Intertextualidade no conto de Almeida Faria Os passeios do sonhador solitário
(cont.)
Em Os Passeios do Sonhador Solitário
o sujeito surge acompanhado por vários duplos. O autor que narra, presente no
título do conto - narrados por almeida faria a partir da “mise en tombeau” de mário botas
– e o narrador de primeira pessoa,
protagonista do conto, confundem-se entre si, sendo este narrador um primeiro
duplo no texto. Um segundo duplo é o contador de estórias dentro do conto, o
primogénito de Jean-Jacques Rousseau, figura estranha de homem-cão,
eventualmente reminiscente também do texto de Dylan Thomas,[1]
do qual o narrador nos diz no relato da quarta noite “Oxalá o meu melancólico
contador de estórias não me abandone na última noite”.[2]
Esta figura híbrida é nitidamente uma ilustração do desenho de Mário Botas, que
repetidamente desenhou animais, nomeadamente cães.[3]
Esta figura de natureza dupla reflectiria uma das naturezas eventualmente
reprimidas do narrador/protagonista, já que o seu avizinhar-se faz fugir a
rapariga-pássaro prestes a seduzi-lo ou a ser por ele seduzida em Central Park.
Consciência dessa repressão, ou não integração dessa natureza dupla,
contraditória, num modelo que se quer uniforme, claro e racional, pode ver-se
ainda no seguinte passo: “O meu desejo de adesão ao quotidiano justifica a
negação de outras zonas, onde reina a sombra?”[4]
Outros duplos no texto são ainda o editor americano do protagonista, Tom,
“muito parecido comigo, podia ser eu mesmo se tivesse nascido noutro país,
escolhido outra vida.”[5]
O poeta soviético exilado que o protagonista conhecera no Rio é outro duplo, já
que o seu nome, Joe Brodsky, repete iniciais do nome próprio do autor.[6]
Esta tendência para ver em toda a realidade circundante reflexos do próprio eu mostra a preocupação com uma
coerência e equilíbrio psíquico que dificilmente se atinge. A solidão do sonhador será, assim, de tipo muito
diferente da do promeneur de
Rousseau. O conto de Almeida Faria move-se entre a escrita surrealista e a
desconstrução do texto de Rousseau, residindo a principal diferença entre os
dois textos na quase constante ironia do conto de Almeida Faria, apenas
interrompida em dois passos que adiante analisaremos (o passo no qual se refere
a relação da escrita de Rousseau com o coração/verdade e com o
sentimento/sinceridade, e o final), e presente no próprio título como pastiche do título de Rousseau. O último
duplo, e também o mais complexo, surge como “recordação intempestiva”[7]
a meio da cena com a rapariga-pássaro de Central Park: o protagonista/narrador
lembra-se de “um amigo perdido, anos atrás”[8],
naquela mesma cidade após um jantar, perdera-se na noite ao atravessar uma
passadeira, “enquanto eu olhava a montra da livraria iluminada, única fonte de
luz naquela rua”[9],
“raivoso contra os livros que teriam sido a sua ruína porque também sempre
foram a minha.”[10]
Será este, provavelmente, o duplo que mais próximo está da voz que narra e do
próprio autor, espécie de assinatura da obra dentro dela própria.
