sábado, 26 de outubro de 2013









Infância e escrita em dois contos de Irene Lisboa e Raduan Nassar *
  
(...)
       Para terminar, gostaria de questionar os dois contos à luz da tradição do conto infanto-juvenil, já que ambos os textos acompanham um dia de uma menina no limiar da puberdade, que vai fazer um recado à mãe, e descobre a sensualidade / sexualidade. Esta ligação com a tradição do conto infanto-juvenil é mais clara no caso de Irene Lisboa, já que Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma trabalha muito conscientemente essa tradição – veja-se, por exemplo, o conto “Sonhos – O da Gata Borralheira” (p. 95). A menina que sai de casa para fazer um recado à mãe, na tradição do conto infanto-juvenil, é a Capuchinho Vermelho, talvez o conto – a par com a Gata Borralheira – de que há mais versões, reescritas e adaptações [1] (no cinema, cultura popular e até na publicidade; na literatura destacaria três belos contos de Angela Carter em The Bloody Chamber, de 1979, “The Werewolf”, “The Company of Wolves” e “Wolf-Alice”, todos de conteúdo feminista).
       No entanto, as duas versões do conto, a de Charles Perrault, de 1697, e a versão de Jacob e Wilhelm Grimm, de 1812, são muito diferentes, embora façam ambas parte do processo de socialização das crianças, nomeadamente das meninas.[2] “Le petit chaperon rouge” é o único dos contos de Perrault que não tinha à época fixação escrita, e que acaba mal, com o lobo a devorar primeiro a avó, e depois a Capuchinho. Estes contos existiam na tradição oral, eram contados e não escritos, e Perrault desistiu, ao fixá-los numa primeira versão escrita, de lhes chamar “Contes de ma mère l’oye” ou “Contes de la cigogne”, porque a Academia Francesa considerava, em 1694, esses contos como “fables ridicules telles que sont celles dont les vieilles gens entretiennent et amusent les enfants” (Vd. Perrault, 1981: 25) A versão dos irmãos Grimm quer promover nas crianças a virtude da obediência, e apresenta um final feliz com um protector da menina, o lenhador que salva a avó e a Capuchinho do lobo mau. O final feliz implica que a Capuchinho não vai voltar a desobedecer à mãe, perder tempo a passear pela floresta, nem falar com desconhecidos.
       A versão de Perrault não podia ser mais diferente: a finalidade é proteger a virgindade das meninas, já que era um bem a trazer para o matrimónio. Publicada em 1796, esta versão destinava-se ao público da corte de Versalhes, do Rei-Sol, Luís XIV. Este tempo era caracterizado pela coexistência de costumes libertinos e, contraditoriamente, de grande exigência de castidade feminina como requisito para o mariage de raison organizado pelos pais para vantagem social e financeira (Vd. Orenstein, 2004, passim). Nessa época de sedução era necessário proteger as meninas, e os pais enviavam as filhas para conventos de onde só saíam para o casamento. A conclusão de Perrault avisa as jovens em relação aos perigos de sedução dos “lobos”: no calão da época, dizia-se de uma jovem que ela tinha “visto o lobo” – “avait vû le loup” – quando tinha perdido a virgindade (Vd. Idem, ibidem). A gravura da 1ª edição dos Contes de Perrault, de Clouzier, mostra o carácter sexual do conto, uma história de sedução, bem como a ilustração de Gustave Doré, ambas com a protagonista na cama com o lobo (na gravura de Clouzier não se percebe se a figura feminina representa a menina ou a avó). A cor do Capuchinho, que na versão de Perrault e ainda na de Grimm era um chapéu, é o vermelho, cor do sangue e do escândalo. Só com a ampla difusão do conto na Inglaterra vitoriana o chapeuzinho se transforma no “Riding Hood” típico das zonas rurais inglesas.
