(...)
De novo na sua Golden Age, Gil reencontra Gertrude Stein, que tem a boa notícia de que o romance dele, após a reescrita do primeiro
capítulo, está agora no bom caminho. Mas previne-o de que Hemingway também o
leu e gostaria de o avisar da traição da noiva, que está a ter um caso mesmo à
frente dos olhos dele. Regressando ao presente, Gil confronta Inez com este
facto, ao que ela reage como de costume, atribuindo tudo a um tumor dele no
cérebro, já que as pessoas com quem ele julga dialogar estão mortas há muito
tempo, ao que Gil responde: “The past is not dead, in fact it is not even
past!”
Esta frase de Gil podia bem ser o mote de Midnight in Paris: os filmes de Woody Allen sempre tiveram uma qualidade musical que os aproxima dos filmes musicais.
A música da filmografia do realizador são standards
de jazz clássico que pontuam, comentam e acompanham a acção do filme e as
personagens, tendo assim função semelhante à banda sonora dos musicals. Neste caso, a música de Sidney
Bechet transporta-nos para uma Paris do passado, mesmo antes de aparecer a Gil
o automóvel amarelo antigo (provavelmente uma homenagem de Allen ao cinema,
através da citação do filme The Yellow
Rolls-Royce, de 1964) que o conduz, e os espectadores com ele, à Paris dos
anos 1920 (Gil, tentando explicar a Inez o que lhe acontece à noite: “I get
into a car and I slide through time”). Muito mais do que uma questão de
nostalgia ou de desejo de fuga para um mundo alternativo idealizado, trata-se
aqui de uma revisitação do passado cultural e artístico centrado na Paris dos
anos 1920. Gil sente toda a densidade histórica e sentido de Paris, tudo aquilo
que se cruza nesse lugar urbano, o passado histórico visto através da arte e da
música.
A Paris dos anos 1920 é especialmente
fértil em trocas culturais entre a Europa e a América. Paris é o centro do
mundo cultural e artístico de então, e a cidade pulsa e fervilha com músicos,
artistas, pintores e escritores, muitos deles “americanos em Paris” - Cole
Porter, Scott Fitzgerald, Hemingway, Gertrude Stein, e finalmente até mesmo T.
S. Eliot. Trata-se também de uma homenagem de Woody Allen ao cinema, pela
evocação do filme musical An American in
Paris (1951), com música de George Gershwin, realizado por Vincent Minnelli.
Esta Paris é o ponto de encontro de
várias artes: literatura e música, pintura, cinema (Luis Bunuel), e fotografia
(Man Ray). Mas esta riquíssima intertextualidade e intermedialidade do período
surrealista francês aponta para mais longe, como poderá indicar a banda sonora
quando Gil e Adriana são transportados à Paris da Belle Époque (1890): ao
entrar no Maxim’s ouvimos a “Barcarolle” dos Contos de Hoffmann de Jacques Offenbach, e quando os dois vão até
ao Moulin-Rouge assistem ao “Can-Can” da ópera cómica Orfeu nos Infernos do mesmo compositor francês. Como estudiosa do
período surrealista francês na sua relação com o romantismo, nomeadamente com o
romantismo alemão, não pude deixar de ser sensível a esta indicação, que
confirma a relação de Midnight in Paris
com elementos do romantismo e com a obra do romântico tardio E. T. A. Hoffmann,
e que passarei a expor[1].
Seguindo o mote e reconhecimento de Gil
de que o passado não é passado e continua vivo nas nossas vidas, recordemos
como ele perspectiva, na última conversa com Adriana, o desejo de viver numa Golden Age, que acaba por ser
compreendida como representando a herança do passado: “Look at these guys, to
them – their Golden Age was the Renaissance, you know, they’d rather trade the
Belle Époque to be painting alongside with Tizian and Michelangelo; and those
guys imagine life was a lot better when Kubla Khan was around”. Gil inverte
aqui a frase “Chaque époque rêve la suivante”, para nos fazer entender que
idealizamos sempre a nossa herança, elegendo uma época do passado que
transformamos em Golden Age e em
ponto de referência. Assim o tema romântico da fuga ou evasão no espaço e
tempo, causado pelo mal-estar na época em que se vive, seja ela qual for,
transforma-se em Midnight in Paris no
tema da herança: não poderemos compreender adequadamente o presente sem a inclusão
do passado. Gil reconhece que se deseja mudar de época porque o presente é
“dull” e “That’s what the present is, It’s a little unsatisfying, because life
is unsatisfying”. Trata-se de um desenvolvimento do tema, já formulado em Manhattan, do carácter irresolúvel do
universo e da insatisfação humana. Midnight
in Paris não nos confronta, assim, só com a questão da nostalgia (que pode
corresponder ao sentimento romântico de Sehnsucht,
ânsia): Woody Allen faz-nos repensar a herança europeia através da revisitação
de dois dos movimentos artístico-literários que mais influência tiveram na cultura
ocidental, o romantismo e o surrealismo, pondo à prova a nossa capacidade hermenêutica
de entender o passado para melhor entender o presente. Inez, em contraste com
Gil, só vê o passado no seu lado decorativo, como décor: veja-se a maneira como ela e o casal amigo olham para o
Palácio de Versalhes, e o uso que Inez e a mãe querem dar a umas cadeiras que
descobrem numa loja de antiguidades de Paris e querem comprar por um preço
exorbitante para a futura casa do jovem casal em Malibu. O contraste fundamental
de Midnight in Paris perspectiva-se
contra o pano de fundo de uma vivência urbana de uma sociedade consumista que
perdeu a capacidade de sonhar e de idealizar, marcada por um consumismo
desinteressante, incapaz de viver e recordar os momentos históricos de profunda
actividade cultural e de euforia espiritual. As figuras prosaicas de Midnight in Paris vivem um presente sem
alma e sem ideal, que se vai gastando, sem qualquer hipótese de redenção, no
consumismo diário. Neste aspecto essencial, a crítica a esta sociedade burguesa
pragmática e sem narrativa, porque a narrativa pressupõe História, remonta à
época romântica, toda ela imbuída de um profundo mal-estar dos artistas em
relação à sociedade burguesa, cujos valores são meramente prosaicos e
pragmáticos (recorde-se neste contexto, por ex., a “Marcha dos ‘Davidsbündler’
contra os Filisteus” de Robert Schumann, o trecho final da peça Carnaval, Op. 9, Scènes mignonnes sur quatre
notes).