Enquanto a Paris de Rousseau é
sempre paisagem, mais campestre que urbana, a Nova Iorque de Almeida Faria é
sempre a cidade moderna, mesmo quando o protagonista deambula à noite em
Central Park. A cidade nocturna descrita em Os Passeios contém
pesadelos, seres mortos-vivos, de natureza dupla, seres inacabados, abortos,
como os irmãos do homem-cão, figuras fantásticas, indefinidas, e a mandrágora,
transição de vegetal para animal, seres entre devir e morte, em resumo,
monstros, figuras de pesadelo, que dão à cidade um ambiente infernal. Na noite
de Central Park, a segunda noite, é sugerida ao leitor uma celebração
dionisíaca, com uma erínea (fúria), um golem e a mandrágora, em toda uma
atmosfera ctoniana, da terra no seu aspecto interno, obscuro e subterrâneo,
ligado à germinação e morte.[11]
Um outro duplo surge nesta atmosfera, o duplo mais sombrio e ameaçador: “um
golem mimeticamente igual a mim aguardava a minha chegada ao túmulo da fúria
para me encontrar face a face, me predizer que outro duplo um dia virá
substituir-me na vida e hei-de embarcar para onde ninguém de mim se lembre.”[12]
O golem significa, na tradição judaico-cabalística, uma espécie de homem-robot,
criado artificialmente, desafiando a criação de Adão por Deus. O golem é mudo,
pois os homens não foram capazes de lhe dar a palavra.[13]
O golem é, num sentido mais interiorizado, uma imagem do seu criador humano, de
uma das suas paixões que cresceu e ameaça destruí-lo[14]
– aparece assim ligado ao momento da morte do sujeito, que analisaremos mais
adiante. A mandrágora poderia surgir neste contexto nocturno-subterrâneo na sua
simbologia ligada à fecundidade, à riqueza e ao futuro, como um talismã
protector na noite dionisíaca. Apesar de ser um poderoso veneno, doseada pode
revelar virtudes curativas e eficácia espiritual[15]:
“Estendi os braços para alcançar o golem de olhos mortos, vidro ou plástico sem
brilho, material mortiço, mas desfez-se no nevoeiro e a mão direita agarrou uma
raiz semelhante a um homúnculo soltando gritos de mansinho como se fosse um
bicho. ‘É a mandrágora’, explicou o meu guia, ‘ela o protegerá entre os abismos
se a não perder, mais não sei.”[16]
O próprio cão está também ligado ao mundo da morte e dos infernos, ao mundo
subterrâneo das divindades ctonianas e das forças invisíveis, ligado por isso
também ao inconsciente. A sua principal função mítica é guiar o homem na noite
da morte, depois de o ter acompanhado durante a vida.[17]
Na terceira noite, o narrador interroga-se sobre “as fabulosas aparições do
parque, e o tremendo oráculo afirmando a iminência do sósia, ditada pelo golem
de morta matéria, não de ardida madeira.”[18]
A atmosfera das várias noites, sobretudo da noite do parque e da última noite é
uma atmosfera ctoniana de situações-limite, que anunciam acontecimentos
decisivos, provocando sentimentos de terror, como pólo oposto aos sentimentos
de segurança, de força e de optimismo,[19]
assim como as Eríneas, nome grego das Fúrias, com forma de cão ou serpente,
vingam os erros dos homens, aterrorizando-os.
A cidade tal como nos aparece
em Os Passeios está muito longe da concepção utópica do séc. XIX;
o autor não está interessado em descrições simplistas do céu, como podemos ver
no seguinte passo: “Ignoro o sítio do paraíso (...) Imagino que seja no etéreo,
guarida de anjos da guarda em guaritas de cristal, transparentes, estéreis, e
onde só se entra com visto emitido pelos altos funcionários do celeste partido,
na directa dependência de Deus e reservado aos diferentes felizes.”[20]
A Modernidade como tempo de Inferno é, também para Walter Benjamin, a antítese
dialéctica das descrições feitas no séc. XIX da realidade moderna como uma
Idade de Oiro, e funciona como crítica radical desta concepção.[21]
Na cidade moderna, o sonhador é mais flâneur
do que promeneur, não só pela
paisagem citadina e urbana em que se move, mas também pela deriva à procura da
sua natureza mais profunda, do seu eu
mais verdadeiro. Há uma profunda ironia nesta procura, que se disfarça numa
busca do “animal imaginário que mais me convinha”.[22]
A proximidade da escrita surrealista vem desde logo pelo anúncio do método de
criação poética.[23]
Mas também no texto é evidente pelo ponto de partida, o desenho de Mário Botas,
auto-retrato inquietante, numa atmosfera onírica, de pesadelo, rodeado de seres
fantásticos, inacabados. A intertextualidade com o pintor sugere também a
temática baudelairiana do spleen, que
Botas transforma em le spleen de moi-même,
centrando ainda mais no sujeito a problemática existencial, revelando a
influência de Egon Schiele.[24]
Almeida Faria considera os cinquenta e um desenhos que Mário Botas fez sobre Le
Spleen de Paris de Baudelaire a sua obra-prima.[25]
Para Walter Benjamin, autor de ensaios sobre Baudelaire e o flâneur, aquilo que transforma o tédio
em spleen é a alienação do eu.[26]
Daí a importância da ligação, também no texto que analisamos, entre flânerie e procura do eu. A divagação de Rousseau, mais
próxima do ensaio e da autobiografia, dá aqui lugar à ficção narrativa, à
deambulação e flânerie em que o sonho
é mais próximo do inconsciente do que da razão clara. A deambulação do sonhador
na cidade de Nova Iorque levaria ao descobrimento da vida escondida,
inconsciente do eu, e à omnipresença
de Rimbaud e da Modernidade, ao reconhecer no final do conto que o eu vivido é um estranho, ou que o eu mais profundo seria afinal um outro:
“Recordo agora que, na noite do parque, ao caminhar sonâmbulo para casa, passei
por uma loja de audiovisuais, parei ao ver num dos écrans, em feedback, o que a
minha vida foi, e noutro o vídeo do que podia ter sido. Entre ambos a distância
era infinita.“[27] O
que o narrador vê projectado nos vídeos é a memória, retrospectiva e hipotética.
