terça-feira, 1 de outubro de 2013





Infância e escrita em dois contos de Irene Lisboa e Raduan Nassar *


       Raduan Nassar tinha 26 anos quando, em 1961, escreveu “Menina a caminho”.  Estudara Direito, Letras e Filosofia e fizera jornalismo. Em 1975, o romance Lavoura Arcaica traz-lhe prémios, elogios da crítica e consagração, e em 1978 publica a novela Um copo de cólera. Os dois livros foram escritos durante um período conturbado no Brasil, a ditadura militar, e tematizam a época na sua violência e valores, sem no entanto se incluírem na literatura comprometida típica desses anos. (Cf. Lemos, 2003) Inexplicavelmente para os seus leitores e para si próprio, como confessa numa entrevista, Nassar deixa de escrever após esses dois intensíssimos livros, e dedica-se à criação rural numa fazenda do Estado de S. Paulo. Chega mesmo a afirmar que “não há criação artística ou literária que se compare a uma criação de galinhas”, atribuindo mais tarde esta afirmação provocatória à sua alegada “falta de temperança”. E continua: “Se eu fosse um sujeito equilibrado, eu não teria tido a liberdade de fazer aquela afirmação. Só desequilibrados é que descobrem que este mundo não tem importância. O bom senso seria uma prisão.” À pergunta do entrevistador “Como é a sua vida hoje”, Nassar respondeu: “Hoje minha vida é fazer no âmbito da fazenda evidentemente, num espaço em constante transformação, o que não deixa de ser uma outra forma de escrever. Além disso, tem em comum com a literatura o fato de eu não saber porquê. Então, é fazer, fazer, fazer.” (Carvalho, 1996) [1] Filho de emigrantes libaneses, Nassar como que regressa às origens da sua família e antepassados na escrita, em Lavoura Arcaica, e depois na sua opção de vida. A radicalidade das escolhas de Raduan Nassar e o entretecer do silêncio na sua vida e escrita é impressionante. O próprio escritor se pronuncia sobre esta sua radicalidade: “Às vezes em 50 páginas você pode dizer muito mais que em 10 livros. Depois, há muitos autores de um único livro que dizem tanta coisa!” (Idem, ibidem) Ele dirá ainda, pronunciando-se sobre a sua aproximação às vanguardas brasileiras da época, que estes movimentos “não conseguiram engolir um paralelepípedo lírico como eu”, mostrando a clara consciência que possui da irredutibilidade do seu “lirismo”. (Cf. Lemos, 2003)

       O conto “Menina a caminho” marca o início da escrita de Raduan Nassar em 1961, embora só venha a ser publicado em 1994. O valor deste texto na obra de Nassar é inaugural, o autor procura uma perspectiva, um ponto de vista para a sua escrita. E vai encontrá-lo numa técnica próxima do cinema e do behaviourismo, através de um narrador que descreve o que vê, acompanhando, como uma máquina de filmar, a deambulação de uma menina sem nome pelas ruas de uma cidade do interior do Estado de S. Paulo. O título do conto, “Menina a caminho”, tanto se pode referir ao vaguear da menina pela cidade, como ao próprio movimento da perspectiva do narrador, que a acompanha como uma máquina de filmar, como até mesmo à evolução da própria escrita de Nassar, que ora se identifica com o narrador, ora com a menina que vai descobrindo aspectos da vida, do mundo e dos outros na pequena cidade, e no final do conto o seu próprio corpo. A personagem da menina fará assim a transição para as primeiras páginas de Lavoura arcaica, nas quais André, adolescente em revolta contra os valores estabelecidos e impostos pelo patriarca, o pai, fala da nudez do seu corpo e da inviolabilidade do seu quarto de pensão. André continua a menina em movimento, entre a infância e a adolescência, tal como a personagem masculina, Ele, de Um copo de cólera, é a continuação mais madura de André. A escrita de Nassar, no entanto, irá transformar-se na prosa lírica de Lavoura arcaica e abandonar o objectivismo da perspectiva narrativa de “Menina a caminho”.

       Esta continuidade em permanente transformação que caracteriza a obra curta mas intensíssima de Nassar, bem como o tema da revolta contra a violência contida no patriarcado e outras formas de autoritarismo, tanto mais politicamente universais quanto não datadas nos textos do escritor, são as principais características que unem esta obra tão diversa na sua unidade. Também a técnica da construção circular é comum às três narrativas, nas quais o final de algum modo retoma e varia o início do texto. (Lemos, op.cit.)

       É mérito de Maria José Cardoso Lemos ter mostrado o lugar de Raduan Nassar na literatura brasileira entre tradição e (pós) modernidade, relacionando o seu projecto ético-estético com o espaço rural natal do escritor, Pindorama, uma pequena cidade do Estado de S. Paulo (Idem, ibidem). É neste contexto que analisa “Menina a caminho” como variação, em registo de paródia, da representação do imigrante brasileiro no “espaço claustrofóbico e opressor de uma pequena cidade do interior” (Idem, ibidem). Nassar pretenderia neste seu primeiro texto “dar maior visibilidade ao rural” (Idem, ibidem), problematizando a antinomia rural / urbano (também litoral), visto o primeiro como “lugar de origem, tradição e pureza identitária” e o segundo como “lugar da modernização” (Idem, ibidem). Esta estudiosa vê na identidade inconclusa da menina a caminho uma possibilidade de quebrar barreiras e antinomias rígidas, tentando alargar o mundo fechado da pequena cidade do interior, ao mesmo tempo que a menina caminha da infância para a adolescência, tomando nota de personagens-tipo da sua cidade e tentando compreendê-las com o seu olhar ainda infantil e inocente (Cf. Idem, ibidem). Ela vai assim encontrar, no seu percurso ao acaso pela cidade, “o árabe, o crioulo, o espanhol, o caipira, o mulatinho, o cigano e (...) o italiano demente” (Idem, ibidem). Concluindo, Maria José Cardoso Lemos afirma que o conto “funciona também como a constatação da realidade de uma pequena cidade do Estado de S. Paulo que, com a imigração, torna-se uma amostra do Mediterrâneo ainda arcaico, associado a uma cultura originária cabocla, ela também híbrida e primitiva” (Idem, ibidem).

