Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock
(...)
The Lady Vanishes comenta subtilmente a política europeia de 1938 e, apesar da
censura do British Board of Film Censors, que não permitia qualquer crítica
aberta a governos estrangeiros[1], a imprensa da época compreendeu a
referência de Hitchcock: “most of the film’s action takes place ‘in Central
Europe, where almost anything is liable to happen nowadays (and things do
happen)’”[2]. Hitchcock
critica tanto a passividade britânica, como a agressividade alemã, mas alerta
seriamente para o perigo nazi que ameaçava já claramente a Europa. O
neuro-cirurgião que chefia a conspiração apresenta-se como o Doutor Egon Hartz,
de Praga - o nome Hartz é uma combinação de hard
(hart, duro) com heart (Herz, coração) e
preludia a violência do rapto e planeado assassínio de Miss Froy, uma agente
britânica (no romance de White ela era uma cidadã comum que foi confundida com
uma espia)[3].
Hitchcock tinha insistido no
seu desejo de juntar ao enredo do romance de White um ilusionista, e veremos
porquê. O Dr. Hartz chefia uma conspiração que tem como objectivo impedir a
saída de Bandrika, governada por um tirano, de informações vitais sobre um
pacto secreto entre dois países europeus. Para tal, terá de raptar, esconder e
posteriormente eliminar numa fatal operação uma agente secreta britânica. O
parceiro do neuro-cirurgião, o ilusionista Signor Doppo (especialista no número
“The Vanishing Lady Act”) contribuirá decisivamente para tornar imperceptível o
desaparecimento violento de Miss Froy. Karen Beckman é muito clara quanto ao significado ideológico
desta aliança entre o médico e o ilusionista: “Through this aliance, Hitchcock
uncovers a key factor of the workings of ideology – the mystification of the
moment of violent incision.”[4] O mundo da
ilusão e do ilusionismo aponta para o cinema, tal como vimos, mas também para a
ideologia. Beckman faz o paralelo do assassínio de elementos indesejados – o
seu corte do corpo social – com os cortes da montagem, mostrando como Hitchcock
mantém o espectador atento em relação a esta técnica, nomeadamente no episódio
central, a que não assistimos, do rapto violento de Miss Froy: “In The Lady Vanishes, a film steeped in the
politics of Britain’s relationship with Germany and Central Europe, ‘the cut’
becomes crucial in its narrative and cinematic function. Hitchcock employs a variety of
fragmenting camera techniques to draw our attention to the hidden incisions of
the editorial cuts.”[5]
Karen Beckman mostra
claramente o paralelo entre esta intriga internacional de The Lady Vanishes e a retórica fascista da década de 1930, contida
na linguagem violenta de Hitler e Mussolini para descrever o seu papel de líderes
na recuperação daquilo que consideravam o corpo doente da nação. Mussolini
escreveu que era necessário “to use the scalpel to take away everything
parasitic, harmful, and suffocating”, e Hitler usou o mesmo discurso da remoção
cirúrgica e representou os Judeus como uma praga ou bactéria que infectava a
nação alemã[6].
Hitchcock contrapõe às forças conjuntas da conspiração do Dr. Hartz, aliado com
o Signor Doppo, a consciência que procura criar no espectador da ilusão de
continuidade cinemática, chamando a atenção para os cortes da montagem. O
espectador não assiste à cena do desaparecimento de Miss Froy, que ocorre
durante o sono de Iris. E a cena no vagão de transporte da bagagem, na qual
Iris e Gilbert descobrem toda a parafernália do ilusionista, é fulcral nesta
consciencialização: “When the magician, artist of legerdemain, suddenly pulls out
a knife, the illusion of mystery fades and exposes the true violence of Miss
Froy’s disappearance.”[7]
Logo a seguir a cena mostra uma série de fragmentos, pondo em evidência os
cortes da montagem[8],
para manter bem desperta a consciência do espectador quer em relação à ilusão da
continuidade e unidade cinemáticas, quer em relação ao processo ideológico que
opera na conspiração. Destes cortes poderíamos destacar como exemplo o corte da
figura de Iris pela cinta, na cena da luta com o Signor Doppo, recordando a
convenção do ilusionismo, e do filme nos seus primórdios, de representação do
truque de cortar uma mulher ao meio. Este corte recorda uma outra cena no hotel
de Bandrika, em que Iris festeja com as amigas a despedida de solteira e o
empregado traz mais uma garrafa de champanhe ao quarto. A câmara mostra-nos
Iris de pé em cima da mesa, mas só a vemos da cinta para baixo, enquanto ela diz:
I, Iris Matilda Henderson, a spinster
of no particular parish, solemnly renounce my maidenly past and declare that on
Thursday 26… I shall take the veil and orange blossom and change my name to
Lady Charles Fotheringail.