A recordação no final do conto é verdadeiramente arrasadora, o momento de
verdade do sujeito. No lugar da recordação surge a consciência, o momento de
verdade do sujeito, em que a noção de vida como um xerox e de personalidade
como cópia poderia ser substituída por algo de mais autêntico e original. Esta
distinção entre memória e recordação encontra-se no texto de Benjamin,[28]
sendo a memória aquilo que protege as impressões, e a recordação aquilo que as
decompõe, sendo a memória conservadora e a recordação destrutiva. A recordação
garantiria assim, através da montagem a que inevitavelmente procede, a
reversibilidade do destino individual, se não na vida real, pelo menos no seu
registo como recordação.
A solidão do Sonhador
é essencialmente diferente da de Rousseau, já que é uma solidão no meio da
grande cidade e da multidão. Mas, ao contrário da narrativa policial, cujo
conteúdo social, segundo Benjamin, terá sido o apagamento dos vestígios do
indivíduo na multidão da grande cidade, aqui os vestígios que o
protagonista/narrador segue são da interioridade. A exterioridade – os duplos –
representam a interioridade, bem como a cidade é o cenário no qual o narrador
tenta desenhar os traços do seu rosto, da sua identidade. É aqui que cabe referir
e analisar uma última intertextualidade de Os Passeios do Sonhador Solitário,
que é muito mais do que uma companhia ou outro duplo, desde logo pela distância
temporal a que é perspectivado - vinte anos atrás o narrador vira “um
cavalheiro alto, de cabelo branco e pele muito clara, imponente, impecavelmente
vestido e de bengala, apoiado no braço de uma mulher ainda jovem, decerto cego
pelo modo vazio de olhar o espaço; logo o reconheci pelas fotografias, era
Borges.”[29] É
curioso que o escritor argentino seja imediatamente reconhecido pelo narrador,
ao passo que entre o seu eu passado e
o eu hipotético não há uma identidade
reconhecível. A figura de Borges é, não menos do que Rousseau, verdadeiramente
tutelar neste conto – não será mero acaso que a sua breve aparição se situe a
meio do texto. O deambular de ambos pela cidade é semelhante ao vaguear pelos
livros ou pela existência. O narrador/protagonista de Os Passeios define-se – e
é uma das poucas definições que nos fornece[30]
– como “um sonhador sem amada que não seja esta cidade”.[31]
E o começo literário de Borges fez-se com devoção dedicada a uma outra cidade
americana, Buenos Aires.[32]
[1] Cf. Dylan Thomas, Portrait of the Artist As a Young
Dog, 1940.
[2]
Almeida Faria, op. cit., p. 50.
[3]
Mário Botas tinha dois galgos que foram a sua companhia fiel nos últimos
tempos de vida.
[4]
Cf. Almeida Faria, Os Passeios do Sonhador Solitário,
ed. cit., p. 49.
[5]
Cf. id. ibid., p. 37.
[6] Trata-se do poeta russo Joe Brodsky,
vencedor do prémio Nobel da Literatura em 1987, expulso da União Soviética em
1972 e cidadão americano desde 1977.
[7]
Cf. id. ibid., p. 25.
[8]
Cf. id. ibid.
[9]
Cf. id. ibid.
[10]
Cf. id. ibid.