       Tanto quanto podemos seguir o texto até aqui, esta é a pequena “história” contida em “Menina a caminho”. Mas a história exterior é apenas um deambular da perspectiva, acompanhando o caminho da menina ao acaso pela cidade. Quero com isto dizer que a história “verdadeira” do texto se escreve – e isto é sempre assim em Nassar – mais do lado do silêncio do que da representação, da “história” contada. “Vinda de casa, a menina caminha sem pressa, andando descalça no meio da rua”. (Nassar, 2000: 11)[2] Esta menina não tem nome, pertence a uma família modesta, estará no limiar da puberdade: o corpo é “magro feito um tubo”, o peito ainda liso, está modestamente vestida com um vestido caseiro, caminha descalça, e vê-se que a sua aparência e maneiras não são muito cuidadas. As tranças estão despenteadas, ela lambe, enquanto anda, os fios de manga à volta da boca, e tem o hábito de enfiar teimosamente o dedo no nariz. Ela é curiosa, “seus olhos piscam de fantasias” (p. 13), encanta-se com tudo o que possa prender a sua atenção na rua, arregala os olhos de espanto com o que vê, “repara”, é capaz de compaixão, deseja um gelado, reflecte, goza o cheiro gostoso a couro da selaria do seu Tio-Nilo, e quando este esboça para ela um sorriso, o coraçãozinho dela dança, fica aterrada com a aparição de seu Américo, e mantém até ao final da narrativa “os olhos sempre cheios de espanto” (p. 49).

       Sendo a trama do conto feita sobretudo de silêncios e sugestões que apenas podemos conjecturar, é possível tentar contar a história de outra maneira, atendendo aos subentendidos e ao silêncio do texto: a menina sai de casa com um recado da mãe, ela vai levar um recado ao seu Américo. Não sabemos o que é este recado, mas quando a menina o começa a formular, já quase no final do conto, desencadeia uma terrível reacção em cadeia que vai desde a injúria e ameaça física do seu Américo à menina e à mãe, passando pela reacção histérica da mãe quando a menina chega a casa, até à cena de violência doméstica em que o pai, Zeca Cigano, espanca e chicoteia a mãe até ela sangrar.

       Toda a deriva da menina pela cidade consiste em encontros vários com uma característica comum: tudo o que ela vê e ouve pelo caminho é do domínio da sexualidade, ou contém uma mensagem subliminar desse domínio. Assim, a narrativa mostra uma menina que caminha da infância para a adolescência e descobre o mundo dos adultos como eminentemente sexual. A sexualidade é a característica que liga todo o puzzle de encontros que ela tem, quer se trate de seres humanos, quer de animais – o cavalo, e o casal de cães que ficaram colados numa relação sexual e não conseguem desgrudar, provocando a compaixão da menina. Esta natureza sexual de tudo o que é humano e vivo estará no âmago das obras seguintes de Raduan Nassar, dando continuidade a este récit inaugural e iniciático de “Menina a caminho”. Tudo o que se problematiza no conto – as relações familiares e sociais, afectivas, a política, as relações de poder – todas estas coisas passam em primeiro lugar pela sua dimensão sexual e pelo corpo. A iniciação da menina na puberdade, preludiada pela descoberta de elementos sexuais em tudo o que vê à sua volta, terá o seu clímax na descoberta do próprio corpo, leia-se sexo, mesmo “sem compreender” (p. 49), no final do conto. O corpo e a sexualidade não aparecem coisificados, antes em profunda ligação com outros elementos do que nos torna humanos: a dimensão social, afectiva, a amizade, o amor, o namoro, a família. Mesmo quando se trata da sexualidade animal – o caso dos cães em cópula – a reacção da menina que se condói deles como que dá uma dimensão humana à animalidade.