No momento em que declara esta cisão na identidade pelo casamento, como bem
observa Karen Beckman, tomamos consciência da ansiedade de Iris em relação ao
seu próprio desaparecimento, o que, combinado com o nome Iris, a vai tornar a pessoa ideal para procurar Miss Froy[9]. Os
óculos de Miss Froy, que Iris e Gilbert encontram nesta cena, estão partidos, e
Iris e Gilbert são atacados pelo Signor Doppo, armado de uma faca: “Iris: He’s
got a knife! Gilbert:
Get hold of it before he cuts a slice off me.” Forçando o espectador do filme a
ter esta consciência, Hitchcock alerta para “the machinations of an ideology
like National Socialism which employs the illusion of disappearance to disguise
the violent excision of that which is other to its own self-image”[10].
A montagem corta do todo fílmico
aquelas partes que estão a mais, criando um objecto estético caracterizado pela
unidade e continuidade. O paralelo com o discurso ideológico do nacional-socialismo
é evidente, também aí se eliminou o que não é a auto-imagem. A ideologia nazi
tinha a pretensão de criar uma unidade limpa, depurada do que está a mais, do
que não considerava herança pura, i.e. da descontinuidade, da diferença, de
tudo o que julgava ser uma ameaça à identidade, à continuidade rácica que se
recebe pela herança do sangue, e mais ainda purificando-a. Embora em áreas
absolutamente distintas, pretendem o mesmo resultado, tendem para o mesmo objectivo:
a montagem no plano ideal do estético, a ideologia nazi na existência histórica
dos povos. São dois actos verdadeiramente criadores, que visam modelar a
realidade como obra de arte. Aquilo que o nacional-socialismo tentou fazer no
plano ideológico foi obter uma configuração ideal (do seu ponto de vista) da
realidade no plano histórico-social, visando organismos que se vão
desenvolvendo na sua diferença, na sua realidade, e que por isso constituem o
que não é moldável. Na Sociologia não se podem fazer experiências, trata-se de
uma área na qual se trabalha com seres humanos na sua inter-relação e interacção,
e na qual a vontade e a decisão dos indivíduos contrariam qualquer intenção na
modelagem do social. Estas realidades vivas foram camufladas nos campos de
concentração, criando situações artificiais que implicavam o fechamento, como
no laboratório, e o silenciamento à volta do que aí se fazia.
Toda esta chamada de atenção
para os cortes da montagem cinematográfica no filme, aliada ao tratamento dado
à figura do Dr. Hartz, estranhamente prefiguram o que viria a ser o papel da
classe médica alemã durante a Segunda Grande Guerra e o Holocausto, executando
experiências cruéis e letais em sujeitos humanos entre 1939 e 1945 em campos de
concentração nazis:
Between
1939 and 1945, at least seventy medical research projects involving cruel and
often lethal experimentation on human subjects were conducted in Nazi
concentration camps. These
projects were carried out by established institutions within the Third Reich
and fell into three areas: research aimed at improving the survival and rescue
of German troops; testing of medical procedures and pharmaceuticals; and
experiments that sought to confirm Nazi racial ideology. More than seven
thousand victims of such medical experiments have been documented. Victims
include Jews, Poles, Roma (Gypsies), political prisoners, Soviet prisoners of
war, homosexuals, and Catholic priests. [11]
Para concluir, gostaria de salientar a carga ideológica do filme que
Karen Beckman compara com The Lady
Vanishes, por tratar o mesmo fio narrativo, o mito urbano à volta da
história verdadeira de duas senhoras, mãe e filha, que passam por Paris na
altura da Exposição Mundial de 1889, vindas da Índia de regresso ao Canadá[12].
