domingo, 2 de novembro de 2014

"Midnight in Paris" e o conto de E. T. A. Hoffmann 'Der goldne Topf': a herança romântica de Woody Allen III





 




  
 

(...)
        Nos contos de E. T. A. Hoffmann, as esferas do mundo burguês quotidiano da Dresden de então e o mundo mítico de Serpentina e do Arquivista Lindhorst, afinal uma Salamandra sobrevivente dos tempos míticos antigos, de união e harmonia entre ser humano e natureza, vão-se sobrepor e confundir. E também a esfera textual e extra-textual, através do leitor, vão confundir-se no texto de Hoffmann, com constantes apóstrofes ao leitor. De igual modo em Midnight in Paris o mundo real de Inez, família e amigos vai intercalar e contrastar com o mundo sonhado de Gil, acessível quando o relógio bate as badaladas da meia-noite em Paris, que correspondem às Vigílias em ‘Der goldne Topf’. Este cruzamento, sobreposição e interpenetração de mundos, da realidade e da ficção, do mundo vivido e do mundo sonhado, são característicos de muitos dos filmes de Woody Allen – basta pensar no belo A Rosa Púrpura do Cairo, no qual esta confusão entre realidade e filme é levada ao extremo. E, tal como em "Der goldne Topf", também aqui o mundo pragmático dos negócios do pai de Inez vai entrar em conflito com o mundo de Gil, que é o mundo da arte, da imaginação e do sonho. De um lado temos o estudante Anselmo, um jovem de ânimo poético, capaz de acreditar no mundo da poesia, dividido entre a noiva burguesa, Veronika, e uma existência sólida, e o mundo de Serpentina e da vida da poesia na Atlântida. Este mundo tem de ser construído através da aprendizagem da escrita e da formação, enquanto Anselmus copia estranhos e misteriosos manuscritos e neles descobre a história da família de Serpentina. Inez, com toda a sua valorização de Gil como futuro marido que ganha bem, e o seu pragmatismo, corresponde a Veronika, que está meramente interessada num casamento burguês com Anselmus. Adriana, que valoriza a emoção e sentimento, corresponde a Serpentina.

 
        O arquivista Lindhorst, mestre de Anselmus nessa aprendizagem do mundo fantástico da poesia, encontra uma correspondência em Gertrude Stein, que lê o manuscrito do romance de Gil e o aconselha sobre a sua escrita: “About your book: it’s very unusual indeed, in a way it’s almost like science-fiction. We all fear death and question our place in the Universe. The artist’s job is not to succomb to despair but to find an antidote to the emptiness of existence. You have a clear and lively voice, don’t be such a defeatist.” Anselmus é um jovem desajeitado, a quem tudo corre mal, Serpentina define-o como “ein kindliches poetisches Gemüt”[1]. É esta simplicidade e ânimo poético infantil que lhe permitem compreender a voz de Serpentina, que é simultaneamente a voz da Natureza. Anselmus vai conseguir copiar o manuscrito de Lindhorst e fazer a sua formação interior através da fé e crença em Serpentina. É nítida a semelhança da figura de Gil com Anselmus (interpretado no filme por Owen Wilson, aliás a interpretar também o duplo de Woody Allen como personagem dos seus próprios filmes). Os ensinamentos de Gertrude Stein são complementados pela teoria da escrita de Hemingway, que afirma: “You never write well if you are afraid of dying. I believe in love that is true and real and creates a rescue from death.” Os conselhos de Stein e de Hemingway sobre escrita coincidem a traços largos com a necessidade de fé, coragem e lealdade para construir o mundo da poesia na Atlântida, recriando o mundo perdido de harmonia do ser humano com a Natureza em ‘Der goldne Topf’.

 
        Conceitos-chave para os românticos e para o romântico tardio que foi Hoffmann são os conceitos de Witz, humor e ironia. Estas noções impedem o autor romântico de se perder no choque entre o sonho e a realidade, o absoluto e o relativo, o infinito e o finito. Mediante elas, consegue superar estas contradições de modo satisfatório. Exemplo disto em Midnight in Paris é a confusão cómica entre as esferas de realidade e ficção, por exemplo quando o pai de Inez contrata um detective para seguir Gil e descobrir o que ele faz nas noites em Paris, e o detective se perde no mundo alternativo, por não ter quaisquer referências históricas e culturais sobre o passado. O mundo sonhado interfere no mundo real e vice-versa, interpenetram-se, provocando um efeito cómico.

