quinta-feira, 30 de outubro de 2014

"Midnight in Paris" e o conto de E. T. A. Hoffmann ‘Der goldne Topf’: a herança romântica de Woody Allen II

 
 
 
 
 

 
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       De novo na sua Golden Age, Gil reencontra Gertrude Stein, que tem a boa notícia de que o romance dele, após a reescrita do primeiro capítulo, está agora no bom caminho. Mas previne-o de que Hemingway também o leu e gostaria de o avisar da traição da noiva, que está a ter um caso mesmo à frente dos olhos dele. Regressando ao presente, Gil confronta Inez com este facto, ao que ela reage como de costume, atribuindo tudo a um tumor dele no cérebro, já que as pessoas com quem ele julga dialogar estão mortas há muito tempo, ao que Gil responde: “The past is not dead, in fact it is not even past!”
 
       Esta frase de Gil podia bem ser o mote de Midnight in Paris: os filmes de Woody Allen sempre tiveram uma qualidade musical que os aproxima dos filmes musicais. A música da filmografia do realizador são standards de jazz clássico que pontuam, comentam e acompanham a acção do filme e as personagens, tendo assim função semelhante à banda sonora dos musicals. Neste caso, a música de Sidney Bechet transporta-nos para uma Paris do passado, mesmo antes de aparecer a Gil o automóvel amarelo antigo (provavelmente uma homenagem de Allen ao cinema, através da citação do filme The Yellow Rolls-Royce, de 1964) que o conduz, e os espectadores com ele, à Paris dos anos 1920 (Gil, tentando explicar a Inez o que lhe acontece à noite: “I get into a car and I slide through time”). Muito mais do que uma questão de nostalgia ou de desejo de fuga para um mundo alternativo idealizado, trata-se aqui de uma revisitação do passado cultural e artístico centrado na Paris dos anos 1920. Gil sente toda a densidade histórica e sentido de Paris, tudo aquilo que se cruza nesse lugar urbano, o passado histórico visto através da arte e da música.
 
       A Paris dos anos 1920 é especialmente fértil em trocas culturais entre a Europa e a América. Paris é o centro do mundo cultural e artístico de então, e a cidade pulsa e fervilha com músicos, artistas, pintores e escritores, muitos deles “americanos em Paris” - Cole Porter, Scott Fitzgerald, Hemingway, Gertrude Stein, e finalmente até mesmo T. S. Eliot. Trata-se também de uma homenagem de Woody Allen ao cinema, pela evocação do filme musical An American in Paris (1951), com música de George Gershwin, realizado por Vincent Minnelli.  Esta Paris é o ponto de encontro de várias artes: literatura e música, pintura, cinema (Luis Bunuel), e fotografia (Man Ray). Mas esta riquíssima intertextualidade e intermedialidade do período surrealista francês aponta para mais longe, como poderá indicar a banda sonora quando Gil e Adriana são transportados à Paris da Belle Époque (1890): ao entrar no Maxim’s ouvimos a “Barcarolle” dos Contos de Hoffmann de Jacques Offenbach, e quando os dois vão até ao Moulin-Rouge assistem ao “Can-Can” da ópera cómica Orfeu nos Infernos do mesmo compositor francês. Como estudiosa do período surrealista francês na sua relação com o romantismo, nomeadamente com o romantismo alemão, não pude deixar de ser sensível a esta indicação, que confirma a relação de Midnight in Paris com elementos do romantismo e com a obra do romântico tardio E. T. A. Hoffmann, e que passarei a expor[1].

       Seguindo o mote e reconhecimento de Gil de que o passado não é passado e continua vivo nas nossas vidas, recordemos como ele perspectiva, na última conversa com Adriana, o desejo de viver numa Golden Age, que acaba por ser compreendida como representando a herança do passado: “Look at these guys, to them – their Golden Age was the Renaissance, you know, they’d rather trade the Belle Époque to be painting alongside with Tizian and Michelangelo; and those guys imagine life was a lot better when Kubla Khan was around”. Gil inverte aqui a frase “Chaque époque rêve la suivante”, para nos fazer entender que idealizamos sempre a nossa herança, elegendo uma época do passado que transformamos em Golden Age e em ponto de referência. Assim o tema romântico da fuga ou evasão no espaço e tempo, causado pelo mal-estar na época em que se vive, seja ela qual for, transforma-se em Midnight in Paris no tema da herança: não poderemos compreender adequadamente o presente sem a inclusão do passado. Gil reconhece que se deseja mudar de época porque o presente é “dull” e “That’s what the present is, It’s a little unsatisfying, because life is unsatisfying”. Trata-se de um desenvolvimento do tema, já formulado em Manhattan, do carácter irresolúvel do universo e da insatisfação humana. Midnight in Paris não nos confronta, assim, só com a questão da nostalgia (que pode corresponder ao sentimento romântico de Sehnsucht, ânsia): Woody Allen faz-nos repensar a herança europeia através da revisitação de dois dos movimentos artístico-literários que mais influência tiveram na cultura ocidental, o romantismo e o surrealismo, pondo à prova a nossa capacidade hermenêutica de entender o passado para melhor entender o presente. Inez, em contraste com Gil, só vê o passado no seu lado decorativo, como décor: veja-se a maneira como ela e o casal amigo olham para o Palácio de Versalhes, e o uso que Inez e a mãe querem dar a umas cadeiras que descobrem numa loja de antiguidades de Paris e querem comprar por um preço exorbitante para a futura casa do jovem casal em Malibu. O contraste fundamental de Midnight in Paris perspectiva-se contra o pano de fundo de uma vivência urbana de uma sociedade consumista que perdeu a capacidade de sonhar e de idealizar, marcada por um consumismo desinteressante, incapaz de viver e recordar os momentos históricos de profunda actividade cultural e de euforia espiritual. As figuras prosaicas de Midnight in Paris vivem um presente sem alma e sem ideal, que se vai gastando, sem qualquer hipótese de redenção, no consumismo diário. Neste aspecto essencial, a crítica a esta sociedade burguesa pragmática e sem narrativa, porque a narrativa pressupõe História, remonta à época romântica, toda ela imbuída de um profundo mal-estar dos artistas em relação à sociedade burguesa, cujos valores são meramente prosaicos e pragmáticos (recorde-se neste contexto, por ex., a “Marcha dos ‘Davidsbündler’ contra os Filisteus” de Robert Schumann, o trecho final da peça Carnaval, Op. 9, Scènes mignonnes sur quatre notes).
 
