segunda-feira, 25 de março de 2013







Intertextualidade no conto de Almeida Faria Os passeios do sonhador solitário


(cont.)

       Mas não é só a relação afectiva com a cidade aquilo que liga este conto à escrita de Borges. Os dois instantes de verdade do texto, ou os dois lados do instante de verdade do texto, são uma afirmação das leis, se é que as há, do texto ficcional, com a sua liberdade e o seu “mentir-vrai”.[1] Durante a narração da sua história na terceira noite, em que tatua no braço esquerdo do protagonista hieróglifos para lhe servirem de amuleto em Manhattan,[2] o homem-cão acaba por dizer o que lhe cala mais fundo: “o grande Rousseau julgava-se compositor de génio, a música dele não vale nada e foi escrevendo que embarcou na imortalidade; e contudo deve à música o cerne da sua estética baseada nas leis do coração, não do discurso; mas não é fácil viver com o coração nas mãos, (...) seja sensibilidade ou sinceridade, pois naquilo a que ele chama coração se instala a verdade insofismável, jamais superada embora suprimível, soterrada por tanta má mentira”.[3] Rousseau acredita nas leis do sentimento e da verdade, e Les Rêveries contêm  um capítulo dedicado à verdade, o quarto Passeio, no qual distingue entre a verdade dos factos, a veracidade, e a verdade moral, que respeita ao essencial. A verdade que lhe interessa é a verdade existencial ligada à máxima do templo de Apolo “Conhece-te a ti mesmo”, máxima aliás difícil de seguir, já que toda a representação de si próprio é sempre uma recriação. Os Passeios problematizam sobretudo a escrita de Rousseau como identificando verdade com sinceridade, o que não deixa espaço para o texto ficcional, para o “mentir-vrai”. Por outro lado poderia dizer-se que esta crítica é injusta para com Rousseau, já que a sua sinceridade e preocupação com a verdade, bem como o traçado autobiográfico da sua escrita, são o seu próprio estilo. Pode dizer-se que as regras que aqui reinam são as da afirmação da liberdade do texto ficcional, pelo menos em relação a uma verdade unidimensional. Por outro lado, o problema da relação da verdade com a escrita coloca-se sempre, já que toda a escrita é em certa medida autobiográfica (como dizia Flaubert, “Madame Bovary, c’est moi.”) Escrever implicará então sempre a relação  da memória com a identidade,[4] questão aliás colocada na obra seguinte de Almeida Faria, o romance O Conquistador (1990). O trabalho de leitura é, num texto como Os Passeios, semelhante ao trabalho do detective, que persegue os traços individuais apagados na massa anónima da cidade.[5] Os duplos significam neste contexto sobretudo a dificuldade em compreender a própria identidade, que aparece fragmentada e como que alienada da consciência de si próprio.

 
       E eis-nos assim chegados ao instante de verdade final, à consciência do não reconhecimento do eu passado. O que está projectado nos vídeos/écrans é fixo, é memória, real ou hipotética, daí as designações de “cópia” e “xerox”: “A vida é um xerox; tu uma cópia apenas.”[6] A vida aparece aqui como algo de estranho e exterior ao indivíduo, a que este assiste como a um filme, depois de vaguear sonâmbulo pela cidade, solitário na companhia de um melancólico contador de estórias. A recordação no final do conto é, mais ainda do que transformadora, verdadeiramente arrasadora, uma autêntica mise en tombeau do eu. No lugar da recordação, do que fora fixado pela memória, surge agora a consciência, o instante de  verdade de que fala o narrador/protagonista, e que poderia implicar a substituição de vida como “um xerox” e de personalidade como “uma cópia apenas” por algo que não chega a encontrar formulação neste texto, porque o conto termina aí. Este instante de verdade é comparável à definição dada por Borges de facto estético: “ciertos crepúsculos y ciertos lugares quieren decirnos algo, o algo nos dijeron que nos hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético.”[7] A importância fulcral deste instante é sublinhada pela permanência num presente que parece alargado pela convergência entre passado e futuro – é um instante de simultaneidade, de ligação passado/futuro, um instante de “eternidade”, que Susan Sontag tão bem definiu falando de Borges e citando Browning ao definir o presente como “the instant in which the future crumbles into the past.”[8] A citação implica uma possibilidade de inverter a linearidade temporal, a causalidade, principais razões da estranheza do nosso destino – como escreve Borges, “Nuestro destino no es espantoso por irreal; es espantoso porque es irreversible y de hierro.”[9] A única maneira de escapar, no texto de Borges, à causalidade mesquinha, à repetição, às séries infinitas, à multiplicidade do real, é a própria arte narrativa, já que ela pode inverter a causalidade, a linearidade temporal, significando uma verdadeira libertação. O texto de Borges aproxima-se mais, neste contexto, para alguns intérpretes, do realismo mágico do que do idealismo ou solipsismo – julgo-o mais próximo, no entanto, de uma estética baseada no sonho. Para além de se caracterizar por grande abertura e indeterminação, é um texto no qual tudo pode transformar-se em tudo a qualquer momento.[10] Acresce ao que já foi dito que a definição de facto estético proposta por Borges é uma reminiscência romântica, já que a verdade é indizível para os Românticos, que ao contrário dos Iluministas não acreditavam que fosse possível dizer toda a verdade.[11]