Trata-se do filme de 1938 do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte Spuren (The Footprints Blown Away). Harlan mantém a sua narrativa muito
próxima da história herdada, mas com uma carga ideológica evidente: o filme
abre com uma longa sequência de um cortejo alegórico em que estão representados
os vários continentes, abrindo com a Europa representada por uma mulher loira
quase nua da cinta para cima montando um touro, seguida por vários aborígenes
representando os outros continentes. No final da sequência a câmara detém-se
nos rostos de mãe e filha, sugerindo a sua diferença (são canadianas). Depois
do desaparecimento misterioso da senhora mais velha, a filha vem a descobrir que
a mãe tinha tido a peste e tinha sido incinerada pelo Dr. Moreau (uma reminiscência
estranha do médico vivisseccionista de uma obra de H. G. Wells), com quem no
entanto vem a casar-se. Trata-se de uma muito clara apologética da purificação,
da purga, queima-se e apaga-se a recordação, faz-se desaparecer da realidade e
da memória tudo aquilo que pudesse vir a contaminar a sociedade.
A música de Louis Levy acompanha o
desaparecimento de Miss Froy, para só reaparecer no final do filme. Não poderia
deixar de assim ser, dado o significado da música no filme, como opondo-se radicalmente
ao mundo da conspiração. Não poderia evocar o excesso da música wagneriana,
demasiado próxima da Alemanha de então, embora Hitchcock cedo venha a retomar
em Rebecca uma banda sonora muito
diferente da austeridade da música em The
Lady Vanishes. Quando reaparece, a música de Lévy recordará o espectador do
que viu antes do desaparecimento de Miss Froy, ligando-se assim a esta
personagem e ao que ela representa, para melhor se nos gravar na memória. Isto
corresponde à função que a música tem na filmografia de Hitchcock de uma
maneira geral: mesmo quando é instrumentalizada pela conspiração, como é o caso
da longa sequênca sinfónica no Albert Hall das duas versões de The Man Who Knew Too Much, a música
opõe-se em última análise à conspiração e sai vitoriosa.
Hitchcock transforma a personagem de
Miss Froy de “vanishing lady” – a adjectivação mostra o ponto de vista
masculino que entende a mulher como “outro” e como mistério, fantasia, ilusão,
características às quais Miss Froy é alheia pela idade e por ser uma figura
comum – em sujeito da acção no título do filme, The Lady Vanishes. Tendo sido objecto de um rapto que a fez
desaparecer sem ninguém ter visto nada, Hitchcock faz Miss Froy desforrar-se na
cena do filme em que, após ter revelado a melodia a Iris e Gilbert, desaparece
por acção própria, não deixando o mérito deste desaparecimento final por mãos
alheias, saltando da janela do comboio (com a ajuda de Gilbert) para a floresta
de Bandrika, conseguindo levar a mensagem contida em código na melodia da
canção para a Grã-Bretanha. Hitchcock mostra assim mais uma vez a sua
versatilidade, ironia e sentido de humor.
Mas o que mais nos surpreende ainda hoje
em dia é a percepção de Hitchcock não só daquilo que estava já em marcha na
Europa e no mundo em 1938, mas também a sua extraordinária capacidade de prever
alguns dos aspectos mais sórdidos do nacional-socialismo e do Holocausto. O
documentário de sua autoria sobre a libertação de prisioneiros judeus e outros
dos campos de concentração alemães depois do fim da Segunda Grande Guerra[13] é
um exemplo flagrante da uma aguda consciência e sensibilidade temporal,
contradizendo uma leitura da sua obra como alheia à dimensão contemporânea da
História.
[1]
Vd. BECKMAN, op. cit., p. 85.
[2]
Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit.,
p. 443.
[3] Vd. BECKMAN, Karen, op. cit., p. 83. A autora observa ainda que Praga seria
entendida num contexto alemão, já que em 1938 quer a Áustria quer a
Checoslováquia tinham desaparecido do mapa da Europa como nações independentes,
a Checoslováquia tinha sido dada à Alemanha para a Inglaterra ganhar tempo.
[4]
Cf. id. ibid., p. 86.
[5]
Cf. id. ibid.
[6] Cf. id.
ibid.
[7] Cf. id. ibid., p. 88.
[8]Cf. id. ibid.: “Following this, the scene
disintegrates into another series of verbal, cinematic, and bodily fragments.”
[9]
Cf. id. ibid., p. 89.
[10] Cf. id. ibid.
[11]
Vd. United States Memorial
Museum , “Medical
Experiments”. A página está
disponível on-line e contém uma vasta
bibliografia sobre este tema:
[12] Vd. nota 27 do presente texto, e
BECKMAN, Karen, op. cit.
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012
Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
Ler o texto completo aqui
Imagens:
Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui
Para ver o filme: aqui