       O não-dito do conto será de natureza sexual e de grande violência: o recado da mãe da menina destinado ao seu Américo – “Minha mãe mandou dizer que o senhor estragou a vida dela, mas que o senhor vai ver agora como é bom ter um filho como o senhor tem” (p. 44) – desencadeia uma reacção extremamente violenta neste, injuriando e ameaçando a mãe e a menina – “puxa já daqui, sua cadelinha encardida, já agora senão te enfio essa garrafa com fogo e tudo na bocetinha, e também na puta da tua mãe” (p. 44). A menina foge e chegando a casa conta à mãe, que desatina em altos gritos, “ferida na alma”: “Ele me ofendeu mais uma vez, ele me ofendeu mais uma vez, aquele canalha, ele me ofendeu mais uma vez...” (p. 44). A sexualidade que motiva todas estas reacções pertence naturalmente à ordem física, mas vai muito mais longe, atingindo e mostrando a alma dos seres humanos. O pai da menina, o Zeca Cigano – curiosamente só as figuras masculinas centrais têm nome... – volta exclusivamente contra a mulher a sua raiva e orgulho masculino ferido: “Quem te ofendeu?” pergunta ele, ao mesmo tempo que chicoteia a mulher e formula a verdadeira ofensa para ele: “Quem me ofendeu?” (p. 46), no texto designadas, no entanto, ambas como “falsa inquisição” (p. 46). Sem atender às súplicas da vizinha que implora piedade para a mulher, Zeca estanca os golpes de chicote ao ver a boca da mulher a sangrar. Então a menina observa o pai “de costas, as mãos na mureta, a cabeça tão caída que nem fosse a cabeça de um enforcado.” (p. 48). No final do texto a menina fecha-se no banheiro e, acocorando-se sobre o espelho da parede que deita no chão de cimento, “vê, sem compreender, o seu sexo emoldurado. Acaricia-o demoradamente com a ponta do dedo, os olhos sempre cheios de espanto.” (pp. 48-49). Esta descoberta do próprio corpo e prelúdio da descoberta da sexualidade marcam a transição da menina da infância para a adolescência e anunciam a personagem central de Lavoura arcaica.

       A história do filho do seu Américo é objecto do falatório de toda a cidade, sobretudo na cena da barbearia em que é o tema central da fofoquice, sem no entanto se desvendar o que se trata, até ao recado da mãe levado pela menina ao seu Américo. Esta trama silenciosa e invisível, tecida de sugestões e subentendidos, indecifrada no texto e por isso tanto mais central, contrasta poderosamente com a implacável perspectiva adoptada pelo narrador, a opção por seguir os vários palcos e cenários da pequena cidade com a visão de uma máquina de filmar a que nada escapa – vários grupos de rua, um entrever do interior de uma casa, uma outra menina tipo boneca de porcelana a caminho da escola, a barbearia, a escola, o sapateiro, a gelataria, o bar, a oficina do seleiro, finalmente o armazém de seu Américo, e depois o regresso a casa e a cena de violência doméstica, e a cena final da menina na casa de banho. A conclusão é, naturalmente, que ver ou mesmo ver em excesso não significa ver realmente, e que é necessário um outro tipo de visão para compreender as imagens. Raduan Nassar questiona e problematiza deste modo, aprofundando-a ao mostrar os seus limites, a própria técnica narrativa pela qual optou. Esta tensão constante do texto entre mostrar radical e impossibilidade de visão retrata a identidade sempre incompleta e híbrida de uma cidadezinha do interior brasileiro com os seus habitantes, imigrantes de “fronteiras culturais flutuantes” (Cf. Lemos, op.cit.), reconstruindo um Mediterrâneo caboclo. Ao mesmo tempo que retrata esta realidade, mostra os habitantes de diversas proveniências irmanados pela sua humanidade, que se revela no texto essencialmente passando pelo corpo e pela sexualidade. A menina a caminho, personagem central do conto, equivale ao autor muito jovem, que procura nesta narrativa inaugural e iniciática uma escrita, e a vai encontrar num processo de constante transformação. Os seus três livros têm uma qualidade e intensidade de linguagem absolutamente extraordinários, que faz deles “verdadeiros momentos de epifania da literatura brasileira” (Idem, ibidem) e, acrescentaríamos, da literatura em língua portuguesa.


Ana Maria Delgado

(Universidade de Leipzig / Instituto Camões / CLEPUL)

(a continuar)

[2] Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição.


* Comunicação apresentada ao 9º Congresso dos Lusitanistas Alemães, na Universidade de Viena, em 2011, na secção dirigida por Gabriela Fragoso, "Representações da infância em contextos literários lusófonos: que espaço para a utopia?". Publicado em FRAGOSO, Gabriela (org.), Literatura para a Infância. Infância na Literatura. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, p. 63-73.

sábado, 21 de setembro de 2013


 
 
 


Infância e escrita em dois contos de Irene Lisboa e Raduan Nassar *

 
       1955 – Uma escritora portuguesa pouco conhecida, que ainda há bem pouco tempo assinava as suas publicações com um pseudónimo masculino para proteger o teor autobiográfico desses textos, publica o segundo livro para crianças e jovens, Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma. Tem 63 anos e o conto inaugural da colectânea de “historietas”, como as designa, intitula-se “As aventuras de Rosalina” e narra um dia especial na vida da menina que a mãe mandara fazer um recado “ali tão perto” (Lisboa, 52000: 25).[1]

       1961 – Um jovem brasileiro de origem libanesa “à procura de uma escrita” (Lemos, 2003: 81-112) escreve o seu primeiro texto, que só virá a publicar em 1994, no final de uma fulgurante carreira literária. Fulgurante e algo breve, já que constituída, como ele próprio diz, por “livro e meio”. Esse texto inaugural intitula-se “Menina a caminho” e narra a travessia iniciática de uma menina sem nome por uma pequena cidade do interior do Estado de S. Paulo, durante a qual encontra personagens-tipo da imigração brasileira, traçando as “fronteiras perdidas” de um “Mediterrâneo caboclo”. (Idem, ibidem, passim)