       A posição de observador que deambula incógnito pela cidade[12] faz do narrador alguém que se compraz na contemplação da alteridade e da variedade das vidas humanas, mas ao mesmo tempo o próprio sujeito que percepciona, que observa, fica entregue à deriva da sua observação.[13] Assim, o que afasta Os Passeios do Sonhador Solitário das Rêveries de Rousseau e simultaneamente os aproxima de Borges é este modo de percepcionar a realidade como uma série sucessiva de impressões, que resultam alheias, estranhas, longínquas ao sujeito, que por seu turno permanece incapaz de se reconhecer a si próprio, de se refugiar numa unidade perdida do eu, que permanece em suspenso.[14] Daí a nostalgia por um “instante pleno, absoluto, que contivesse os demais”.[15] A deriva de Rousseau, por seu turno, conduz sempre à revelação da identidade do sujeit; o que ele encontra nos seus passeios é um instante de plenitude, tendo feito em si o vazio, de que é condição o esquecimento, conseguindo assim encontrar se não talvez a experiência mística, pelo menos a revelação da poesia.[16] Tal não acontece em Os Passeios, onde a fragmentação do eu, tão evidente através do aparecimento de múltiplos duplos, corresponde à perda da aura de que fala Benjamin,[17] tal como esse “instante pleno” corresponde à definição dada por Borges de “facto estético”. A perda da aura, da unidade do eu e do seu carácter único, correspondem por sua vez ao fim das grandes narrativas na cultura ocidental, à falta de enquadramento de sentido, de referência . Assim a perda da aura é também a perda da origem como princípio e fim, do silêncio primordial, originário. O que resta, segundo escreve Sylvia Molloy citando Borges, são “exercícios de consolação”, “pequenos agrupamentos parciais”, “identidades momentâneas”.[18]


       Talvez, no entanto, a compreensão de “origem” não como derivação linear de um princípio em direcção a um fim, mas antes tal como a entende Walter Benjamin, possa suprir a falta de enquadramento original e possibilite a construção de sentido e o sentimento de coerência do sujeito sem recorrer às grandes narrativas: “although a thouroughly historical category, (origin) nonetheless has nothing to do with beginnings (...). The term origin does not mean the process of becoming of that which has emerged, but much more, that which emerges out of the process of becoming and disappearing. The origin stands in the flow of becoming as a whirlpool (…); its rhythm is apparent only to a double insight.”[19] Nesta definição, a origem não é linearidade, nem circularidade (eterno retorno), mas sim permanente transformação, contínuo processo de devir e de desaparecer. O deambular na cidade – no espaço – seria deste modo uma negação da falta de liberdade no tempo (irreversibilidade). Para além disso, o deambular pressupõe a ideia de cidade como labirinto com múltiplas saídas, um labirinto sem saída única, i. e., sem metafísica, sem um enquadramento, um referente fixo.


       O final do conto mostra quanto a percepção do eu está ligada à perda da aura na arte – o eu aparece percebido como cópia e a vida como xerox. O narrador não consegue conciliar o eu vivido com o eu potencial. É no momento da perda da aura que a nostalgia de uma experiência aurática é maior, aparecendo a frustração existencial do narrador face às suas potencialidades por realizar como nostalgia de um eu não fragmentado, consciente, único e completo. Mas onde, se não na literatura e na arte, poderá o ser humano procurar a sua própria identidade? Já Borges nos dizia no poema "Arte Poética": “El arte debe ser como ese espejo/ Que nos revela nuestra propia cara.”[20] Mas não haverá um caminho único, conhecido, predestinado. Deambular corresponde mais ao remoinho da origem do que ao curso linear de uma vida. Encontramos esta compreensão do destino humano, por ex., em W. Blake[21] e em F. Hölderlin,[22] que em vez de um único caminho “direito” (“eben”) fazem o elogio do caminho que contém desvios (“crooked road”), mas também em Thomas Mann se encontra a noção de caminho que passa pela morte e a ultrapassa.[23]


