Midnight
in Paris e o conto de E.
T. A. Hoffmann ‘Der goldne Topf’: a herança romântica de Woody Allen [1]
“Gil: The past is not dead, in fact it is not even past!” [2]
Woody Allen, Midnight in Paris (2011)
A cena de abertura de Manhattan, o inesquecível filme que Woody Allen dedicou a Nova Iorque em 1979, mostra-nos uma série de imagens da cidade que o realizador considera sua, a preto e branco e acompanhadas pela“Rhapsody in Blue” de George Gershwin. A personagem de Isaac Davis, alter ego de Allen no filme, liga esta descrição da cidade, vista a uma certa distância, à designação de “romantic”: “Chapter One: He adored New York City. He idolized it all out of proportion. Uh, no, make that, he-he… he romanticized it all out of proportion (…) He was too romantic about New York city, as he was about everything else.” A percepção de Isaac de Nova Iorque como “a town that existed in black and white and pulsated to the great tunes of George Gershwin” contrasta com a sua observação final nesta sequência, apresentando a cidade como “a metaphor for the decay of contemporary culture”, mostrando a consciência crítica que tem o narrador da idealização de Nova Iorque “all out of proportion". Toda a beleza visual do filme não encontra equivalência na qualidade moral das personagens (excluindo a adolescente Tracy), e a dinâmica essencial do filme consiste nesse contraste[3]. A palavra e noção de “romântico” aparecem, neste contexto, associadas à idealização, à produção de imagens belas, sumptuosas, perfeitas, que vão servir de pano de fundo contrastivo às personagens do filme e à época contemporânea, caracterizada pela decadência cultural e moral.
Algumas décadas depois, em 2011, Woody Allen dedica mais um filme a uma cidade, desta vez Paris, abrindo o filme com imagens da cidade-luz, acompanhadas por um tema musical de Sidney Bechet, “Si tu vois ma mère”. Em ambos os filmes a sofisticada sensibilidade musical do realizador, aliás também músico de jazz, ligou esses temas musicais às duas cidades não só por condizerem com elas atmosfericamente, mas também pela profunda relação de Gershwin com Nova Iorque e de Bechet com Paris, respectivamente. O filme Midnight in Paris vai encenar a relação de Allen com a Europa, os anos 1920, o surrealismo, a Belle Époque e, finalmente, com o romantismo, afinal com a herança cultural europeia. O herói do filme, outro alter ego de Woody Allen, Gil Pender, é também profundamente romântico, sensível, idealizando atmosferas, capaz de respirar a densidade e sentido históricos de um lugar urbano, a cidade de Paris, vista e vivenciada sempre através da música e da arte.
Tal como Isaac Davis em Manhattan, também Gil, guionista de profissão, quer, apesar do sucesso que tem na indústria fílmica, escrever um
romance e tornar-se escritor. Logo na cena inicial a seguir às imagens de uma
Paris turística mas também à chuva, e ainda sobre o fundo negro do genérico do
filme, ouve-se um diálogo que torna bem evidente o desencontro básico entre Gil
(Owen Williams) e a noiva, Inez (Rachel McAdams): Gil está fascinado pela
cidade, pela chuva, pelos anos 1920, pela vida cultural e artística de
escritores, pintores e músicos que pulsa então em Paris. Gil declara que
abandonaria a casa com piscina em Beverly Hills se pudesse escrever romances em
Paris. Nesta altura a tela mostra-nos um cenário nos arredores de Paris
representando o conhecido quadro de Monet com um lago e nenúfares e uma ponte.