       A escritora, tê-lo-ão adivinhado, é Irene Lisboa, o escritor é Raduan Nassar. Escrevendo estes contos com uma diferença de seis anos mas a grande distância geográfica e em contextos quer pessoais quer sociais diversos, surpreenderão as semelhanças dos dois textos. A protagonista de Irene Lisboa, Rosalina, e a “menina a caminho” de Raduan Nassar, personagem sem nome, têm aproximadamente a mesma idade, crianças quase a entrar na adolescência. Ambas crescem num ambiente rural. E ambas descobrem, num dia de aventuras ou encontros vários, o corpo e a sensualidade ou a sexualidade. Mais, em ambos os escritores a passagem da infância à adolescência retratada nestes textos está ligada à descoberta da escrita. Será meu propósito mostrar como essa passagem inaugura o processo da escrita nos dois casos. Finalmente, questionaremos estes contos no contexto da literatura infanto-juvenil na tradição literária europeia, reflectindo sobre elementos do género eventualmente desenvolvidos em variação nos dois contos que ajudem a compreender a problemática de cada um deles.

       Quando escreve Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma, Irene Lisboa tem já sete livros publicados, quase todos com o pseudónimo de João Falco, entre eles a novela Começa uma vida, de 1940. Neste último retrata a sua infância, terminando a narrativa, feita da perspectiva da idade adulta, exactamente na passagem para a adolescência. Retomará essa revisitação em 1956 com Voltar atrás para quê?, livro no qual a narradora evoca o período difícil que passa em casa do pai e da madrasta entre os treze e os dezoito anos.  Foram tempos muito traumáticos para a autora, a que ela repetidamente sente necessidade de regressar, transformando-os através da escrita. Entre os dois livros,  Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma retoma o tema da infância e juventude, com a intenção de divertir e entreter o público dos mais pequenos.[2] As referências fortemente autobiográficas, não imediatamente visíveis numa primeira leitura, são referidas por Paula Morão: estas histórias “são relatos de sonhos de uma rapariguita atormentada por medos nocturnos ou tentando escapar ao que a cerca, criando um outro mundo, melhor que o das ‘más mulheres’ a que se vê sujeita; nela se pode facilmente reconhecer a menina que protagoniza Começa uma vida e Voltar atrás para quê?, tão flagrantes são as semelhanças”.[3]

       Podemos acompanhar, comparando o texto de “As aventuras de Rosalina” com os dois livros atrás citados, como a emergência do mundo da escrita coincide na vida de Irene Lisboa com o início da adolescência.[4] Em Começa uma vida, a narradora conta como foi o médico de família quem mudou a vida dela e da irmã, receitando-lhes “ares de praia”. (Lisboa, 1993: 71)[5] Foi nesse Verão que o paiu da narradora conheceu uma jovem quase da idade da filha. Ao mesmo tempo que a adolescente frequenta o colégio inglês, faz as primeiras amigas e se sente rodeada de novidade e capaz de se libertar de "velhos recintos e hábitos" (p. 74), o pai começa uma relação que se revelará funesta para a filha: "Eu começava a gozar uma espécie de eamncipação e o meu pai encetava mais uma das suas mancebias. Esta, porém, anunciava-se laboriosa e absorvente, de um estilo diferente das anteriores." (p. 74) Assim, quando a jovem começava a despertar para uma nova vida, e eventualmente a libertar-se das velhas feridas e do estigma de ter pais incógnitos e nunca ter conhecido a mãe, eis que se vê privada da madrinha que lhe tinha feito as vezes de mãe e mergulhada num quotidiano em que é "rebaixada e desorientada, sem o amor de ninguém" (p. 80). O pai acaba por trazer para casa a jovem amante e a mãe dela, mulher mesquinha e interesseira, que transformam a vida da narradora num inferno. Esta nova rejeição, dentro daquela que tinha sido até aí a sua própria casa, dá-se no momento decisivo da passagem para a adolescência: "Foram dois anos em que troquei a pele de criança pela de mulher, mas sem as demoras e as curiosidades graciosas e veladas das raparigas das outras famílias." (p. 80)
       Assim termina o texto de Começa uma vida retomado dezasseis anos mais tarde em Voltar atrás para quê? (1956), para reencontrar a protagonista na mesma altura em que a tínhamos deixado: “Ainda nem os treze anos completara!”. (Lisboa, 1994: 22)[6] A situação insustentável que passa a viver dentro de casa do pai, com as duas mulheres a intrigar contra ela e a envenenar-lhe a existência, com o objectivo de conseguirem que o pai a deserde, vai transformá-la profundamente: “Por razões confusas, idade, desamparo, saberia ela já bem por quê? entrou a andar fugida. À laia de pássaro ou de animal bravio. Antes como um ser feliz e desgraçado, tudo a um tempo.” (p. 22) Quase inevitavelmente, os livros e a imaginação passam a ser o seu refúgio, bem como os passeios para fora da quinta, em que se sente livre: “Passou a viver e a alimentar-se da sua própria imaginação” (p. 27).