       No final, o narrador deseja “Oxalá o meu duplo não aperte os prazos, não venha cedo demais.”[24] A aparição mimética do golem, espécie de cópia mecânica e sem voz, e as designações de vida como xerox e de indivíduo como cópia mostram a preocupação de um autor que foi sempre crítico de um certo realismo e agora defende uma via para a criação literária ligada à imaginação e ao sonho, um realismo fantástico. Memória, cópia, xerox, homem-robot, golem aparecem relacionados com o realismo; recordação, sonho, imaginação, ficção com o realismo fantástico, e na verdade com o próprio texto, que como toda a arte deve nascer da interioridade, não de uma realidade pré-existente. Como diz T. Todorov,  “L’art n’est donc pas la reproduction d’une ‘réalité’, il ne vient pas à la suite de celle-ci en l’imitant; il demande des qualités toutes différentes et être ‘authentique’ peut même, comme dans le cas présent, nuire.” (trata-se do conto de Henry James "The Real Thing", de 1892).[25] A obra de arte não se refere a nada de anterior a si própria, ela é original em si mesma: “Dans le domaine de l’art, il n’y a rien qui soit préalable à l’oeuvre, qui soit son origine; c’est l’oeuvre d’art elle-même qui est originelle, c’est le secondaire qui est le seul primaire. ”[26] Do ponto de vista da criação poética, é isto que este texto de Almeida Faria, entre a escrita surrealista e a desconstrução, nos diz.


       Acrescentaria que o sentido, o segredo do curso de uma vida não é predeterminado, e corresponde à indeterminação, à abertura do texto.[27] Não há uma transcendência única de sentido – como na teoria essencialista de Ingarden – apenas uma imanência que inclui um leque de possibilidades. Os contos de Henry James mostram restos de literatura como sentido único, como transcendência, como dado metafísico, mas apesar disso são exemplos supremos da arte da ambiguidade, leia-se da indeterminação. A revelação constituiria um sentido único, superior e soberano. A iminência da revelação, pelo contrário, garante a indeterminação, a abertura, a liberdade do texto. Daí que Borges muito justamente defina o facto estético não como a revelação de uma verdade superior, transcendente, mas como a iminência dessa revelação que nunca chega a produzir-se. A revelação seria uma cópia da verdade superior; a iminência da revelação deixa-nos uma pausa de leveza sem determinismo, na qual, sem termos de lamentar a perda do sentido metafísico, o podemos a todo o momento recriar ou imaginar – é a situação da parábola de Kafka Eine kaiserliche Botschaft – não é a mensagem soberana, toda-poderosa do Imperador moribundo aquela que chega ao tu, a mensagem que chega é a que o próprio tu sonha e imagina na lonjura do sol imperial.

 
       O sentido não é o curso inequívoco que provém da fonte original, mas pode ser constituído por várias leituras. No soneto de Rimbaud, não há uma fonte única, mas várias nascentes, e nascentes latentes até. Voltar a essas nascentes poderá significar a verdadeira fidelidade às origens (a si próprio) e a possibilidade de se ser verdadeiramente autor do texto, em vez de se ser surpreendido, como o protagonista de Os Passeios do Sonhador Solitário, pela projecção da sua vida passada num écran de uma loja de audiovisuais, como se de algo de estranho e alheio se tratasse. A questão da fidelidade do leitor ao texto não se colocará então à velha maneira essencialista, como se o leitor ecoasse o texto, ou reproduzisse em cópia fiel o sentido original contido unilateral e univocamente no texto.[28]

 
       No que respeita ao destino espiritual do homem, o presente e o que contém de futuro não são também um xerox, uma cópia do passado ou de um curso anterior, conduzindo inequivocamente a um único futuro previsível e controlável, mas o momento, o instante de liberdade, certamente relativa mas talvez por isso mesmo mais preciosa ainda, em que permanentemente escolhemos e elegemos quer o futuro, quer mesmo o passado, que também ele não é fechado e perfeito para sempre. E se é verdade que “Cada época sonha a seguinte”,[29] não menos verdade é que cada época reescreve também a anterior, tal como cada autor cria a sua própria história literária, os seus precursores.[30]

 
       O texto literário, com a sua ambiguidade fundamental, de abertura e liberdade, questiona-nos e põe-nos constantemente em questão – por isso Sylvia Molloy põe em paralelo “sentir-se em texto” e “sentir-se em morte”,[31] o que talvez queira afinal dizer neste contexto “sentir-se em vida”, mas na vida autêntica, aquela que não exclui a morte em nenhum momento, a vida consciente e criativa: como escreveu Rousseau, “Nous mourrons et nous naissons à chaque instant de notre vie.”[32] A deriva do caminhante, seja ele sonhador ou flâneur, modernas variantes domésticas do viajante,[33] tem afinal um sentido, e esse sentido é a própria deriva, o próprio caminho, que é afinal também o próprio texto.