O cenário idílico acentua por antítese a discussão entre os dois, e Inez
comenta: “You’re in love with a phantasy.” Embora Gil responda “I’m in love
with you”, a música revela a verdade dos dois noivos e a situação real de Gil
na relação com Inez, com o tema “Je suis seul ce soir (avec mes rêves)”. A
verdade é que o desencontro entre os dois está contido na resposta dada
explicitamente por Inez à pergunta de Gil na cena inicial, apelando à
imaginação dela e do espectador simultaneamente: “Can you picture how drop dead
gorgeous this city is in the rain? Imagine this city in the 20’s”[4], ao que
Inez observa: “Why does every city have to be in the rain? What’s wonderful
about getting wet?” Gil insiste: “I mean could you ever picture us maybe moving
here after we’re married?”, mas Inez replica no seu jeito pragmático: “Oh God
no! I could never live out of the
US”, mostrando a falta de sintonia entre os dois.
Esta situação de desencontro fundamental
acentua-se na cena seguinte, o jantar no hotel com os pais de Inez. O pai dela
está feliz com o negócio de fusão de empresas que o levou a Paris, mas diz não
gostar da política francesa, ao que Gil comenta que, em sua opinião, não se
pode censurar os franceses por não quererem participar na Guerra do Iraque, o
que provoca grande irritação nos pais de Inez e nela própria. Também na
política se encontram em áreas distintas, republicanos mais tradicionais versus democratas, e ao comentário de
Gil, acentuando que em democracia se deve respeitar a opinião contrária, os
futuros sogros fazem uma cara de desagrado. O conflito prolonga-se no quarto de
hotel todo em tons de dourado e amarelo de Gil e Inez, quando ela tenta
convencê-lo a continuar a bem-sucedida carreira de guionista de Hollywood e
largar mão da tentativa de escrever um romance. Apesar de Gil desejar continuar a ver Paris no dia seguinte, Inez impõe uma visita turística a Versalhes com os
amigos Paul e a mulher, Carol. Fora do Palácio, frente aos jardins franceses de
Versalhes, Paul comenta a arquitectura do monumento e fala do estilo
classicista do Palácio, embora numa cena posterior com uma guia (interpretada
por Carla Bruni) fiquemos convencidos de que as informações veiculadas por Paul
não são fidedignas, já que ele afirma peremptoriamente que Camille Claudel era
a mulher de Rodin. Inez comenta que conseguiria viver ali: “I could get used to
a summer house like this”, e a seguir quer discutir o romance de Gil com o
casal amigo. Gil tenta defender a privacidade da sua escrita, mas Inez continua
a explicar que a personagem principal tem uma “nostalgia shop”, e tenta
ridicularizar essa personagem que, em sua opinião, tal como Gil vive no
passado, bem como as pessoas que julgam que seriam mais felizes numa outra
época do que naquela em que vivem, no caso de Gil a Paris dos anos 1920, sem a
chuva ácida dos nossos dias, o aquecimento global, a TV, os atentados
bombistas, armas atómicas, cartéis de droga, etc. Paul disserta sobre o tema:
“Nostalgia is denial, denial of the painful present”, e Inez desenvolve logo a
ideia: “Gil is a complete Romantic. He would be more than happy in a
complete state of perpetual denial.” Paul conclui: “And the name for this
fallacy is called ‘Golden Age thinking’, the erroneous notion that a different
time period is better than the one one’s living in. It’s a flaw in the romantic
imagination of those people who find it difficult to cope with the present.” Inez assumirá numa das cenas finais do
filme, em que Gil rompe o noivado, ter passado algumas noites com Paul por ele
ser “romantic”, mostrando a superficialidade com que contempla a traição a Gil
e usa a palavra “romantic” (na vulgar acepção de “sentimental”, dizendo
respeito a um caso amoroso).
Paul fala em tom de Magister dixit sem admitir réplica (mais tarde será classificado
pela guia turística como “intelectual pedante”), e a cena muda para um grande plano
de uma montra de joalharia onde Inez e a mãe contemplam apreciativamente uma
aliança com brilhantes, perfeita para o casamento, já que poria toda a gente a
olhar para a noiva na cena da troca de alianças no altar. Os valores estão
assim definidos desde o início do filme, imaginação, sonho e herança cultural do
lado de Gil, versus pragmatismo,
sucesso mundano e dinheiro do lado de Inez e dos pais dela. As personagens do
mundo contemporâneo americano são planas e caricaturadas em comparação com as
personagens do mundo alternativo, mais desenvolvidas.