       A menina de treze anos vive fora de casa, com os bichos e a natureza, a vida afectiva que lhe negam dentro da casa paterna: “O amor dos gatos e dos cães e até o dos bichos da capoeira ocupavam-na muito. Entretinham-na durante aqueles longos dias, ociosos e vadios, que eram os seus.” (p. 32). A jovem adolescente deixou de estudar, e o pai esqueceu-se completamente da sua existência: “Dois anos, dois anos apenas, ela assim passou, seguidos mas tão incompletos. Tão longos, tão cheios e tão vazios! Lembrados como nenhuns outros da sua vida.” (p. 33). Assim se vai familiarizando com a natureza e com as flores como se fossem as amigas que lhe faltam e com quem se pode identificar, porque crescem como ela sem nenhum apoio:


as rosas-chá e as flores de beladona, os bons-dias e as boas-noites, a lúcia-lima, a baunilha e as papoilas-da-índia... que cresciam sem trato num pequeno jardim traseiro da casa e nos mirantes descuidados da quinta [...]. Para ela, as flores tinham romances, uma vida íntima [...] as flores e também os pássaros, as estrelas... Um dos seus gostos, quando ninguém a via, consistia em se deitar no chão, de olhos para o céu, como se o estivesse bebendo. E tudo isto lhe era permitido, enfim, porque vivia ao deus-dará, abandonada, e era tida como um ser vicioso e desprezível. (p. 33)

      
       Ora há um passo em Voltar atrás para quê? que gostaria de destacar como texto inaugural paralelo a “As aventuras de Rosalina”, pois a passagem da infância para a adolescência aparece em clara ligação com a descoberta de um mundo novo, que virá a ser o mundo – de algum modo redentor – da escrita:


Certa manhã, seria domingo, dia de festa? Ela saiu para a estrada e da estrada, com aquela impressão de liberdade furtiva e aguda que lhe entrava no corpo, posto o pé fora da quinta, achou o campo maravilhoso. Nunca lhe parecera e nunca mais lhe pareceu tão radioso o ar, tão linda a floração campestre, tanta novidade em tudo, como naquela ocasião. Lembrando-se de tão especial sensação ou surpresa, põe naquela data, que foi a dos seus treze anos iniciados, uma ideia de eclosão nítida da vida ou do mundo. (p. 27)

     
       Em “As Aventuras de Rosalina”, a protagonista vai fazer um recado à mãe e tem de atravessar a praia. De tal maneira se encanta com o sol, o mar e a areia, que perde a noção do tempo e passa o dia todo na praia, só regressando a casa quando é já noite fechada e a mãe a procurava, muito aflita. Rosalina terá aproximadamente a mesma idade da protagonista de Começa uma vida, e tal como ela é uma menina solitária e sonhadora. Só assim se explica a relação que estabelece com a praia e o mar, ouvindo uma voz que a chama repetidamente. Esta voz é a voz da natureza, que diz “Anda cá, menina.” (p. 23). Rosalina pensa que a voz vem das ervas, nas dunas, e depois do mar. Entrega-se a uma vivência de sensualidade na praia, sentindo o corpo: “À borda do mar de pés descalços, é que era gozar.” (p. 23), “Pôs-se a cantarolar e enterrou os braços na areia. Estava tão quente! Até escaldava.” (p. 23). O apelo que lhe fazem, é a realidade estival que lho faz, mas em coincidência com o que, ao mesmo tempo, descobre de si própria. O que Rosalina descobre neste dia de  Verão é não só o fascínio da praia que apela aos seus sentidos, mas a sua própria sensualidade e o seu corpo de quase adolescente, que reage ao chamamento da vida.

       O conto inaugural de Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma parece corresponder ao dia de festa descrito no romance autobiográfico em que fala de “uma ideia de eclosão nítida da vida ou do mundo”. Um dia inteiro descrito em três páginas como luz e cores, até à vivência final do sol. Tudo é além disso fluido, lento ou veloz como num sonho. Esta eclosão pode ser interpretada como a transição da infância para a adolescência e a descoberta simultânea do mundo da escrita. Irene Lisboa resume num poema de 1937 esta vocação programática que perdura muito para além da juventude: “Nova! Nova! Nova! Nova!”,[7] vindo a reconhecer o valor da escrita e das palavras na sua vida quando, em 1956, afirma em Voltar atrás para quê?: “As suas mais preciosas jóias, que nunca poderá alienar nem perder, são, a bem dizer, palavras” (p. 89).

       A própria vida é o assunto principal da obra de Irene Lisboa – pouco mais parece acontecer nesta  obra feita sobretudo de recordações traumáticas do tempo da adolescência e da infância. Contudo, a colectânea de contos para a juventude Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma reflecte e contradiz ao mesmo tempo a claustrofobia e clausura das diversas formas da sociedade portuguesa da época – o que há de novo no que escreve, para além dos movimentos de alma do mundo interior da escritora, são os momentos luminosos da escrita.[8] Luz que chega pela vivacidade da linguagem, pela espontaneidade da forma de comunicação, muito coloquial, e por uma vida que, sob o nosso olhar atento, mais uma vez começa, a da escritora Irene Lisboa, que no-la descreve em variação, desta vez simbolicamente nesse dia inaugural de exploração de um mundo exterior que enfeitiça Rosalina e faz com que descubra a sensualidade e o corpo, também ela “a caminho” da adolescência.

       Irene Lisboa tinha já 63 anos quando, em 1955, escreveu “As aventuras de Rosalina”, e viria a morrer em Novembro de 1958, poucos dias antes do seu 66º aniversário. Em termos de escrita, estava mais jovem do que nunca, “Nova! Nova! Nova! Nova!”, tal como desejara programatica e existencialmente no poema de 1937 de Outono havias de vir.


