sábado, 19 de janeiro de 2013



Intertextualidade em Os Passeios do Sonhador Solitário de Almeida Faria
 
“O silêncio é, de todos os rumores,
O mais próximo da nascente”
 
Eugénio de Andrade
 
“A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu, voyelles,
Je dirai un jour vos naissances latentes”
 
A. Rimbaud
       Numa entrevista gravada em vídeo na Universidade de Georgetown em 1984, Almeida Faria afirmava estar a começar uma nova fase na sua produção literária, concluída a Tetralogia Lusitana com o último volume, Cavaleiro Andante, ao qual se refere como a “uma espécie de requiem não só pelas minhas personagens, das quais aqui me despeço, mas também por uma certa ideia de Portugal que desapareceu com o fim do império e que traumatizou profundamente grande parte da população portuguesa”.[1] A intenção de produzir uma literatura diferente tem na sua origem a desilusão perante as insuficiências da revolução em Portugal e o desejo de entrar numa nova fase de realismo fantástico, em que a realidade retratada seja dada de modo menos realista.[2]  Essa intenção encontra uma primeira realização no conto Os Passeios do Sonhador Solitário, escrito em 1982-83. O seu método de escrita basear-se-ia nesta fase fortemente em matéria onírica, naturalmente trabalhada depois pelo escritor com pleno uso da razão desperta.[3]  Assim, Os Passeios são dedicados à sua “musa nocturna”, e têm como subtítulo contados por almeida faria a partir da “mise en tombeau” de mário botas. A primeira intertextualidade é, pois, com um desenho do pintor Mário Botas, seu amigo prematuramente desaparecido em 1983. O próprio escritor afirma[4] ter colocado em rigoroso pé de igualdade a pintura e a escrita e retribuído, ao misturá-las, o gesto intertextual do pintor, que gostava de dialogar com os poetas e escritores.[5]  Não era, de certo modo, difícil, dado o carácter literário da própria pintura de Mário Botas.
 
       Para além deste primeiro diálogo intertextual, um segundo é imediatamente evidente no título, que é um pastiche do livro de Jean-Jacques Rousseau Rêveries d’un Promeneur Solitaire (1776-78), diário das rêveries do autor,[6] invertendo em quiasmo os dois primeiros termos, mais ensaístico e autobiográfico o texto de Rousseau e mais ficcional o texto de Almeida Faria. Já Mário Botas revelava uma grande admiração por Rousseau, considerando-o verdadeiramente revolucionário em finais do séc. XVIII pelo carácter intimista e moderno da sua obra.[7] Chega mesmo a desenhá-lo em 1977, inscrevendo no verso “Jean-Jacques Rousseau, citoyen de Genève e seu pupilo Mário Botas”.[8]  Não é, portanto, de espantar que o escritor tenha querido, ao escolher Rousseau como figura tutelar do seu texto, ilustrar o(s) desenho(s) do pintor. O narrador do conto de Almeida Faria partilha com Rousseau, para além do gosto pela filosofia, o gosto pela marcha – “Jamais je n’ai tant pensé, tant existé, tant vécu, tant été moi, si j’ose ainsi dire, que dans les (voyages) que j’ai faits seul et à pied. La marche a quelque chose qui anime et avive les idées”; também Almeida Faria faz dizer o seu narrador/protagonista: “Caminhei longamente pelo parque dentro até não atinar onde estava e me sentir cansado”.[9] Nos dois textos a deriva da marcha está associada à rêverie (Rousseau) e ao sonho (Almeida Faria). A etimologia de rêver é a palavra latina reexvagare, e o primeiro sentido de sonhar é “vagabonder, errer au dehors (...) sortir de soi, de son naturel, s’écarter du chemin tracé, se dévoyer, extravaguer.”[10] A palavra rêverie está em Rousseau, como em Montaigne, de cujos ensaios era grande admirador, ligada à ideia da felicidade conquistada através de uma certa vagabundagem feliz do espírito.[11] As Rêveries terão tido uma importância decisiva na evolução semântica da palavra rêverie entre o séc. XVIII e o séc. XIX. Para os contemporâneos de Rousseau, a palavra teria o significado de folies. É mérito de Rousseau ter dado um sentido positivo à palavra, que evolui do sentido pejorativo de délire, que tinha na época clássica, para o sentido de meditação que tem já no início do séc. XIX. O sonhador, rêveur, seria aquele que escuta a sua vida interior, e a rêverie, o devaneio passa a ser o espelho da alma do “homem segundo a natureza”.[12] Nas Rêveries o termo vai aparecer nas seguintes acepções: méditation no primeiro Passeio, contemplation, chimère, égarements, imagination e amusement no sétimo Passeio, sempre num contexto hedonista de jouissance, plaisir, joie.[13] O devaneio aparece em Rousseau como condição indispensável para a busca da felicidade individual e implica a ociosidade, o farniente do quinto Passeio, uma certa liberdade e vagabundagem do espírito que opõe a rêverie ao trabalho intelectual, com abolição das categorias de tempo e espaço.[14] A rêverie pura, que é interior e muda, está condenada à exterioridade e opacidade da escrita; mas sendo a escrita-leitura um acto não só de reflexão, mas sobretudo de rememoração, escrever será reviver, tentando reconquistar a essência evasiva do passado e daquilo que é inefável.[15] Este trabalho de leitura, a que Jean Starobinski chama “rêverie seconde”, consiste em “résorber la multiplicité et la discontinuité de l’expérience vécue, en inventant un discours unifiant au sein duquel tout viendrait se compenser et s’égaliser.” [16] Esta procura intimista da felicidade terá pouco a ver com a rêverie romântica que é vizinha do ennui, estado psicológico do poeta romântico que traduz a profunda inadaptação do eu ao mundo.[17] Estas rêveries são realmente devaneios, mais do que sonhos, condizendo a palavra com os passeios solitários e a vagabundagem criativa do autor.
 
