente mise en tombeau, e que apresenta figuras extremamente inquietantes, uma delas é um auto-retrato do pintor, e as outras são figuras dificilmente definíveis, mas com facies de cão, e de outros animais fantásticos.” Trata-se de facto de um desenho e de uma colagem sobre esse desenho: “Em Mise au tombeau, um duplo do pintor flutua em imponderabilidade entre monstros que procriou. Numa transformação desse quadro operada por colagem e intitulada Íamos na minha saison chez Wundt..., a figura central, híbrida de homem e cão, ressurge sob a configuração do artista, que assim afirma a sua errância pelos seus mundos.” – cf. António Vieira, A Fenomenologia da Criação Artística em Mário Botas. Porto, 1984, p. 18-9.
[5] Cf. id. ibid., p. 35: “Fui sempre um pintor do lado da escrita, opondo-me e unindo-me a ela. O que pinto gosta de se encontrar com as palavras, sobretudo com as palavras dos outros.”; e ainda, distanciando-se do estatuto de ilustrador e reivindicando para si o estatuto poético e fantástico de “pintor-poeta” e de co-autor: “Raramente procuro ilustrar, mas antes realizar uma obra paralela que só se esclareça inteiramente pelo relacionamento feito entre ambas.” – cf. José Manuel de Vasconcelos, “Os demónios da interioridade – a propósito da pintura de Mário Botas”, in: Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes. Lisboa, 1999, p. 46. Vd. a este propósito o artigo de Eduardo Lourenço, “Mário Botas ou a pintura como poesia”, in: E. L., O Espelho Imaginário. 21996, p. 169-174.
[6] Neste diário, Rousseau teria inventado uma forma literária nova, a rêverie poética em prosa – cf. Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. Érik Leborgne. Paris, 1997, p. 27.
[7]  Cf. Almeida Faria, “O pintor à porta dos infernos”, in: Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes, p. 11, citando Botas: “A grande revolução do fim do século XVIII não é a turba a cortar sucessivamente as cabeças a Luís XVI, a Danton e a Robespierre. É Jean-Jacques a escrever As Confissões. A minha pintura assume naturalmente esse descuidado rigor de um diário ou de uma confissão. (...) Rousseau foi um dos mitos da minha adolescência”.
[8]  Cf. Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes, p. 169.
[9]  Cf. Almeida Faria, Os Passeios do Sonhador Solitário. 1982, p. 23.
[10]  Cf. Marcel Raymond, La quête de soi et la rêverie. Paris, 1962, p. 159.
[11]  Cf.id. ibid., p. 186.
[12]  Cf. Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. cit., p. 36.
[13]  Cf. id. ibid.
[14]  Cf. id. ibid., p. 36-39.
[15]  Cf. Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau. La Transparence et l’obstacle. Paris, 1971, p. 416-7.
[16]  Cf. id. ibid., p. 419.
[17]  Cf. J.-J. Rousseau, op. cit., p. 41.
[18]  Cf. o título de Louis Aragon, En étrange pays dans mon pays lui-même (1945).
[19] Cf. Arthur Rimbaud, “Lettre à Georges Izambard”, mai 1871 (“JE est un autre”), e “Lettre à Paul Demeny”, mai 1871 ( “Car Je est un autre”). In : Arthur Rimbaud, Oeuvres. Ed. A. Adam. Paris, 1957.
[20]  Cf. Entrevista em Georgetown: “Esta técnica para mim é hoje de certo modo uma psicanálise que faço de mim mesmo e que me permite um certo equilíbrio psíquico, julgo eu que sem escrever eu teria tensões profundas, e como tal a escrita é-me útil e até necessária.”
[21]  Cf. J.-J. Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. cit., p. 31-2: “Plus qu’un opposant des Lumières, Rousseau en est peut-être un révélateur, dans le sens où son oeuvre élabore une critique interne de la pensée philosophique du XVIIIe siècle.”
[22]  Cf. Robert Mauzi, L’ idée du bonheur dans la littérature et la pensée française au XVIIIe siècle. Paris, 1994, p. 297.
[23]  Cf. Marcel Raymond, op. cit., p. 47; vd. também p. 75:  “Rousseau parvient (…) au sentiment de l’unité et de l’unicité de son être.”
[24]  Cf. id. ibid., 193: “L’homme moderne, l’homme de l’Occident, est obsédé par sa figure, son double. (...) Depuis la fin du moyen âge, depuis l’époque où l’on a commencé à se contempler dans les beaux miroirs polis des Vénitiens, depuis Pétrarque, depuis Montaigne, plus précisément depuis Rousseau – à travers le romantisme, le symbolisme, l’existentialisme, Baudelaire, Amiel, Kirkegaard, Nietzsche, Mallarmé, Valéry, Kakfa – une part essentielle de l’aventure de l’homme moderne est celle de la conscience de soi comme hantise – et aussi comme passion.”