 
Ana Maria Delgado

(Georgetown University/Instituto Camões)



[1]  A expressão é de Aragon, no título do conto de 1964, Le Mentir-vrai.
[2]  A epígrafe das Confessions de Rousseau dizia Intus et in cute (No interior e sob a pele) – trata-se, pois, de pôr o coração a nu, de uma vivisecção moral – cf. Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, ed. cit., p. 47. Já a referência seguinte de Os Passeios à septicemia alude possivelmente a Borges, que de certo modo deve a ter estado gravemente doente com uma septicemia, a seguir a um acidente, o começo da sua escrita ficcional com o conto Pierre Ménard, autor do Quixote (1938).
[3]  Cf. Almeida Faria, op. cit., 46-47.
[4] Cf. Susan Rubin Suleiman, “Aragon’s le mentir-vrai: Reflections on truth and self-knowledge in autobiography”, in: Romanic Review (Harvard University), Jan-Mar 2001.
[5]  Cf. Walter Benjamin, op. cit., p. 45.
[6]  Cf. Almeida Faria, op. cit, p. 50.
[7]  J. L. Borges, Otras Inquisiciones (1952), p. 12.
[8]  Cf. Susan Sontag, “A Letter to Borges”, in: S. S., Where the Stress Falls. NY 2002, p. 11: “You had a sense of time that was different from other people’s. The ordinary ideas of past, present and future seemed banal under your gaze. You liked to say that every moment of time contains the past and the future, quoting (as I remember) the poet Browning, who wrote something like ‘the present is the instant in which the future crumbles into the past.’ ”
[9]  J. L. Borges, Otras Inquisiciones, p. 256.
[10]  Como tão bem diz Marguerite Yourcenar no seu belíssimo ensaio sobre Borges, “Borges ou le voyant”, in: En Pélerin et Étranger (Essais). Paris, 1989, p. 250: “Dans l’atmosphère du monde borgésien, où tout s’échange et devient autrement la même chose”.
[11]  Cf. Georges Gusdorf, Du néant à Dieu dans le savoir romantique. Paris, 1983, p. 419: “La pensée des lumières (…) admet la possibilité de faire toute la lumière. La pensée romantique se voit imposer la loi du secret ; impossible de tout dire”, também porque o que está em causa não é tanto uma verdade do conhecimento, mas mais uma verdade do ser, uma verdade existencial. A verdade que Borges antepõe a Evaristo Carriego (1939) numa citação de Thomas de Quincey  é “... a mode of truth, not of truth coherent and central, but angular and splintered.”
[12] Cf. Walter Benjamin, op. cit., p. 4 : “Der Beobachter ist ein Fürst, der überall im Besitze seines Inkognitos ist.”
[13]  Cf. Sylvia Molloy, Las letras de Borges, Rosario, 1999, p. 194-5.
[14]  Cf. id. ibid., p. 194:
[15]  Cf. id. ibid., p. 196:
[16]  Cf. Marcel Raymond, op. cit., p. 12.
[17] Cf. Walter Benjamin, “Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit”, in: W. B. Gesammelte Schriften I, 2. Frankfurt a. M. 1974, p. 439-441.
[18]  Cf. Sylvia Molloy, op. cit., p. 196.
[19]  Cf. Walter Benjamin, Der Ursprung des deutschen Trauerspiels, I, p. 226.
[20]  Cf. J. L. Borges, “Arte Poética”, in: El Hacedor (1960).
[21]  Cf. William Blake, “Improvement makes straight roads, but the crooked roads without Improvement are roads of Genius”, in: The Marriage of Heaven and Hell - A União do Céu e do Inferno, ed. João Ferreira Duarte. Lisboa, 1979, p. 75.
[22]  Cf. Friedrich Hölderlin, "Lebenslauf": “denn nie habt ihr Himmlischen, ihr Alles Erhaltenden, dass ich wüsste, mich mit Vorsicht des ebenen Pfades geführt”.
[23]  “Zum Leben gibt es zwei Wege: der eine ist der gewöhnliche, direkte und brave; der andere ist schlimm, er führt über den Tod, and das ist der geniale Weg.”
[24] Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 50. Gostaria de referir brevemente aqui um outro duplo ameaçador que surge ao protagonista do conto de Henry James The Jolly Corner (1908) como aquilo que poderia ter sido, como “alter ego do passado condicional”[24]: The penumbra, dense and dark, was the virtual screen of a figure which stood in it as still as some image erect in a niche or as some black-vizored sentinel guarding a treasure.” Mas neste conto, diferentemente do que costuma acontecer em Henry James, há, para além da presença/ausência do fantasma e da “busca impossível da ausência”, o acordar para além da morte provocada pelo duplo. É a personagem de Alice Staverton quem possibilita ao protagonista, Spencer Brydon, a aceitação de quem é / não é / poderia ter sido, e o uso não egoísta da experiência.
[25]   Cf. T. Todorov, Poétique de la prose. Paris, 1971, p. 106.
[26]   Id. ibid.
[27]  Cf. Ana Maria Delgado, “A Note on Misreading”, in: Proceedings of the Xth Congress of the ICLA in New York 1982, New York 1985.
[28] “C’est en allant vers la mer que le fleuve est fidèle à sa source”, sendo aqui a fonte, como origem, o ponto de união de vida e morte, vistas dialecticamente como processo de devir e de desaparecer, embora a metáfora contenha uma ideia de linearidade que não corresponde ao conceito de origem tal como a entende Benjamin.
[29]  Cf. Jules Michelet, in: Susan Buck-Morss, op. cit., p. 114.
[30]  Cf. J. L. Borges, “Kafka y sus precursores”, in: Otras Inquisiciones (1952).
[31]  Cf. Sylvia Molloy, op. cit., p. 197.
[32]  Cf. Marcel Raymond, op. cit., p. 141.
[33]  Cf. George Santayana, Filosofia del Viagem (1912).