       O título do conto de Almeida Faria não utiliza a palavra rêverie, demasiado delicada talvez e algo démodée para a vigorosa ironia do autor. Este sonhador que, numa das suas viagens, passeia na Nova Iorque nocturna, é mais moderno, o sonho tem aqui um sentido muito mais surrealista, como algo relacionado com as pulsões mais profundas do eu, que eventualmente poderá ajudar a manifestar-se. Enquanto Rousseau, cansado da sociedade humana e desiludido com os seus semelhantes, passeia em plena natureza mesmo sem sair de Paris, fazendo prova por essa comunhão do primitivismo que defende em outros ensaios e obras, o narrador de primeira pessoa de Os Passeios do Sonhador Solitário, protagonista do conto, encontra-se na cidade de Nova Iorque à procura do seu eu mais profundo e verdadeiro, num mundo estrangeiro e estranho, diferente entre os diferentes – note-se desde logo o emprego de inúmeras palavras estrangeiras sem uso do itálico, sobretudo da língua inglesa e francesa. Este dépaysement é, no entanto, sobretudo de si mesmo, como se estivesse o narrador/protagonista “en étrange pays dans son pays lui-même”,[18] sentindo ainda a afirmação de Rimbaud que resume o sentimento de alienação radical do eu dos Modernos, “Je est un autre”.[19] Que se trata de investigação do inconsciente é claro desde logo no início do conto pela localização no metropolitano, no subway nova-iorquino, e pela predominância, ao longo do conto, de cenas nocturnas, mal iluminadas e passadas mesmo em cenários de bas fonds. O próprio autor refere na Entrevista em Georgetown o valor terapêutico que este tipo de escrita teria tido para ele nessa fase.[20] E a influência de Rimbaud ecoa ainda nas palavras de uma das personagens fantásticas do conto, um homem-cão, que se apresenta como primogénito de Rousseau, e que fala a certa altura da sua narrativa na sua “saison chez Wundt”, referência ao texto de Rimbaud Une Saison en Enfer. Rousseau descreve-se nas Rêveries como estranho aos outros homens mas em paz consigo mesmo, em comunhão com todos os seres e com a natureza. A Paris das várias Promenades não é a cidade, mas mais natureza, paisagem, e é nessa paisagem que Rousseau procura a paz interior, identificando-se com ela. Demasiado preocupado com a crítica da sociedade e dos outros para se preocupar demasiado com as suas próprias contradições, o eu que lhe oferece refúgio seguro é ainda um modelo de sujeito unívoco, não contraditório do iluminismo.[21] E isto apesar de, no auto-retrato que nos traça através de vários textos – as Confessions, os Dialogues, as Rêveries, as cartas a Malesherbes, as notas agrupadas sob o título de Mon portrait, e o ensaio Persifleur, Rousseau se nos apresentar como uma natureza complexa e rica, um “homem das sensações”, com gosto pelo paradoxo e um temperamento ciclotímico que constantemente o faz tornar-se “outro”. Mas toda esta natureza aparentemente contraditória se metamorfoseia por seu turno no exercício da rêverie, que revela uma unidade última do ser em comunhão com a natureza, uma plenitude que é “permanência no ser”.[22] Em resumo, poderíamos dizer que toda a ruptura da continuidade do eu que se sente tornar-se um outro se transforma em Rousseau em metamorfose e unidade do ser, em integração, no eu, do outro.[23] O sujeito problemático e dividido, dilacerado, surge com os Românticos, de que o Surrealismo e toda a Modernidade, incluindo a Pós-Modernidade, são herdeiros.[24]
 