       As versões de Perrault e Grimm, que tendemos a considerar intemporais e universais, baseavam-se em versões antigas de grande riqueza. Ambas nos apresentam uma heroína imatura, que tem de ser castigada, e assim foram canonizadas por Bruno Bettelheim (1977). No entanto, nas versões anteriores da tradição oral, estas narrativas eram, tal como muitos outros contos e mitos populares, estruturas de “ritos de passagem”, de histórias de amadurecimento – assim se deve entender o final feliz do casamento em muitos contos, significando a chegada à idade adulta. Estas estruturas apresentavam uma heroína triunfante sobre o adversário (neste caso o lobo, o bzou, ou lobisomem), que tal como os heróis masculinos empreendia uma viagem de amadurecimento (“wisdom journey”). (Cf. Orenstein, 2004) Mas durante muitos séculos em que a mulher teve estatuto de menoridade enquanto solteira, estas narrativas transformaram a heroína num ser carente de protecção e incapaz de se defender por si própria. Perrault aproveitou versões orais anteriores, nomeadamente “A história da avó”, com raízes em contos antigos da Ásia, (Windling, 2004)[3] e transformada nas tradições rurais da França a partir da Idade Média. (Cf. Idem, ibidem)[4] Nestas versões, a heroína tinha de escolher, na floresta, entre o caminho das agulhas e o dos alfinetes. Os alfinetes simbolizavam a passagem da infância para a adolescência, a idade em que a jovem aprendia a enfeitar-se, a vestir-se, e podia começar a ter admiradores; as agulhas simbolizavam a maturidade sexual e o casamento.[5] Assim, a heroína que escolhesse o caminho das agulhas estava errada, pois havia que respeitar etapas de amadurecimento e preparação. Em todas as versões de “A história da avó” a heroína conseguia desenvencilhar-se do lobo sozinha.
       As adaptações e versões modernas dos séculos XX e XXI recuperam a independência da heroína e transformam o seu potencial erótico-sexual, que as versões de Perrault e Grimm queriam “socializar”, reprimindo e corrigindo, na principal característica e riqueza das figuras femininas. É neste contexto que vamos brevemente ler os dois contos de Irene Lisboa e Raduan Nassar, à luz da tradição europeia do conto infanto-juvenil. Nos dois casos não se tratará propriamente de versões do conto do Capuchinho Vermelho, mas em ambos há reminiscências do conto tradicional. Ambas as meninas, já o vimos, saem de casa para fazer um recado à mãe e têm experiências que as levam para além do limiar da puberdade. A vivência de Rosalina na praia culmina com a experiência do pôr-do-sol: a menina interpela o sol que espere, arrebata-o e atira-o ao mar. Já o nome de Rosalina, de algum modo relacionado com a cor vermelha, liga o conto de Irene Lisboa à história do Capuchinho Vermelho; mas a transformação do sol poente em apogeu das aventuras de Rosalina na praia é outro elemento decisivo de ligação dos dois textos. Alguns estudiosos interpretam o chapéu vermelho da Capuchinho como podendo simbolizar o sol nascente (outros, como Bruno Bettelheim, interpretam-no como simbolizando o aparecimento da menstruação).
       Quanto a Raduan Nassar, o seu texto é de igual modo uma história de experiência de vida e de crescimento da heroína. Esta menina cresce ao deus-dará, não tem que se ater a regras numa família que não é idealizada como na versão dos irmãos Grimm, e descobre o mundo dos adultos como predominantemente sexual. Dir-se-ia que Nassar pôs a nu com toda a crueza tudo o que aparecia reprimido pela sociedade e “bons costumes” nas versões tradicionais. A cena final, em que a menina descobre o corpo no espelho da casa de banho, recorda estranhamente a versão de um dos três contos de Angela Carter sobre esta história, “Wolf-Alice”, em que a menina selvagem descobre, igualmente acocorada sobre um espelho, o seu sexo.[6] Esta personagem de Carter mostra que os lobos são mais humanos e mais solidários do que aquilo em que os homens se tornaram.
       Charles Dickens afirmou que a Capuchinho Vermelho foi o seu primeiro amor e que sentia que, se tivesse casado com ela, teria conhecido a felicidade perfeita.[7] Não sei se aquilo que atraiu Dickens foi a virtude da obediência, ou as características que esta figura feminina sempre conservou, apesar dos esforços normativos de Perrault e Grimm: a sua curiosidade, juventude e espírito de aventura. As versões modernas da história do Capuchinho Vermelho retomam todas, de algum modo, a versão mais antiga em que a heroína faz um percurso de descoberta e amadurecimento, tal como durante séculos foi privilégio dos heróis masculinos, e valorizam o potencial erótico-sexual das heroínas, anteriormente reprimido, como força criativa e de possível integração social. Penso que os vestígios do conto do Capuchinho Vermelho que encontramos nos dois textos de Irene Lisboa e Raduan Nassar devem ser compreendidos neste contexto.
 