 
        Falta considerarmos as afinidades no início e no final das duas narrativas. Anselmus tropeça na cesta de maçãs de uma velha vendedora em Dresden, que lhe profecia “Ins Kristall bald dein Fall!”. Ele vai em seguida ouvir uma música num sabugueiro e apaixonar-se por Serpentina, uma das três filhas de Lindhorst, que lhe aparece na forma de uma serpente verde. Esta música é a porta para o mundo maravilhoso do reino da Natureza e da harmonia perdida, que Anselmus irá reconstruir copiando os manuscritos e formando o seu interior e a vida com Serpentina em Atlantis. Em Midnight in Paris, o veículo que transporta Gil para o mundo alternativo é o automóvel amarelo antigo, mas também nesse outro mundo de sonho a música é determinante e constitutiva da acção, ele é surpreendido pela composição de Cole Porter “Let’s Do it (Let’s Fall in Love) ”.

 
        Quanto ao final, Allen revela-se um companheiro de viagem de Hoffmann, ao mesmo tempo “der skeptische Humanist und weiser Romantiker”[2]. Num caso como no outro, no final não permanecemos nem no mundo quotidiano dos burgueses pragmáticos, nem no mundo sonhado alternativo. O final de "Der goldne Topf" é, tal como o começo novelístico, duplo: afastamo-nos da vida quotidiana burguesa, mas também da vida idealizada na poesia e da visão de Atlantis. O narrador ainda consegue ouvir a pergunta retórica do arquivista Lindhorst no seu quarto esconso, que lhe diz que não se deve queixar, pois esteve na Atlântida e: “Ist denn überhaupt des Anselmus Seligkeit etwas anderes als das Leben in der Poesie, der sich der heilige Einklang aller Wesen als tiefstes Geheimnis der Natur offenbaret?“[3] A escrita do manuscrito que Anselmus copiara e no qual tivera a visão maravilhosa da Atlântida equivale à escrita do conto fantástico que estamos a ler, e o leitor é assim incluído no processo da escrita, que implica uma “romantização”do mundo, uma potenciação, que continua no próprio leitor.

 
        Esta função da arte, que antecipa as teorias do texto e a estética da recepção do séc. XX, equivale à noção da arte que encontramos no final de Manhattan: Isaac reflecte sobre as coisas que tornam a vida digna de ser vivida, quase todas situadas no domínio da arte. Na sequência final de Midnight in Paris, Gil encontra-se numa esplanada e entra numa loja chamada “Shakespeare’s Company” (Shakespeare era o exemplo último de autor genial para os românticos) após ter acabado o noivado com Inez não por causa do affair dela com Paul, mas porque reconhece que não são feitos um para o outro. Gil passeia pela cidade ao anoitecer e ao som das doze badaladas da meia-noite aparece a jovem (Léa Seydoux) que Gil já encontrara duas vezes numa loja de antiguidades e com quem conversara sobre Cole Porter. Conta-lhe ter decidido viver em Paris, e ela diz ter pensado nele por causa de um disco de Porter. Gil pergunta-lhe se a pode acompanhar até casa ou convidá-la para um café, e nesta altura começa a chover; Gil faz-lhe notar isso, ao que ela responde “Oh but that’s ok: I don’t mind getting wet.” Neste momento, como se ela tivesse pronunciado uma frase mágica, recomeçamos a ouvir o tema do filme e do genérico, o tema de Sidney Bechet “Si tu vois ma mère”. Gil diz: “Oh really?” (é importante para ele esta afinidade, pois Inez estava sempre a contrariar tudo o que ele dissesse, sem a mínima atenção pelas suas inclinações e gostos, e era especialmente avessa à chuva). A jovem responde: “Actually Paris is the most beautiful in the rain.” Recomeçam o passeio pelas margens do Sena à chuva, e apresentam-se: “By the way my name is Gabrielle.”[4]

 
       Herança romântica é em Woody Allen, tal como se mostrou na análise, a predilecção por outras épocas, a idealização do urbano, o sonho e a fantasia, a utilização do humor e ironia, sobretudo a construção do filme assente no jogo com a linha que divide o nível da realidade e da fantasia, o mundo real e o mundo sonhado, mundo vivido e mundo imaginado, universo ficcional e mundo do espectador. Mas também a intertextualidade e intermedialidade, aqui entre cinema, música, literatura e arte, são herança romântica da “união das artes”, bem como a reflexão sobre a criação artística, seja ela a literatura ou o cinema.