In: CARTAPHILUS - Revista de Investigación y Crítica Estética, nº 4 (2008), p. 38-49


Este texto foi apresentado, numa versão abreviada, como comunicação ao V Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) realizado na Universidade de Minnesota em Outubro de 2006

Ler o texto completo aqui


Imagem: 1ª edição de Os passeios do sonhador solitário

segunda-feira, 4 de março de 2013








Intertextualidade no conto de Almeida Faria Os passeios do sonhador solitário


(cont.)

       Em Os Passeios do Sonhador Solitário o sujeito surge acompanhado por vários duplos. O autor que narra, presente no título do conto - narrados por almeida faria a partir da “mise en tombeau” de mário botas e o narrador de primeira pessoa, protagonista do conto, confundem-se entre si, sendo este narrador um primeiro duplo no texto. Um segundo duplo é o contador de estórias dentro do conto, o primogénito de Jean-Jacques Rousseau, figura estranha de homem-cão, eventualmente reminiscente também do texto de Dylan Thomas,[1] do qual o narrador nos diz no relato da quarta noite “Oxalá o meu melancólico contador de estórias não me abandone na última noite”.[2] Esta figura híbrida é nitidamente uma ilustração do desenho de Mário Botas, que repetidamente desenhou animais, nomeadamente cães.[3] Esta figura de natureza dupla reflectiria uma das naturezas eventualmente reprimidas do narrador/protagonista, já que o seu avizinhar-se faz fugir a rapariga-pássaro prestes a seduzi-lo ou a ser por ele seduzida em Central Park. Consciência dessa repressão, ou não integração dessa natureza dupla, contraditória, num modelo que se quer uniforme, claro e racional, pode ver-se ainda no seguinte passo: “O meu desejo de adesão ao quotidiano justifica a negação de outras zonas, onde reina a sombra?”[4] Outros duplos no texto são ainda o editor americano do protagonista, Tom, “muito parecido comigo, podia ser eu mesmo se tivesse nascido noutro país, escolhido outra vida.”[5] O poeta soviético exilado que o protagonista conhecera no Rio é outro duplo, já que o seu nome, Joe Brodsky, repete iniciais do nome próprio do autor.[6] Esta tendência para ver em toda a realidade circundante reflexos do próprio eu mostra a preocupação com uma coerência e equilíbrio psíquico que dificilmente se atinge. A solidão do sonhador será, assim, de tipo muito diferente da do promeneur de Rousseau. O conto de Almeida Faria move-se entre a escrita surrealista e a desconstrução do texto de Rousseau, residindo a principal diferença entre os dois textos na quase constante ironia do conto de Almeida Faria, apenas interrompida em dois passos que adiante analisaremos (o passo no qual se refere a relação da escrita de Rousseau com o coração/verdade e com o sentimento/sinceridade, e o final), e presente no próprio título como pastiche do título de Rousseau. O último duplo, e também o mais complexo, surge como “recordação intempestiva”[7] a meio da cena com a rapariga-pássaro de Central Park: o protagonista/narrador lembra-se de “um amigo perdido, anos atrás”[8], naquela mesma cidade após um jantar, perdera-se na noite ao atravessar uma passadeira, “enquanto eu olhava a montra da livraria iluminada, única fonte de luz naquela rua”[9], “raivoso contra os livros que teriam sido a sua ruína porque também sempre foram a minha.”[10] Será este, provavelmente, o duplo que mais próximo está da voz que narra e do próprio autor, espécie de assinatura da obra dentro dela própria.