[1] Vd. Zipes, Jack,1982; Dundes, Alan,1989; Orenstein, Catherine, 2002.
[2] Vd, neste contexto, Zipes, Jack, 1983.

[3] Windling refere um conto muito semelhante à história do Capuchinho Vermelho, existente em várias formas na China, Japão e Coreia, intitulado “Great Aunt Tiger”.

[4] Vd. também o trabalho fundamental de Verdier, 1997.
[5] Cf. o conto de Irene Lisboa em Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma “Agulhas e alfinetes”, op. cit., 35.
[6] Cf. Carter, Angela, “Wolf-Alice”, in: The Bloody Chamber, New York: Harper and Row, 1978. Note-se, no entanto, que o conto de Nassar é anterior ao de Carter.
[7] Vd. Windling, Terri, op. cit., último parágrafo do texto. Também em Bettelheim, Bruno, op. cit.
 
Imagens
"Le petit Chaperon Rouge". Gravura de Clouzier para a edição de 1697 de Les Contes de Perrault.
"Le petit Chaperon Rouge". Gravura de Gustave Doré para a edição de J. Hetzel de Les Contes de Perrault (1867).
Frontispício da edição ilustrada por Gustave Doré, com a legenda "La lecture des contes en famille".
 

Bibliografia

- Bettelheim, Bruno (1977), The Uses of Enchantment. The Meaning and Importance of Fairy Tales, New York, Vintage Books.
- Grimm, Brüder (1976), Kinder- und Hausmärchen, Frankfurt a.M, Insel.
-Carter, Angela (1979), The Bloody Chamber, Harmondsworth, Penguin.
- Carvalho, Pedro Luso de (1996), “Conversa”, entrevista de Raduan Nassar a Cadernos de Literatura Brasileira, nº 2, Setembro de 1996, excertos no blogue Panorama, “Raduan Nassar – Um clássico moderno”.
- Dundes, Alan (1989), Little Red Riding Hood. A Casebook, Wisconsin, The University of WisconsinPress.
- Florêncio, Violante (52000), “Prefácio” a Lisboa, Irene: Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma. Historietas, Lisboa, Presença.
- Lemos, Maria José Cardoso (2003), “Raduan Nassar: apresentação de um escritor entre tradição e (pós) modernidade”, in: Estudos Sociedade e Agricultura, 20, Abril, 81-112. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/vinte/lemos20.htm (consultado em Abril de 2011).
- Lisboa, Irene (1991), Obras de Irene Lisboa, Vol. I – Poesia I, Lisboa, Presença.
- ______ (1993), Obras de Irene Lisboa: Vol. III – Começa uma vida, Lisboa, Presença.
- ______ (1994),Obras de Irene Lisboa: Vol. IV – Voltar atrás para quê?, ed. Paula Morão, Lisboa, Presença.
- ______ (52000), Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma. Historietas, Org. e nota introdutória de Paula Morão, prefácio de Violante Florêncio, Lisboa, Presença.
- Lopes, Óscar (1994), “Uma lágrima engolida no ‘comum existir’, in: Voltar a Irene Lisboa. Colóquio Letras nº 131, Janeiro-Março.
- Morão, Paula (1985), O essencial sobre Irene Lisboa, Lisboa, INCM.
- Nassar, Raduan (2000), Menina a caminho, Lisboa, Cotovia.
- Orenstein, Catherine (2002), Little Red Riding Hood Uncloaked. Sex, Morality, and the Evolution of a Fairy Tale, New York, Basic Books.
-______ (2004), “Dances with Wolves”, in: Ms. Magazine, summer 2004. http://www.msmagazine.com/summer2004/danceswithwolves.asp (consultado em Abril de 2011).
- Perrault, Charles (1981), Contes, Paris, Gallimard.
- Verdier, Yvonne (1997), “Le petit chaperon rouge dans la tradition orale” (tradução inglesa “Little Red Riding Hood in the Oral Tradition”), in: Marvels & Tales: Journal of Fairytale Studies, Vol. 11, Numbers 1-2.
- Windling, Terri (2004), “The Path of Needles and Pins: Little Red Riding Hood”, in: Realms of Fantasy Magazine, August.
- Zipes, Jack (1982), Rotkäppchens Lust und Leid. Biographie eines europäischen Märchens, Köln, Diederichs.
-______ (1983), Fairy Tales and the Art of Subversion. The Classical Genre for Children and the Process of Civilization, London, Heinemann.


Ana Maria Delgado

(Universidade de Leipzig / Instituto Camões / CLEPUL)
 

* Comunicação apresentada ao 9º Congresso dos Lusitanistas Alemães, na Universidade de Viena, em 2011, na secção dirigida por Gabriela Fragoso, "Representações da infância em contextos literários lusófonos: que espaço para a utopia?". Publicado em FRAGOSO, Gabriela (org.), Literatura para a Infância. Infância na Literatura. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, p. 63-73.