 
        Ambas as obras possuem uma função meta-poética acentuada, ao reflectir sobre a especificidade do cinema e do “Märchen”, respectivamente. O Vaso de Ouro não é só um espelho mágico, que espelha o passado mítico da família de Serpentina e o futuro utópico de Atlantis; ele é também símbolo do conceito filosófico de reflexão. O Vaso de Ouro é a própria obra enquanto meio de reflexão com função mediadora, a de aproximar o leitor da ideia da Arte. Neste contexto, avizinha-se dos conceitos de “projecto” e “fragmento”, que equivalem ao conceito de “obra de arte” para os primeiros românticos. Midnight in Paris, por seu lado, é uma homenagem à arte do cinema, através das referências aos filmes An American in Paris (1951), Singing in the Rain (1952), e possivelmente a The Yellow Rolls-Royce (1962). Tal como em Hoffmann a história de Serpentina, que Anselmus copia e se transforma na escrita do “Märchen” “Der goldne Topf” pelo narrador, também no filme de Woody Allen os vários níveis se misturam e interpenetram. Um exemplo divertido é a cena na qual a mãe de Inez faz a descrição de um filme que viram na noite anterior e que pode muito bem ser lida como a descrição do próprio Midnight in Paris: “It was a shame you didn’t come to the movies last night, we saw a wonderfully funny American film. It was moronic and infantile and utterly laughable, but John and I laughed in spite of us.” Esta reflexão sobre a própria criação artística liga afinal também os dois autores.


Filmografia
ALLEN, Woody, Midnight in Paris. 2011
ALLEN, Woody, Manhattan. 1979

Bibliografia
BAILEY, Peter J., The Reluctant Film Art of Woody Allen. Kentucky: The UniversityPress of Kentucky, 2001
 
CHEVALIER, Jean / GHEERBRANT, Alain, Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Laffont/Jupiter, 1982 (1ª edição 1969)

DELGADO, Ana Maria, Aragons ‘La Mise à mort’ und die Rezeption romantischer Motive, Diss. Humboldt-Universität de Berlim, 1984

DELGADO, Ana Maria, Os motivos do espelho, da sombra e do duplo nos textos de E. T. A. Hoffmann ‘Der goldne Topf’, ‘Die Abenteuer der Silvesternacht’ e ‘Die Elixiere des Teufels’. Diss. Universidade de Coimbra, 1994

GERHOLD, Hans, Woody Allens Welten: die Filme Von Woody Allen. Frankfurt a/M: Fischer, 1991

HOFFMANN, E. T. A., Fantasie- und Nachtstücke (Werke I). Ed. Walter Müller-Seidel. München: Winkler Verlag, 1976
Ana Maria Delgado
(Universidades de Hamburgo e de Rostock / Camões I.P. / CLEPUL-FLUL)

In: REAL - Revista de Estudos Alemães nº 5, Agosto de 2014, pp. 1-14.

REAL

As duas últimas imagens reproduzidas no início são ilustrações de Karl Thylmann para a edição de 1920 de "Der goldne Topf".

[1]Id. ibid., p. 520.
[2] Vd. GERHOLD, Hans, Woodys Welten: die Filme vom Woody Allen. Frankfurt a/M: Fischer, 1991, p. 126.
[3] HOFFMANN, E. T. A., op. cit., p. 315.
[4] A chuva terá aqui certamente todo o seu significado como símbolo das influências celestes recebidas pela terra, como harmonia do mundo, como agente fecundador, espiritual e materialmente, simbolizando também a luz. Vd. CHEVALIER, Jean / GHEERBRANT, Alain, Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Laffont / Jupiter, 1982 (1ª edição 1969), p. 765-767.