Assim, pouco nos admiramos quando Gil não alinha com o casal amigo e Inez numa ida à discoteca, e decide em vez disso
divagar sozinho por Paris. Ao soar das doze badaladas da meia-noite, porta para
o mundo de sonho e fantasia, aparece-lhe um Peugeot amarelo antigo, da época
que ele admira, e os ocupantes, em clima de festa, convidam-no a entrar e a
festejar com eles. Este automóvel que evoca uma época, bem como a memória do
cinema, é o instrumento para a viagem nocturna de Gil através do tempo. Em
breve se encontra numa sala em clima festivo com Zelda e F. Scott Fitzgerald,
ao som da música de Cole Porter “Let’s Do it (Let’s Fall in Love)”, interpretada
pelo próprio compositor ao piano. Neste mundo alternativo que se desenvolve em
ambiente de quase science-fiction
(aliás cultivado por Woody Allen noutros filmes), Gil vai encontrar os seus
semelhantes, personagens que o compreendem, aconselham e com quem se sente à vontade
para conversar sobre os temas que lhe são queridos, sem a constante censura e
correcção de Inez – Hemingway, Pablo Picasso, Salvador Dali, Man Ray, Gertrude
Stein, que vai ler o romance de Gil e fazer-lhe sugestões, e Adriana (interpretada
por Marion Cotillard). Desenvolve com Adriana uma relação especial de grande
afinidade, e uma noite, passeando pela Paris dos anos 20, são abordados por uma
carruagem que os convida a entrar e os transporta à Belle Époque, Chez Maxim’s,
um dos sítios preferidos de Adriana. No Moulin Rouge encontram
Toulouse-Lautrec, Gauguin e Degas, e Adriana deseja permanecer naquela época
que considera a ideal. Nisto residirá o desencontro entre Gil e Adriana, já que
desejam viver em Idades de Oiro diferentes, ela a Belle Époque e ele os anos
1920. Nesta discussão com Adriana, Gil ganha consciência do que pode
significar um conceito como o de Golden
Age: “Adriana, if you stay here, if this becomes your present, pretty soon
you’ll start imagining another time was really the Golden Time. That’s what the
present is, it’s a little unsatisfying, because life is a little unsatisfying”.
(...) a continuar
[1] Este texto foi apresentado em versão alemã como comunicação
ao Congresso da Sociedade de E. T. A. Hoffmann a 20 de Abril de 2013 em
Bamberg. Gostaria de o dedicar a Marina Ramos Themudo, como reconhecimento do
diálogo sempre inspirador que mantemos desde o período de preparação e escrita
da minha dissertação sobre E. T. A. Hoffmann e o Romantismo alemão.
[2]
Woody Allen cita William Faulkner, Requiem
for a Nun (1950): “The past is never dead. It’s not even past.”
[3] Vd. BAILEY,
Peter J., The Reluctant Film Art of Woody
Allen. Kentucky: The University Press of Kentucky, 2001, cap. 4, “Art and
Idealization – I’ll Fake Manhattan”, p. 47 ss.
[4] A expressão “drop dead gorgeous”, aqui
usada por Gil e entretanto muito popular no mundo do cinema, foi cunhada em
1985 pelo crítico de cinema e editor da revista Time Richard Nelson Corliss para descrever o desempenho de Michelle
Pfeiffer no filme Into the Night.
Ana Maria Delgado
(Universidades de Hamburgo e de Rostock / Camões I.P. / CLEPUL-FLUL)
REAL
In: REAL - Revista de Estudos Alemães nº 5, Agosto de 2014, pp. 1-14.