Infância e escrita em dois contos de Irene Lisboa e Raduan Nassar *
Raduan Nassar tinha
26 anos quando, em 1961, escreveu “Menina a caminho”. Estudara Direito, Letras e Filosofia e fizera
jornalismo. Em 1975, o romance Lavoura
Arcaica traz-lhe prémios, elogios da crítica e consagração, e em 1978
publica a novela Um copo de cólera.
Os dois livros foram escritos durante um período conturbado no Brasil, a
ditadura militar, e tematizam a época na sua violência e valores, sem no
entanto se incluírem na literatura comprometida típica desses anos. (Cf. Lemos,
2003) Inexplicavelmente para os seus leitores e para si próprio, como confessa
numa entrevista, Nassar deixa de escrever após esses dois intensíssimos livros,
e dedica-se à criação rural numa fazenda do Estado de S. Paulo. Chega mesmo a
afirmar que “não há criação artística ou literária que se compare a uma criação
de galinhas”, atribuindo mais tarde esta afirmação provocatória à sua alegada
“falta de temperança”. E continua: “Se eu fosse um sujeito equilibrado, eu não
teria tido a liberdade de fazer aquela afirmação. Só desequilibrados é que
descobrem que este mundo não tem importância. O bom senso seria uma prisão.” À
pergunta do entrevistador “Como é a sua vida hoje”, Nassar respondeu: “Hoje
minha vida é fazer no âmbito da fazenda evidentemente, num espaço em constante
transformação, o que não deixa de ser uma outra forma de escrever. Além disso,
tem em comum com a literatura o fato de eu não saber porquê. Então, é fazer,
fazer, fazer.” (Carvalho, 1996) [1]
Filho de emigrantes libaneses, Nassar como que regressa às origens da sua
família e antepassados na escrita, em Lavoura
Arcaica , e depois na sua opção de vida. A radicalidade
das escolhas de Raduan Nassar e o entretecer do silêncio na sua vida e escrita
é impressionante. O próprio escritor se pronuncia sobre esta sua radicalidade:
“Às vezes em 50 páginas você pode dizer muito mais que em 10 livros. Depois, há
muitos autores de um único livro que dizem tanta coisa!” (Idem, ibidem) Ele dirá ainda, pronunciando-se sobre a sua
aproximação às vanguardas brasileiras da época, que estes movimentos “não
conseguiram engolir um paralelepípedo lírico como eu”, mostrando a clara consciência
que possui da irredutibilidade do seu “lirismo”. (Cf. Lemos, 2003)
O conto “Menina
a caminho” marca o início da escrita de Raduan Nassar em 1961, embora só venha
a ser publicado em 1994. O valor deste texto na obra de Nassar é inaugural, o
autor procura uma perspectiva, um ponto de vista para a sua escrita. E vai
encontrá-lo numa técnica próxima do cinema e do behaviourismo, através de um narrador que descreve o que vê,
acompanhando, como uma máquina de filmar, a deambulação de uma menina sem nome
pelas ruas de uma cidade do interior do Estado de S. Paulo. O título do conto, “Menina
a caminho”, tanto se pode referir ao vaguear da menina pela cidade, como ao
próprio movimento da perspectiva do narrador, que a acompanha como uma máquina
de filmar, como até mesmo à evolução da própria escrita de Nassar, que ora se
identifica com o narrador, ora com a menina que vai descobrindo aspectos da
vida, do mundo e dos outros na pequena cidade, e no final do conto o seu
próprio corpo. A personagem da menina fará assim a transição para as primeiras
páginas de Lavoura arcaica, nas quais
André, adolescente em revolta contra os valores estabelecidos e impostos pelo
patriarca, o pai, fala da nudez do seu corpo e da inviolabilidade do seu quarto
de pensão. André continua a menina em movimento, entre a infância e a
adolescência, tal como a personagem masculina, Ele, de Um copo de cólera, é a continuação mais madura de André. A escrita
de Nassar, no entanto, irá transformar-se na prosa lírica de Lavoura arcaica e abandonar o
objectivismo da perspectiva narrativa de “Menina a caminho”.
Esta
continuidade em permanente transformação que caracteriza a obra curta mas
intensíssima de Nassar, bem como o tema da revolta contra a violência contida
no patriarcado e outras formas de autoritarismo, tanto mais politicamente
universais quanto não datadas nos textos do escritor, são as principais
características que unem esta obra tão diversa na sua unidade. Também a técnica
da construção circular é comum às três narrativas, nas quais o final de algum
modo retoma e varia o início do texto. (Lemos, op.cit.)