Esta contemporaneidade de uma vivência
urbana que está a perder o sentido da História, a compreensão da cidade como o
lugar onde a História aconteceu, situa-se na continuidade da época romântica,
em que há a consciência dos artistas de perda de uma outra coisa, que não é
propriamente a História, mas algo de verdadeiramente fundamental para o homem:
a harmonia do ser humano com a Natureza, a capacidade de viver ao mesmo ritmo
que essa Mãe-Natureza. O romantismo alemão desenvolveu, nomeadamente com Schelling,
uma Filosofia da Natureza que mostra o profundo desenraizamento do homem em
relação à sua origem, ao fundo misterioso da Natureza, apelando a que todo o mundo
humano integre a Natureza mergulhando nas suas raízes, nesse todo primitivo que
é a Natureza telúrica, e recupere a harmonia perdida com essa força maior e originária.
Continuando a herança romântica alemã, o filme Midnight in Paris apresenta simultaneamente uma diferença: a representação
da vivência urbana em Woody Allen lamenta a perda da memória, da capacidade de
vivência histórica, perspectivando a herança cultural do passado e valorizando
positivamente a capacidade de sonhar e de comunicar com outras épocas
históricas.
Não é possível provar que o realizador
tenha lido “Der goldne Topf”, mas é muito provável que ele conhecesse este
conto. Woody Allen leu Sigmund Freud, e é possível que através dele,
nomeadamente do ensaio “Das Unheimliche” (estranho, sobrenatural), baseado em
materiais da filosofia de Schelling e em dois contos de E. T. A. Hoffmann (“Der
Sandmann” e o romance Die Elixiere des
Teufels), tenha chegado a ler os contos de Hoffmann. Para além disto, a
Literatura Comparada investiga hoje com toda a legitimidade não só textos nos quais
um autor cita directa ou indirectamente outro, mas também obras que apresentem
paralelos, semelhanças ou afinidades entre si[2].
E. T. A. Hoffmann estará certamente em boa companhia na evocação de Woody Allen
em Midnight in Paris: o cineasta é um
realizador de culto, e realizou alguns dos filmes que marcam a nossa
contemporaneidade (Manhattan, Annie Hall, Interiors, The Purple Rose of
Cairo, entre outros).
Será altura de começar a recordar o
texto de E. T. A. Hoffmann com o qual Midnight
in Paris apresenta tantos paralelos: trata-se do Märchen ou conto fantástico ‘Der goldne Topf’, incluído nos Fantasiestücke in Callots Manier. Blätter
aus dem Tagebuch eines reisenden Enthusiasten. São textos escritos sob a
égide do sonho, tirados do diário do Viajante Entusiasta ou do Visionário, que
não distingue a sua vida interior da vida exterior e trata por tu, como velhos
conhecidos, quer o leitor, quer as figuras estranhas do seu texto[3]. Também
Gil é um Viajante Entusiasta, descrito como “turista” por Adriana mas também
como “poeta”; ele viaja entre épocas e entre domínios – a vida e a arte,
realidade e ficção, realidade e sonho, dia e noite. Ao mesmo tempo um outro “promeneur
solitaire” através de Paris em várias épocas, Gil é um bom exemplo da
continuidade em Woody Allen do interesse dos românticos por outros países e
povos (recorde-se a bela composição de Robert Schumann, que tão bem documenta
este interesse, “Von fremden Ländern und Menschen”, das Kinderszenen, op. 15). Mais do que fuga ou evasão no tempo e espaço,
este viajar pelo tempo significa em Midnight
in Paris mais a memória e a permanência de tempos passados, do que o
mal-estar na época presente, provocado pelo seu pragmatismo e consumismo.
(a continuar)
[2] E não só estudando materiais
intertextuais, como também intermediais, como é aqui o caso (intertextualidade
e intermedialidade entre o cinema e a literatura).
[3] Cf. HOFFMANN, E. T. A., “Vorwort des Herausgebers”, “Die
Abenteuer der Silvesternacht”, in: Fantasie-
und Nachtstücke (Werke I). Ed. Walter Müller-Seidel. München: Winkler
Verlag, 1976, p. 256.
Ana Maria Delgado
(Universidades de Hamburgo e de Rostock / Camões I.P. / CLEPUL-FLUL)
In: REAL - Revista de Estudos Alemães nº 5, Agosto de 2014, pp. 1-14.
REAL