[11]
Cf. J. Chevalier/A. Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles. Paris , 1982 (1ª ed.
1969), p. 248.
[12]
Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 31-2.
[13]
Cf. J. Chevalier / A. Gheerbrant, op. cit., p. 481-2.
[14] Cf. id. ibid.
[15] Cf. id. ibid., p. 608-9.
[16]
Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 32-3.
[17]
Cf. J. Chevalier/A. Gheerbrant, op. cit., p. 239. Curiosamente foi também um cão o agente
involuntário do início da rêverie, derrubando Rousseau, que cai e fica
bastante ferido. Como observa Marcel Raymond, foi preciso uma pequena morte,
uma interrupção da rotina quotidiana, da trama regular de uma vida, para que o
devaneio, a rêverie encontre um objecto, o universo, e com ele se
identifique, fazendo o ser aceder a uma nova ordem de existência. Cf. M.
Raymond, op. cit., p. 184. Durante o
período de convalescença de Rousseau, chega a aparecer no Courrier
d’Avignon uma “oraison funèbre”: “M. Jean-Jacques Rousseau est mort des
suites de sa chute. Il a vécu pauvre, il est mort misérablement; et la
singularité de sa destinée l’a accompagnée jusqu’au tombeau” – cf. J-J.
Rousseau, op. cit., p. 72. Mas muito pelo contrário, Rousseau escreve que “Je
naissais dans cet instant à la vie (…) Je voyais couler mon sang comme j’aurais
vu couler un ruisseau (…) Je sentais dans tout mon être un calme ravissant” –
cf. id. ibid., p. 68.
[18]
Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 49.
[19]
Cf. J. Chevalier/A. Gheerbrant, op. cit., p. 248.
[20]
Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 50.
[21]
Cf. Susan Buck-Morss, The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin
and the Arcades Project. Baskerville,
1989, p. 96.
[22] Cf. Almeida Faria, Os Passeios do Sonhador Solitário, ed. cit., p. 23.
[23]
Cf. Entrevista em Georgetown.
[24]
Cf. Ruth Rosengarten, “Opaca, estendida no insensível curso do tempo:
uma apreciação da obra de Mário Botas”, in: Catálogo da Exposição Mário
Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes. Lisboa, 1999, p. 27.
Segundo a autora, para Botas a modernidade de um autor é determinada não pela
consciência crítica, mas pela sua consciência como criador, sendo
subjectividade e confissão atributos da modernidade, bem como o eu reflexivo e
os duplos.
[25]
Cf. Almeida Faria, “O pintor à porta dos infernos”, in op. cit., p. 15. O desenho Le Poète s’amuse ou le
Poète et sa Muse, de 1978, representa Baudelaire como a musa de Botas.
[26] Cf. Walter Benjamin, "Zentralpark", in: W.
B. Gesammelte Schriften I, 2. Frankfurt a. M. 1974, p. 659.
[27]
Cf. A. F., Os Passeios do Sonhador Solitário, p. 50.
[28]
Cf. Walter Benjamin, “Über einige Motive bei Baudelaire”, p. 119: “Die
Funktion des Gedächtnisses (…) ist der Schutz der Eindrücke. Die Erinnerung
zielt auf ihre Zersetzung. Das Gedächtnis ist im wesentlichen
konservativ, die Erinnerung destruktiv.”, in: W. B., “Der Flaneur”, in: W. B., Charles
Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des
Hochkapitalismus.
Frankfurt a. M. 1969, p. 45.
[29]
Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 22.
[30] A outra definição que nos dá é de “peixe
das profundidades ou filosófica coruja” (p. 16), tentando interpretar a sua
natureza profunda como um animal imaginário, seguindo o Manual de
zoologia fantástica (1957), de J. L. Borges e María Guerrero,
posteriormente publicado com o título El libro de los seres imaginarios
(p. 23).
[31]
Cf. id. ibid., p. 50.
[32]
Cf. Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires (1923).
In: CARTAPHILUS - Revista de Investigación y Crítica Estética, nº 4 (2008), p. 38-49
Este texto foi apresentado, numa versão abreviada, como comunicação ao V Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) realizado na Universidade de Minnesota em Outubro de 2006
Ler o texto completo aqui
Imagem: capa da 1ª edição de Os passeios do sonhador solitário