É mérito de
Maria José Cardoso Lemos ter mostrado o lugar de Raduan Nassar na literatura
brasileira entre tradição e (pós) modernidade, relacionando o seu projecto
ético-estético com o espaço rural natal do escritor, Pindorama, uma pequena
cidade do Estado de S. Paulo (Idem,
ibidem). É neste contexto que analisa “Menina a caminho” como variação, em
registo de paródia, da representação do imigrante brasileiro no “espaço
claustrofóbico e opressor de uma pequena cidade do interior” (Idem, ibidem). Nassar pretenderia neste
seu primeiro texto “dar maior visibilidade ao rural” (Idem, ibidem), problematizando a antinomia rural / urbano (também
litoral), visto o primeiro como “lugar de origem, tradição e pureza
identitária” e o segundo como “lugar da modernização” (Idem, ibidem). Esta estudiosa vê na identidade inconclusa da menina
a caminho uma possibilidade de quebrar barreiras e antinomias rígidas, tentando
alargar o mundo fechado da pequena cidade do interior, ao mesmo tempo que a
menina caminha da infância para a adolescência, tomando nota de
personagens-tipo da sua cidade e tentando compreendê-las com o seu olhar ainda
infantil e inocente (Cf. Idem, ibidem).
Ela vai assim encontrar, no seu percurso ao acaso pela cidade, “o árabe, o
crioulo, o espanhol, o caipira, o mulatinho, o cigano e (...) o italiano
demente” (Idem, ibidem). Concluindo,
Maria José Cardoso Lemos afirma que o conto “funciona também como a constatação
da realidade de uma pequena cidade do
Estado de S. Paulo que, com a imigração, torna-se uma amostra do Mediterrâneo
ainda arcaico, associado a uma cultura originária cabocla, ela também híbrida e
primitiva” (Idem, ibidem).
Tanto quanto
podemos seguir o texto até aqui, esta é a pequena “história” contida em “Menina
a caminho”. Mas a história exterior é apenas um deambular da perspectiva,
acompanhando o caminho da menina ao acaso pela cidade. Quero com isto dizer que
a história “verdadeira” do texto se escreve – e isto é sempre assim em Nassar –
mais do lado do silêncio do que da representação, da “história” contada. “Vinda
de casa, a menina caminha sem pressa, andando descalça no meio da rua”.
(Nassar, 2000: 11)[2]
Esta menina não tem nome, pertence a uma família modesta, estará no limiar da
puberdade: o corpo é “magro feito um tubo”, o peito ainda liso, está
modestamente vestida com um vestido caseiro, caminha descalça, e vê-se que a
sua aparência e maneiras não são muito cuidadas. As tranças estão despenteadas,
ela lambe, enquanto anda, os fios de manga à volta da boca, e tem o hábito de
enfiar teimosamente o dedo no nariz. Ela é curiosa, “seus olhos piscam de
fantasias” (p. 13), encanta-se com tudo o que possa prender a sua atenção na
rua, arregala os olhos de espanto com o que vê, “repara”, é capaz de compaixão,
deseja um gelado, reflecte, goza o cheiro gostoso a couro da selaria do seu
Tio-Nilo, e quando este esboça para ela um sorriso, o coraçãozinho dela dança,
fica aterrada com a aparição de seu Américo, e mantém até ao final da narrativa
“os olhos sempre cheios de espanto” (p. 49).
Sendo a trama
do conto feita sobretudo de silêncios e sugestões que apenas podemos
conjecturar, é possível tentar contar a história de outra maneira, atendendo
aos subentendidos e ao silêncio do texto: a menina sai de casa com um recado da
mãe, ela vai levar um recado ao seu Américo. Não sabemos o que é este recado, mas
quando a menina o começa a formular, já quase no final do conto, desencadeia
uma terrível reacção em cadeia que vai desde a injúria e ameaça física do seu
Américo à menina e à mãe, passando pela reacção histérica da mãe quando a
menina chega a casa, até à cena de violência doméstica em que o pai, Zeca
Cigano, espanca e chicoteia a mãe até ela sangrar.
Toda a deriva
da menina pela cidade consiste em encontros vários com uma característica
comum: tudo o que ela vê e ouve pelo caminho é do domínio da sexualidade, ou
contém uma mensagem subliminar desse domínio. Assim, a narrativa mostra uma
menina que caminha da infância para a adolescência e descobre o mundo dos
adultos como eminentemente sexual. A sexualidade é a característica que liga
todo o puzzle de encontros que ela tem, quer se trate de seres humanos, quer de
animais – o cavalo, e o casal de cães que ficaram colados numa relação sexual e
não conseguem desgrudar, provocando a compaixão da menina. Esta natureza sexual
de tudo o que é humano e vivo estará no âmago das obras seguintes de Raduan
Nassar, dando continuidade a este récit
inaugural e iniciático de “Menina a caminho”. Tudo o que se problematiza no
conto – as relações familiares e sociais, afectivas, a política, as relações de
poder – todas estas coisas passam em primeiro lugar pela sua dimensão sexual e
pelo corpo. A iniciação da menina na puberdade, preludiada pela descoberta de
elementos sexuais em tudo o que vê à sua volta, terá o seu clímax na descoberta
do próprio corpo, leia-se sexo, mesmo “sem compreender” (p. 49), no final do
conto. O corpo e a sexualidade não aparecem coisificados, antes em profunda
ligação com outros elementos do que nos torna humanos: a dimensão social,
afectiva, a amizade, o amor, o namoro, a família. Mesmo quando se trata da
sexualidade animal – o caso dos cães em cópula – a reacção da menina que se
condói deles como que dá uma dimensão humana à animalidade.