       Enquanto a Paris de Rousseau é sempre paisagem, mais campestre que urbana, a Nova Iorque de Almeida Faria é sempre a cidade moderna, mesmo quando o protagonista deambula à noite em Central Park. A cidade nocturna descrita em Os Passeios contém pesadelos, seres mortos-vivos, de natureza dupla, seres inacabados, abortos, como os irmãos do homem-cão, figuras fantásticas, indefinidas, e a mandrágora, transição de vegetal para animal, seres entre devir e morte, em resumo, monstros, figuras de pesadelo, que dão à cidade um ambiente infernal. Na noite de Central Park, a segunda noite, é sugerida ao leitor uma celebração dionisíaca, com uma erínea (fúria), um golem e a mandrágora, em toda uma atmosfera ctoniana, da terra no seu aspecto interno, obscuro e subterrâneo, ligado à germinação e morte.[11] Um outro duplo surge nesta atmosfera, o duplo mais sombrio e ameaçador: “um golem mimeticamente igual a mim aguardava a minha chegada ao túmulo da fúria para me encontrar face a face, me predizer que outro duplo um dia virá substituir-me na vida e hei-de embarcar para onde ninguém de mim se lembre.”[12] O golem significa, na tradição judaico-cabalística, uma espécie de homem-robot, criado artificialmente, desafiando a criação de Adão por Deus. O golem é mudo, pois os homens não foram capazes de lhe dar a palavra.[13] O golem é, num sentido mais interiorizado, uma imagem do seu criador humano, de uma das suas paixões que cresceu e ameaça destruí-lo[14] – aparece assim ligado ao momento da morte do sujeito, que analisaremos mais adiante. A mandrágora poderia surgir neste contexto nocturno-subterrâneo na sua simbologia ligada à fecundidade, à riqueza e ao futuro, como um talismã protector na noite dionisíaca. Apesar de ser um poderoso veneno, doseada pode revelar virtudes curativas e eficácia espiritual[15]: “Estendi os braços para alcançar o golem de olhos mortos, vidro ou plástico sem brilho, material mortiço, mas desfez-se no nevoeiro e a mão direita agarrou uma raiz semelhante a um homúnculo soltando gritos de mansinho como se fosse um bicho. ‘É a mandrágora’, explicou o meu guia, ‘ela o protegerá entre os abismos se a não perder, mais não sei.”[16] O próprio cão está também ligado ao mundo da morte e dos infernos, ao mundo subterrâneo das divindades ctonianas e das forças invisíveis, ligado por isso também ao inconsciente. A sua principal função mítica é guiar o homem na noite da morte, depois de o ter acompanhado durante a vida.[17] Na terceira noite, o narrador interroga-se sobre “as fabulosas aparições do parque, e o tremendo oráculo afirmando a iminência do sósia, ditada pelo golem de morta matéria, não de ardida madeira.”[18] A atmosfera das várias noites, sobretudo da noite do parque e da última noite é uma atmosfera ctoniana de situações-limite, que anunciam acontecimentos decisivos, provocando sentimentos de terror, como pólo oposto aos sentimentos de segurança, de força e de optimismo,[19] assim como as Eríneas, nome grego das Fúrias, com forma de cão ou serpente, vingam os erros dos homens, aterrorizando-os.