Ana Maria Delgado

 (Universidade de Leipzig / Instituto Camões / CLEPUL)

(a continuar)

 
[1] Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição.
[2] Cf. Morão, Paula, “Histórias para maiores e mais pequenos se entreterem”, in: O essencial sobre Irene Lisboa. Lisboa: INCM, 1985.
[3] Também Óscar Lopes refere a inspiração biográfica do volume de contos para a juventude: vd. LOPES, Óscar, “Uma lágrima engolida no ‘comum existir’, in: Voltar a Irene Lisboa. Colóquio Letras, nº 131, Janeiro-Março 1994, 11.
[4] Vd. Lopes, Óscar, op. cit., 11.: “a protagonista conheceu o seu éden rural precisamente nos anos em que se descobriu, se intimizou, escrevendo as suas primeiras poesias, iniciando o seu primeiro diário (coisas depois perdidas), descobrindo segredos do próprio corpo no seu quarto de reclusão, entregando-se ao ‘prazer da tristeza’, cismando sozinha fantasias, escapando à sanha paterna nos ramos ou sob as franças baixas de árvores tão amadas”.
[5] Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição.
[6] Todas as indicações de página no ensaio se referem a esta edição.
[7] Vd. “Nova! Nova! Nova! Nova!”, Outono havias de vir, in: Lisboa, 1991: 296.
[8] Já Violante Florêncio acentua no “Prefácio” a Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma esta característica da obra: “A maioria das vezes a acção é efeito de se olhar um espaço sedutor, para o que contribui o jogo de luz e sombra (...) A esta ‘claridade’, espalhada por todo o lado (...) associa-se a cor branca, que é predominante. O olhar vai-se tornando interior em função do brilho que recebe do exterior. E o brilho está em todo o lado, pelo que a cada página se encontram exemplos.” (p. 16).


* Comunicação apresentada ao 9º Congresso dos Lusitanistas Alemães, na Universidade de Viena, em 2011, na secção dirigida por Gabriela Fragoso, "Representações da infância em contextos literários lusófonos: que espaço para a utopia?". Publicado em FRAGOSO, Gabriela (org.), Literatura para a Infância. Infância na Literatura. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, p. 63-73.

domingo, 4 de agosto de 2013

 

Ciclo Sur l'écran noir de mes nuits blanches (6) - "Summer Holiday"

 

Retomamos hoje neste blogue uma série que não está esquecida, Sur l'écran noir de mes nuits blanches (título de uma canção emblemática de Claude Nougaro), para recordar o primeiro filme que vi numa sala de cinema. Como referi oportunamente, no final dos anos 1950 em Águeda assisti a muito e muito bom cinema na Escola Central de Sargentos. Mas foi em Aveiro, onde residi de 1960 a 1964, para frequentar o Liceu Nacional, que fui pela primeira vez a uma sala de espectáculos, no Teatro Avenida, ver a produção inglesa de 1963, Summer Holiday, em português Mocidade em Férias. O filme que recordamos é um musical com Cliff Richard e The Shadows, estreia do realizador Peter Yates, e aqui fica o trailer e a canção que dá o nome ao filme, aproveitando para desejar a todos os leitores um óptimo Verão.
 
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 8 de maio de 2013


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock

(...)


The Lady Vanishes comenta subtilmente a política europeia de 1938 e, apesar da censura do British Board of Film Censors, que não permitia qualquer crítica aberta a governos estrangeiros[1], a imprensa da época compreendeu a referência de Hitchcock: “most of the film’s action takes place ‘in Central Europe, where almost anything is liable to happen nowadays (and things do happen)’”[2]. Hitchcock critica tanto a passividade britânica, como a agressividade alemã, mas alerta seriamente para o perigo nazi que ameaçava já claramente a Europa. O neuro-cirurgião que chefia a conspiração apresenta-se como o Doutor Egon Hartz, de Praga - o nome Hartz é uma combinação de hard (hart, duro) com heart (Herz, coração) e preludia a violência do rapto e planeado assassínio de Miss Froy, uma agente britânica (no romance de White ela era uma cidadã comum que foi confundida com uma espia)[3].


       Hitchcock tinha insistido no seu desejo de juntar ao enredo do romance de White um ilusionista, e veremos porquê. O Dr. Hartz chefia uma conspiração que tem como objectivo impedir a saída de Bandrika, governada por um tirano, de informações vitais sobre um pacto secreto entre dois países europeus. Para tal, terá de raptar, esconder e posteriormente eliminar numa fatal operação uma agente secreta britânica. O parceiro do neuro-cirurgião, o ilusionista Signor Doppo (especialista no número “The Vanishing Lady Act”) contribuirá decisivamente para tornar imperceptível o desaparecimento violento de Miss Froy. Karen Beckman é muito clara quanto ao significado ideológico desta aliança entre o médico e o ilusionista: “Through this aliance, Hitchcock uncovers a key factor of the workings of ideology – the mystification of the moment of violent incision.”[4] O mundo da ilusão e do ilusionismo aponta para o cinema, tal como vimos, mas também para a ideologia. Beckman faz o paralelo do assassínio de elementos indesejados – o seu corte do corpo social – com os cortes da montagem, mostrando como Hitchcock mantém o espectador atento em relação a esta técnica, nomeadamente no episódio central, a que não assistimos, do rapto violento de Miss Froy: “In The Lady Vanishes, a film steeped in the politics of Britain’s relationship with Germany and Central Europe, ‘the cut’ becomes crucial in its narrative and cinematic function. Hitchcock employs a variety of fragmenting camera techniques to draw our attention to the hidden incisions of the editorial cuts.”[5]