(a continuar)
 
Ana Maria Delgado (Universidade de Georgetown / Instituto Camões)
 
In: CARTAPHILUS 4 - Revista de Investigación y Crítica Estética (2008), p. 38-49

 

Este texto foi apresentado numa versão abreviada como comunicação ao V Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) realizado na Universidade de Minnesota em Outubro de 2006
 

Ler o texto completo aqui


Imagem: capa da 2ª edição de Os passeios do sonhador solitário, sobre desenho de Mário Botas


[1]  Cf. Almeida Faria, Entrevista na Universidade de Georgetown em 1984 (gravação em vídeo: National Conference of the Teaching of Portuguese. Author Series 1984).
[2]  Cf. id. ibid., “Não volto, julgo que não volto a esta família (a da Tetralogia Lusitana), e gostava de fazer um tipo de literatura diferente, talvez que a decepção perante o fracasso que foi em grande parte a revolução em Portugal me tenha levado a preferir falar de uma realidade irreal, se é que se pode dizer isto, ou de um realismo fantástico, que eu comecei a abordar numa novela curta, também ilustrada por Mário Botas, e que eu considero, apesar de curta, uma das obras mais estimulantes que eu escrevi.”
[3]  Cf. id. ibid., “Eu devo confessar que escrevo, quando tenho tempo, de manhã, gosto de escrever de manhã, levanto-me às 6 ou 7 da manhã e tento captar os restos dos meus sonhos. E a partir dessas imagens vagas que nos ficam dos sonhos eu geralmente parto para histórias que podem até não ter nada a ver com aquela imagem ou resto dela, mas que me estimulam a imaginação para uma ficção, uma invenção”, e  “a obra tem de ser depois corrigida à luz implacável da vigília, do dia, da consciência e da razão. Deste diálogo entre o inconsciente e a consciência é que eu julgo que pode nascer alguma coisa de válido, que eu julgo que ainda não escrevi, mas que um dia espero vir a escrever.”
[4]  Cf. id. ibid., “Este livro não foi ilustrado por Mário Botas, fui eu que ilustrei um desenho dele, chamado em francês justamente mise en tombeau, e que apresenta figuras extremamente inquietantes, uma delas é um auto-retrato do pintor, e as outras são figuras dificilmente definíveis, mas com facies de cão, e de outros animais fantásticos.” Trata-se de facto de um desenho e de uma colagem sobre esse desenho: “Em Mise au tombeau, um duplo do pintor flutua em imponderabilidade entre monstros que procriou. Numa transformação desse quadro operada por colagem e intitulada Íamos na minha saison chez Wundt..., a figura central, híbrida de homem e cão, ressurge sob a configuração do artista, que assim afirma a sua errância pelos seus mundos.” – cf. António Vieira, A Fenomenologia da Criação Artística em Mário Botas. Porto, 1984, p. 18-9.
[5] Cf. id. ibid., p. 35: “Fui sempre um pintor do lado da escrita, opondo-me e unindo-me a ela. O que pinto gosta de se encontrar com as palavras, sobretudo com as palavras dos outros.”; e ainda, distanciando-se do estatuto de ilustrador e reivindicando para si o estatuto poético e fantástico de “pintor-poeta” e de co-autor: “Raramente procuro ilustrar, mas antes realizar uma obra paralela que só se esclareça inteiramente pelo relacionamento feito entre ambas.” – cf. José Manuel de Vasconcelos, “Os demónios da interioridade – a propósito da pintura de Mário Botas”, in: Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes. Lisboa, 1999, p. 46. Vd. a este propósito o artigo de Eduardo Lourenço, “Mário Botas ou a pintura como poesia”, in: E. L., O Espelho Imaginário. 21996, p. 169-174.