 
        A cidade tal como nos aparece em Os Passeios está muito longe da concepção utópica do séc. XIX; o autor não está interessado em descrições simplistas do céu, como podemos ver no seguinte passo: “Ignoro o sítio do paraíso (...) Imagino que seja no etéreo, guarida de anjos da guarda em guaritas de cristal, transparentes, estéreis, e onde só se entra com visto emitido pelos altos funcionários do celeste partido, na directa dependência de Deus e reservado aos diferentes felizes.”[20] A Modernidade como tempo de Inferno é, também para Walter Benjamin, a antítese dialéctica das descrições feitas no séc. XIX da realidade moderna como uma Idade de Oiro, e funciona como crítica radical desta concepção.[21] Na cidade moderna, o sonhador é mais flâneur do que promeneur, não só pela paisagem citadina e urbana em que se move, mas também pela deriva à procura da sua natureza mais profunda, do seu eu mais verdadeiro. Há uma profunda ironia nesta procura, que se disfarça numa busca do “animal imaginário que mais me convinha”.[22] A proximidade da escrita surrealista vem desde logo pelo anúncio do método de criação poética.[23] Mas também no texto é evidente pelo ponto de partida, o desenho de Mário Botas, auto-retrato inquietante, numa atmosfera onírica, de pesadelo, rodeado de seres fantásticos, inacabados. A intertextualidade com o pintor sugere também a temática baudelairiana do spleen, que Botas transforma em le spleen de moi-même, centrando ainda mais no sujeito a problemática existencial, revelando a influência de Egon Schiele.[24] Almeida Faria considera os cinquenta e um desenhos que Mário Botas fez sobre Le Spleen de Paris de Baudelaire a sua obra-prima.[25] Para Walter Benjamin, autor de ensaios sobre Baudelaire e o flâneur, aquilo que transforma o tédio em spleen é a alienação do eu.[26] Daí a importância da ligação, também no texto que analisamos, entre flânerie e procura do eu. A divagação de Rousseau, mais próxima do ensaio e da autobiografia, dá aqui lugar à ficção narrativa, à deambulação e flânerie em que o sonho é mais próximo do inconsciente do que da razão clara. A deambulação do sonhador na cidade de Nova Iorque levaria ao descobrimento da vida escondida, inconsciente do eu, e à omnipresença de Rimbaud e da Modernidade, ao reconhecer no final do conto que o eu vivido é um estranho, ou que o eu mais profundo seria afinal um outro: “Recordo agora que, na noite do parque, ao caminhar sonâmbulo para casa, passei por uma loja de audiovisuais, parei ao ver num dos écrans, em feedback, o que a minha vida foi, e noutro o vídeo do que podia ter sido. Entre ambos a distância era infinita.“[27] O que o narrador vê projectado nos vídeos é a memória, retrospectiva e hipotética. A recordação no final do conto é verdadeiramente arrasadora, o momento de verdade do sujeito. No lugar da recordação surge a consciência, o momento de verdade do sujeito, em que a noção de vida como um xerox e de personalidade como cópia poderia ser substituída por algo de mais autêntico e original. Esta distinção entre memória e recordação encontra-se no texto de Benjamin,[28] sendo a memória aquilo que protege as impressões, e a recordação aquilo que as decompõe, sendo a memória conservadora e a recordação destrutiva. A recordação garantiria assim, através da montagem a que inevitavelmente procede, a reversibilidade do destino individual, se não na vida real, pelo menos no seu registo como recordação.


       A solidão do Sonhador é essencialmente diferente da de Rousseau, já que é uma solidão no meio da grande cidade e da multidão. Mas, ao contrário da narrativa policial, cujo conteúdo social, segundo Benjamin, terá sido o apagamento dos vestígios do indivíduo na multidão da grande cidade, aqui os vestígios que o protagonista/narrador segue são da interioridade. A exterioridade – os duplos – representam a interioridade, bem como a cidade é o cenário no qual o narrador tenta desenhar os traços do seu rosto, da sua identidade. É aqui que cabe referir e analisar uma última intertextualidade de Os Passeios do Sonhador Solitário, que é muito mais do que uma companhia ou outro duplo, desde logo pela distância temporal a que é perspectivado - vinte anos atrás o narrador vira “um cavalheiro alto, de cabelo branco e pele muito clara, imponente, impecavelmente vestido e de bengala, apoiado no braço de uma mulher ainda jovem, decerto cego pelo modo vazio de olhar o espaço; logo o reconheci pelas fotografias, era Borges.”[29] É curioso que o escritor argentino seja imediatamente reconhecido pelo narrador, ao passo que entre o seu eu passado e o eu hipotético não há uma identidade reconhecível. A figura de Borges é, não menos do que Rousseau, verdadeiramente tutelar neste conto – não será mero acaso que a sua breve aparição se situe a meio do texto. O deambular de ambos pela cidade é semelhante ao vaguear pelos livros ou pela existência. O narrador/protagonista de Os Passeios define-se – e é uma das poucas definições que nos fornece[30] – como “um sonhador sem amada que não seja esta cidade”.[31] E o começo literário de Borges fez-se com devoção dedicada a uma outra cidade americana, Buenos Aires.[32]