 
       Karen Beckman mostra claramente o paralelo entre esta intriga internacional de The Lady Vanishes e a retórica fascista da década de 1930, contida na linguagem violenta de Hitler e Mussolini para descrever o seu papel de líderes na recuperação daquilo que consideravam o corpo doente da nação. Mussolini escreveu que era necessário “to use the scalpel to take away everything parasitic, harmful, and suffocating”, e Hitler usou o mesmo discurso da remoção cirúrgica e representou os Judeus como uma praga ou bactéria que infectava a nação alemã[6]. Hitchcock contrapõe às forças conjuntas da conspiração do Dr. Hartz, aliado com o Signor Doppo, a consciência que procura criar no espectador da ilusão de continuidade cinemática, chamando a atenção para os cortes da montagem. O espectador não assiste à cena do desaparecimento de Miss Froy, que ocorre durante o sono de Iris. E a cena no vagão de transporte da bagagem, na qual Iris e Gilbert descobrem toda a parafernália do ilusionista, é fulcral nesta consciencialização: “When the magician, artist of legerdemain, suddenly pulls out a knife, the illusion of mystery fades and exposes the true violence of Miss Froy’s disappearance.”[7] Logo a seguir a cena mostra uma série de fragmentos, pondo em evidência os cortes da montagem[8], para manter bem desperta a consciência do espectador quer em relação à ilusão da continuidade e unidade cinemáticas, quer em relação ao processo ideológico que opera na conspiração. Destes cortes poderíamos destacar como exemplo o corte da figura de Iris pela cinta, na cena da luta com o Signor Doppo, recordando a convenção do ilusionismo, e do filme nos seus primórdios, de representação do truque de cortar uma mulher ao meio. Este corte recorda uma outra cena no hotel de Bandrika, em que Iris festeja com as amigas a despedida de solteira e o empregado traz mais uma garrafa de champanhe ao quarto. A câmara mostra-nos Iris de pé em cima da mesa, mas só a vemos da cinta para baixo, enquanto ela diz:

 

I, Iris Matilda Henderson, a spinster of no particular parish, solemnly renounce my maidenly past and declare that on Thursday 26… I shall take the veil and orange blossom and change my name to Lady Charles Fotheringail.

 

No momento em que declara esta cisão na identidade pelo casamento, como bem observa Karen Beckman, tomamos consciência da ansiedade de Iris em relação ao seu próprio desaparecimento, o que, combinado com o nome Iris, a vai tornar a pessoa ideal para procurar Miss Froy[9]. Os óculos de Miss Froy, que Iris e Gilbert encontram nesta cena, estão partidos, e Iris e Gilbert são atacados pelo Signor Doppo, armado de uma faca: “Iris: He’s got a knife! Gilbert: Get hold of it before he cuts a slice off me.” Forçando o espectador do filme a ter esta consciência, Hitchcock alerta para “the machinations of an ideology like National Socialism which employs the illusion of disappearance to disguise the violent excision of that which is other to its own self-image”[10].

 
       A montagem corta do todo fílmico aquelas partes que estão a mais, criando um objecto estético caracterizado pela unidade e continuidade. O paralelo com o discurso ideológico do nacional-socialismo é evidente, também aí se eliminou o que não é a auto-imagem. A ideologia nazi tinha a pretensão de criar uma unidade limpa, depurada do que está a mais, do que não considerava herança pura, i.e. da descontinuidade, da diferença, de tudo o que julgava ser uma ameaça à identidade, à continuidade rácica que se recebe pela herança do sangue, e mais ainda purificando-a. Embora em áreas absolutamente distintas, pretendem o mesmo resultado, tendem para o mesmo objectivo: a montagem no plano ideal do estético, a ideologia nazi na existência histórica dos povos. São dois actos verdadeiramente criadores, que visam modelar a realidade como obra de arte. Aquilo que o nacional-socialismo tentou fazer no plano ideológico foi obter uma configuração ideal (do seu ponto de vista) da realidade no plano histórico-social, visando organismos que se vão desenvolvendo na sua diferença, na sua realidade, e que por isso constituem o que não é moldável. Na Sociologia não se podem fazer experiências, trata-se de uma área na qual se trabalha com seres humanos na sua inter-relação e interacção, e na qual a vontade e a decisão dos indivíduos contrariam qualquer intenção na modelagem do social. Estas realidades vivas foram camufladas nos campos de concentração, criando situações artificiais que implicavam o fechamento, como no laboratório, e o silenciamento à volta do que aí se fazia.