[6] Neste diário, Rousseau teria inventado uma forma literária nova, a rêverie poética em prosa – cf. Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. Érik Leborgne. Paris, 1997, p. 27.
[7]  Cf. Almeida Faria, “O pintor à porta dos infernos”, in: Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes, p. 11, citando Botas: “A grande revolução do fim do século XVIII não é a turba a cortar sucessivamente as cabeças a Luís XVI, a Danton e a Robespierre. É Jean-Jacques a escrever As Confissões. A minha pintura assume naturalmente esse descuidado rigor de um diário ou de uma confissão. (...) Rousseau foi um dos mitos da minha adolescência”.
[8]  Cf. Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes, p. 169.
[9]  Cf. Almeida Faria, Os Passeios do Sonhador Solitário. 1982, p. 23.
[10]  Cf. Marcel Raymond, La quête de soi et la rêverie. Paris, 1962, p. 159.
[11]  Cf.id. ibid., p. 186.
[12]  Cf. Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. cit., p. 36.
[13]  Cf. id. ibid.
[14]  Cf. id. ibid., p. 36-39.
[15]  Cf. Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau. La Transparence et l’obstacle. Paris, 1971, p. 416-7.
[16]  Cf. id. ibid., p. 419.
[17]  Cf. J.-J. Rousseau, op. cit., p. 41.
[18]  Cf. o título de Louis Aragon, En étrange pays dans mon pays lui-même (1945).
[19] Cf. Arthur Rimbaud, “Lettre à Georges Izambard”, mai 1871 (“JE est un autre”), e “Lettre à Paul Demeny”, mai 1871 ( “Car Je est un autre”). In : Arthur Rimbaud, Oeuvres. Ed. A. Adam. Paris, 1957.
[20]  Cf. Entrevista em Georgetown: “Esta técnica para mim é hoje de certo modo uma psicanálise que faço de mim mesmo e que me permite um certo equilíbrio psíquico, julgo eu que sem escrever eu teria tensões profundas, e como tal a escrita é-me útil e até necessária.”
[21]  Cf. J.-J. Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. cit., p. 31-2: “Plus qu’un opposant des Lumières, Rousseau en est peut-être un révélateur, dans le sens où son oeuvre élabore une critique interne de la pensée philosophique du XVIIIe siècle.”
[22]  Cf. Robert Mauzi, L’ idée du bonheur dans la littérature et la pensée française au XVIIIe siècle. Paris, 1994, p. 297.
[23]  Cf. Marcel Raymond, op. cit., p. 47; vd. também p. 75:  “Rousseau parvient (…) au sentiment de l’unité et de l’unicité de son être.”
[24]  Cf. id. ibid., 193: “L’homme moderne, l’homme de l’Occident, est obsédé par sa figure, son double. (...) Depuis la fin du moyen âge, depuis l’époque où l’on a commencé à se contempler dans les beaux miroirs polis des Vénitiens, depuis Pétrarque, depuis Montaigne, plus précisément depuis Rousseau – à travers le romantisme, le symbolisme, l’existentialisme, Baudelaire, Amiel, Kirkegaard, Nietzsche, Mallarmé, Valéry, Kakfa – une part essentielle de l’aventure de l’homme moderne est celle de la conscience de soi comme hantise – et aussi comme passion.”