O não-dito do
conto será de natureza sexual e de grande violência: o recado da mãe da menina
destinado ao seu Américo – “Minha mãe mandou dizer que o senhor estragou a vida
dela, mas que o senhor vai ver agora como é bom ter um filho como o senhor tem”
(p. 44) – desencadeia uma reacção extremamente violenta neste, injuriando e
ameaçando a mãe e a menina – “puxa já daqui, sua cadelinha encardida, já agora
senão te enfio essa garrafa com fogo e tudo na bocetinha, e também na puta da
tua mãe” (p. 44). A menina foge e chegando a casa conta à mãe, que desatina em
altos gritos, “ferida na alma”: “Ele me ofendeu mais uma vez, ele me ofendeu
mais uma vez, aquele canalha, ele me ofendeu mais uma vez...” (p. 44). A
sexualidade que motiva todas estas reacções pertence naturalmente à ordem
física, mas vai muito mais longe, atingindo e mostrando a alma dos seres
humanos. O pai da menina, o Zeca Cigano – curiosamente só as figuras masculinas
centrais têm nome... – volta exclusivamente contra a mulher a sua raiva e orgulho
masculino ferido: “Quem te ofendeu?” pergunta ele, ao mesmo tempo que chicoteia
a mulher e formula a verdadeira ofensa para ele: “Quem me ofendeu?” (p. 46), no
texto designadas, no entanto, ambas como “falsa inquisição” (p. 46). Sem
atender às súplicas da vizinha que implora piedade para a mulher, Zeca estanca
os golpes de chicote ao ver a boca da mulher a sangrar. Então a menina observa
o pai “de costas, as mãos na mureta, a cabeça tão caída que nem fosse a cabeça
de um enforcado.” (p. 48). No final do texto a menina fecha-se no banheiro e,
acocorando-se sobre o espelho da parede que deita no chão de cimento, “vê, sem
compreender, o seu sexo emoldurado. Acaricia-o demoradamente com a ponta do
dedo, os olhos sempre cheios de espanto.” (pp. 48-49). Esta descoberta do
próprio corpo e prelúdio da descoberta da sexualidade marcam a transição da
menina da infância para a adolescência e anunciam a personagem central de Lavoura arcaica.
A história do
filho do seu Américo é objecto do falatório de toda a cidade, sobretudo na cena
da barbearia em que é o tema central da fofoquice, sem no entanto se desvendar
o que se trata, até ao recado da mãe levado pela menina ao seu Américo. Esta
trama silenciosa e invisível, tecida de sugestões e subentendidos, indecifrada
no texto e por isso tanto mais central, contrasta poderosamente com a
implacável perspectiva adoptada pelo narrador, a opção por seguir os vários
palcos e cenários da pequena cidade com a visão de uma máquina de filmar a que
nada escapa – vários grupos de rua, um entrever do interior de uma casa, uma
outra menina tipo boneca de porcelana a caminho da escola, a barbearia, a
escola, o sapateiro, a gelataria, o bar, a oficina do seleiro, finalmente o
armazém de seu Américo, e depois o regresso a casa e a cena de violência
doméstica, e a cena final da menina na casa de banho. A conclusão é,
naturalmente, que ver ou mesmo ver em excesso não significa ver realmente, e
que é necessário um outro tipo de visão para compreender as imagens. Raduan
Nassar questiona e problematiza deste modo, aprofundando-a ao mostrar os seus
limites, a própria técnica narrativa pela qual optou. Esta tensão constante do
texto entre mostrar radical e impossibilidade de visão retrata a identidade
sempre incompleta e híbrida de uma cidadezinha do interior brasileiro com os
seus habitantes, imigrantes de “fronteiras culturais flutuantes” (Cf. Lemos, op.cit.), reconstruindo um Mediterrâneo
caboclo. Ao mesmo tempo que retrata esta realidade, mostra os habitantes de
diversas proveniências irmanados pela sua humanidade, que se revela no texto
essencialmente passando pelo corpo e pela sexualidade. A menina a caminho,
personagem central do conto, equivale ao autor muito jovem, que procura nesta
narrativa inaugural e iniciática uma escrita, e a vai encontrar num processo de
constante transformação. Os seus três livros têm uma qualidade e intensidade de
linguagem absolutamente extraordinários, que faz deles “verdadeiros momentos de
epifania da literatura brasileira” (Idem,
ibidem) e, acrescentaríamos, da literatura em língua portuguesa.
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig / Instituto Camões / CLEPUL)
(a continuar)
[1]http://panorama-direitoliteratura.blogspot.com/2010/03/raduan-nassar-um-classico-moderno.html
(consulta em Abril de 2011).
[2]
Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição.
* Comunicação apresentada ao 9º Congresso dos Lusitanistas Alemães, na Universidade de Viena, em 2011, na secção dirigida por Gabriela Fragoso, "Representações da infância em contextos literários lusófonos: que espaço para a utopia?". Publicado em FRAGOSO, Gabriela (org.), Literatura para a Infância. Infância na Literatura. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, p. 63-73.