       Esta contemporaneidade de uma vivência urbana que está a perder o sentido da História, a compreensão da cidade como o lugar onde a História aconteceu, situa-se na continuidade da época romântica, em que há a consciência dos artistas de perda de uma outra coisa, que não é propriamente a História, mas algo de verdadeiramente fundamental para o homem: a harmonia do ser humano com a Natureza, a capacidade de viver ao mesmo ritmo que essa Mãe-Natureza. O romantismo alemão desenvolveu, nomeadamente com Schelling, uma Filosofia da Natureza que mostra o profundo desenraizamento do homem em relação à sua origem, ao fundo misterioso da Natureza, apelando a que todo o mundo humano integre a Natureza mergulhando nas suas raízes, nesse todo primitivo que é a Natureza telúrica, e recupere a harmonia perdida com essa força maior e originária. Continuando a herança romântica alemã, o filme Midnight in Paris apresenta simultaneamente uma diferença: a representação da vivência urbana em Woody Allen lamenta a perda da memória, da capacidade de vivência histórica, perspectivando a herança cultural do passado e valorizando positivamente a capacidade de sonhar e de comunicar com outras épocas históricas.
 
        Não é possível provar que o realizador tenha lido “Der goldne Topf”, mas é muito provável que ele conhecesse este conto. Woody Allen leu Sigmund Freud, e é possível que através dele, nomeadamente do ensaio “Das Unheimliche” (estranho, sobrenatural), baseado em materiais da filosofia de Schelling e em dois contos de E. T. A. Hoffmann (“Der Sandmann” e o romance Die Elixiere des Teufels), tenha chegado a ler os contos de Hoffmann. Para além disto, a Literatura Comparada investiga hoje com toda a legitimidade não só textos nos quais um autor cita directa ou indirectamente outro, mas também obras que apresentem paralelos, semelhanças ou afinidades entre si[2]. E. T. A. Hoffmann estará certamente em boa companhia na evocação de Woody Allen em Midnight in Paris: o cineasta é um realizador de culto, e realizou alguns dos filmes que marcam a nossa contemporaneidade (Manhattan, Annie Hall, Interiors, The Purple Rose of Cairo, entre outros).



       Será altura de começar a recordar o texto de E. T. A. Hoffmann com o qual Midnight in Paris apresenta tantos paralelos: trata-se do Märchen ou conto fantástico ‘Der goldne Topf’, incluído nos Fantasiestücke in Callots Manier. Blätter aus dem Tagebuch eines reisenden Enthusiasten. São textos escritos sob a égide do sonho, tirados do diário do Viajante Entusiasta ou do Visionário, que não distingue a sua vida interior da vida exterior e trata por tu, como velhos conhecidos, quer o leitor, quer as figuras estranhas do seu texto[3]. Também Gil é um Viajante Entusiasta, descrito como “turista” por Adriana mas também como “poeta”; ele viaja entre épocas e entre domínios – a vida e a arte, realidade e ficção, realidade e sonho, dia e noite. Ao mesmo tempo um outro “promeneur solitaire” através de Paris em várias épocas, Gil é um bom exemplo da continuidade em Woody Allen do interesse dos românticos por outros países e povos (recorde-se a bela composição de Robert Schumann, que tão bem documenta este interesse, “Von fremden Ländern und Menschen”, das Kinderszenen, op. 15). Mais do que fuga ou evasão no tempo e espaço, este viajar pelo tempo significa em Midnight in Paris mais a memória e a permanência de tempos passados, do que o mal-estar na época presente, provocado pelo seu pragmatismo e consumismo.

(a continuar)


[1] Vd. DELGADO, Ana Maria, Aragons ‘La Mise à mort’ und die Rezeption romantischer Motive, Diss. Humboldt-Universität de Berlim, 1984, bem como Os motivos do espelho, da sombra e do duplo nos textos de E. T. A. Hoffmann ‘Der goldne Topf’, ‘Die Abenteuer der Silvesternacht’ e ‘Die Elixiere des Teufels’. Diss. Universidade de Coimbra, 1994.

[2] E não só estudando materiais intertextuais, como também intermediais, como é aqui o caso (intertextualidade e intermedialidade entre o cinema e a literatura).
[3] Cf. HOFFMANN, E. T. A., “Vorwort des Herausgebers”, “Die Abenteuer der Silvesternacht”, in: Fantasie- und Nachtstücke (Werke I). Ed. Walter Müller-Seidel. München: Winkler Verlag, 1976, p. 256.
 
Ana Maria Delgado
 
(Universidades de Hamburgo e de Rostock / Camões I.P. / CLEPUL-FLUL)
 

In: REAL - Revista de Estudos Alemães nº 5, Agosto de 2014, pp. 1-14.

REAL