[1]  Cf. Dylan Thomas, Portrait of the Artist As a Young Dog, 1940.
[2]  Almeida Faria, op. cit., p. 50.
[3]  Mário Botas tinha dois galgos que foram a sua companhia fiel nos últimos tempos de vida.
[4]  Cf. Almeida Faria, Os Passeios do Sonhador Solitário, ed. cit., p. 49.
[5]  Cf. id. ibid., p. 37.
[6] Trata-se do poeta russo Joe Brodsky, vencedor do prémio Nobel da Literatura em 1987, expulso da União Soviética em 1972 e cidadão americano desde 1977.
[7]  Cf. id. ibid., p. 25.
[8]  Cf. id. ibid.
[9]  Cf. id. ibid.
[10]  Cf. id. ibid.
[11]   Cf. J. Chevalier/A. Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles. Paris, 1982 (1ª ed. 1969), p. 248.
[12]   Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 31-2.
[13]   Cf. J. Chevalier / A. Gheerbrant, op. cit., p. 481-2.
[14]   Cf. id. ibid.
[15]   Cf. id. ibid., p. 608-9.
[16]   Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 32-3.
[17]  Cf. J. Chevalier/A. Gheerbrant, op. cit., p. 239. Curiosamente foi também um cão o agente involuntário do início da rêverie, derrubando Rousseau, que cai e fica bastante ferido. Como observa Marcel Raymond, foi preciso uma pequena morte, uma interrupção da rotina quotidiana, da trama regular de uma vida, para que o devaneio, a rêverie encontre um objecto, o universo, e com ele se identifique, fazendo o ser aceder a uma nova ordem de existência. Cf. M. Raymond, op. cit., p. 184. Durante o período de convalescença de Rousseau, chega a aparecer no Courrier d’Avignon uma “oraison funèbre”: “M. Jean-Jacques Rousseau est mort des suites de sa chute. Il a vécu pauvre, il est mort misérablement; et la singularité de sa destinée l’a accompagnée jusqu’au tombeau” – cf. J-J. Rousseau, op. cit., p. 72. Mas muito pelo contrário, Rousseau escreve que “Je naissais dans cet instant à la vie (…) Je voyais couler mon sang comme j’aurais vu couler un ruisseau (…) Je sentais dans tout mon être un calme ravissant” – cf. id. ibid., p. 68.
[18]   Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 49.
[19]   Cf. J. Chevalier/A. Gheerbrant, op. cit., p. 248.
[20]   Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 50.
[21] Cf. Susan Buck-Morss, The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project. Baskerville, 1989, p. 96.
[22]  Cf. Almeida Faria, Os Passeios do Sonhador Solitário, ed. cit., p. 23.
[23]  Cf. Entrevista em Georgetown.
[24]  Cf. Ruth Rosengarten, “Opaca, estendida no insensível curso do tempo: uma apreciação da obra de Mário Botas”, in: Catálogo da Exposição Mário Botas – Retrospectiva. Visões Inquietantes. Lisboa, 1999, p. 27. Segundo a autora, para Botas a modernidade de um autor é determinada não pela consciência crítica, mas pela sua consciência como criador, sendo subjectividade e confissão atributos da modernidade, bem como o eu reflexivo e os duplos.
[25]   Cf. Almeida Faria, “O pintor à porta dos infernos”, in op. cit., p. 15. O desenho Le Poète s’amuse ou le Poète et sa Muse, de 1978, representa Baudelaire como a musa de Botas.
[26]   Cf. Walter Benjamin, "Zentralpark", in: W. B. Gesammelte Schriften I, 2. Frankfurt a. M. 1974, p. 659.
[27]  Cf. A. F., Os Passeios do Sonhador Solitário, p. 50.
[28]  Cf. Walter Benjamin, “Über einige Motive bei Baudelaire”, p. 119: “Die Funktion des Gedächtnisses (…) ist der Schutz der Eindrücke. Die Erinnerung zielt auf ihre Zersetzung. Das Gedächtnis ist im wesentlichen konservativ, die Erinnerung destruktiv.”, in: W. B., “Der Flaneur”, in: W. B., Charles Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus. Frankfurt a. M. 1969, p. 45.
[29]  Cf. Almeida Faria, op. cit., p. 22.
[30] A outra definição que nos dá é de “peixe das profundidades ou filosófica coruja” (p. 16), tentando interpretar a sua natureza profunda como um animal imaginário, seguindo o Manual de zoologia fantástica (1957), de J. L. Borges e María Guerrero, posteriormente publicado com o título El libro de los seres imaginarios (p. 23).
[31]  Cf. id. ibid., p. 50.
[32]  Cf. Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires (1923).
 
 
Ana Maria Delgado (Universidade de Georgetown/Instituto Camões)
In: CARTAPHILUS - Revista de Investigación y Crítica Estética, nº 4 (2008), p. 38-49
 

Este texto foi apresentado, numa versão abreviada, como comunicação ao V Congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) realizado na Universidade de Minnesota em Outubro de 2006
 

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Imagem: capa da 1ª edição de Os passeios do sonhador solitário
 
 
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