       Toda esta chamada de atenção para os cortes da montagem cinematográfica no filme, aliada ao tratamento dado à figura do Dr. Hartz, estranhamente prefiguram o que viria a ser o papel da classe médica alemã durante a Segunda Grande Guerra e o Holocausto, executando experiências cruéis e letais em sujeitos humanos entre 1939 e 1945 em campos de concentração nazis:

 

Between 1939 and 1945, at least seventy medical research projects involving cruel and often lethal experimentation on human subjects were conducted in Nazi concentration camps. These projects were carried out by established institutions within the Third Reich and fell into three areas: research aimed at improving the survival and rescue of German troops; testing of medical procedures and pharmaceuticals; and experiments that sought to confirm Nazi racial ideology. More than seven thousand victims of such medical experiments have been documented. Victims include Jews, Poles, Roma (Gypsies), political prisoners, Soviet prisoners of war, homosexuals, and Catholic priests. [11]

 

       Para concluir, gostaria de salientar a carga ideológica do filme que Karen Beckman compara com The Lady Vanishes, por tratar o mesmo fio narrativo, o mito urbano à volta da história verdadeira de duas senhoras, mãe e filha, que passam por Paris na altura da Exposição Mundial de 1889, vindas da Índia de regresso ao Canadá[12]. Trata-se do filme de 1938 do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte Spuren (The Footprints Blown Away). Harlan mantém a sua narrativa muito próxima da história herdada, mas com uma carga ideológica evidente: o filme abre com uma longa sequência de um cortejo alegórico em que estão representados os vários continentes, abrindo com a Europa representada por uma mulher loira quase nua da cinta para cima montando um touro, seguida por vários aborígenes representando os outros continentes. No final da sequência a câmara detém-se nos rostos de mãe e filha, sugerindo a sua diferença (são canadianas). Depois do desaparecimento misterioso da senhora mais velha, a filha vem a descobrir que a mãe tinha tido a peste e tinha sido incinerada pelo Dr. Moreau (uma reminiscência estranha do médico vivisseccionista de uma obra de H. G. Wells), com quem no entanto vem a casar-se. Trata-se de uma muito clara apologética da purificação, da purga, queima-se e apaga-se a recordação, faz-se desaparecer da realidade e da memória tudo aquilo que pudesse vir a contaminar a sociedade.
 

       A música de Louis Levy acompanha o desaparecimento de Miss Froy, para só reaparecer no final do filme. Não poderia deixar de assim ser, dado o significado da música no filme, como opondo-se radicalmente ao mundo da conspiração. Não poderia evocar o excesso da música wagneriana, demasiado próxima da Alemanha de então, embora Hitchcock cedo venha a retomar em Rebecca uma banda sonora muito diferente da austeridade da música em The Lady Vanishes. Quando reaparece, a música de Lévy recordará o espectador do que viu antes do desaparecimento de Miss Froy, ligando-se assim a esta personagem e ao que ela representa, para melhor se nos gravar na memória. Isto corresponde à função que a música tem na filmografia de Hitchcock de uma maneira geral: mesmo quando é instrumentalizada pela conspiração, como é o caso da longa sequênca sinfónica no Albert Hall das duas versões de The Man Who Knew Too Much, a música opõe-se em última análise à conspiração e sai vitoriosa.

       Hitchcock transforma a personagem de Miss Froy de “vanishing lady” – a adjectivação mostra o ponto de vista masculino que entende a mulher como “outro” e como mistério, fantasia, ilusão, características às quais Miss Froy é alheia pela idade e por ser uma figura comum – em sujeito da acção no título do filme, The Lady Vanishes. Tendo sido objecto de um rapto que a fez desaparecer sem ninguém ter visto nada, Hitchcock faz Miss Froy desforrar-se na cena do filme em que, após ter revelado a melodia a Iris e Gilbert, desaparece por acção própria, não deixando o mérito deste desaparecimento final por mãos alheias, saltando da janela do comboio (com a ajuda de Gilbert) para a floresta de Bandrika, conseguindo levar a mensagem contida em código na melodia da canção para a Grã-Bretanha. Hitchcock mostra assim mais uma vez a sua versatilidade, ironia e sentido de humor.

       Mas o que mais nos surpreende ainda hoje em dia é a percepção de Hitchcock não só daquilo que estava já em marcha na Europa e no mundo em 1938, mas também a sua extraordinária capacidade de prever alguns dos aspectos mais sórdidos do nacional-socialismo e do Holocausto. O documentário de sua autoria sobre a libertação de prisioneiros judeus e outros dos campos de concentração alemães depois do fim da Segunda Grande Guerra[13] é um exemplo flagrante da uma aguda consciência e sensibilidade temporal, contradizendo uma leitura da sua obra como alheia à dimensão contemporânea da História.



[1] Vd. BECKMAN, op. cit., p. 85.
[2] Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit., p. 443.
[3] Vd. BECKMAN, Karen, op. cit., p. 83.  A autora observa ainda que Praga seria entendida num contexto alemão, já que em 1938 quer a Áustria quer a Checoslováquia tinham desaparecido do mapa da Europa como nações independentes, a Checoslováquia tinha sido dada à Alemanha para a Inglaterra ganhar tempo.
[4] Cf. id. ibid., p. 86.
[5] Cf. id. ibid.
[6] Cf. id. ibid.
[7] Cf. id. ibid., p. 88.
[8]Cf. id. ibid.: “Following this, the scene disintegrates into another series of verbal, cinematic, and bodily fragments.”
[9] Cf. id. ibid., p. 89.
[10] Cf. id. ibid.
[11] Vd. United States Memorial Museum, “Medical Experiments”. A página está disponível on-line e contém uma vasta bibliografia sobre este tema:
 
[12] Vd. nota 27 do presente texto, e BECKMAN, Karen, op. cit.
[13] Hoje em dia disponível on-line:
 

Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012


Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
 

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