sábado, 24 de julho de 2010



Impressionismo no feminino - Mestras da Luz
Mestras da Luz é o título de uma antologia de contos sobre quatro pintoras impressionistas, conhecidas e apreciadas pelos seus pares e pela crítica na época do impressionismo em França, mas desconhecidas do grande público de hoje. Este desconhecimento deve-se ao silêncio dos historiadores de arte em relação ao legado impressionista deixado pelo "segundo sexo". Simone de Beauvoir teria com certeza rejubilado com esta exposição, pensada e organizada pela curadora Ingrid Pfeiffer, para dar justa visibilidade às pintoras da época impressionista - Impressionistinnen, o título da exposição em alemão, distingue o feminino do masculino, ao contrário do que acontece em português, em que a palavra "impressionista", como substantivo ou como adjectivo, é a mesma para os dois géneros, daí a opção pelo título Impressionismo no feminino.
"Damos com esta exposição às pintoras o lugar que lhes pertence", afirma lapidarmente a curadora em entrevista à jornalista Anke Manigold. Após ter organizado exposições monográficas de pintores (Henri Matisse, Yves Klein, James Ensor), Ingrid Pfeiffer escolheu estas quatro pintoras impressionistas que a fascinaram com os seus estilos próprios e histórias de sucesso / insucesso todas elas diferentes. Elas pintaram sobretudo interiores, jardins e naturezas-mortas, pelo facto de estarem circunscritas ao mundo doméstico mas, como mulheres cultas que eram, muitas vezes o ultrapassaram nos seus quadros. Não puderam estudar em academias, como os seus colegas pintores, mas tiveram professores particulares (a Académie Julian oferece aulas para mulheres a partir de 1868). As famílias reagem de modo muito diverso à actividade artística destas pintoras, e esse é o tema comum aos quatro contos. A exposição mostrou 150 telas de 11 países e de museus de Nova Iorque, Londres, Viena e Washington, D.C., e de colecções privadas, e pôde ser vista na Schirn Kunsthalle de Frankfurt, de Fevereiro a Junho de 2008, e no Museu de Belas-Artes de S. Francisco, de Junho a Setembro de 2008.
A mulher foi desde sempre representada nos quadros dos pintores, e os impressionistas pintam-na em muitas variações, desde as bailarinas de Dégas e as banhistas de Cézanne, até às belezas exóticas de Gauguin. Impressionistinnen é dedicada à mulher impressionista, não como objecto / tema dos pintores, mas como pintora ela própria. A curadora Ingrid Pfeiffer afirma que a história de arte tem sido escrita até hoje por uma geração de críticos "antiquados", já que não incluem nas suas monografias e publicações sobre arte nomes de pintoras, ou apenas os mencionam muito à margem. A curadora afirma que o impressionismo é feminino e espera que exposições de pintoras passem a ser uma normalidade óbvia, em vez de algo tido como exótico e estranho. Estas pintoras foram pioneiras numa época que não conhecia ainda a igualdade de direitos dos dois géneros nem o direito das mulheres ao voto. Elas tiveram de lutar contra muitas dificuldades e preconceitos e representam muitas outras pintoras, cujas obras aguardam ainda hoje nos depósitos de museus e em colecções privadas o justo redescobrimento.
No prefácio a Mestras da Luz, que passarei a resumir, Ingrid Pfeiffer salienta que a segunda metade do séc. XIX tem uma importância decisiva para a emancipação feminina, pois pela primeira vez na História mulheres oriundas da burguesia exerceram profissões fora da família, por sua escolha própria. A biografia destas pintoras é exemplar dos destinos de muitas artistas da modernidade, e com elas não é só história de arte que se escreve, mas também história social. Paris atraía então artistas de todo o mundo e também dos Estados Unidos da América, dos quais um terço era constituído por mulheres. A estas mulheres artistas estavam vedados, no entanto, muitos espaços do quotidiano fora da esfera doméstica, por exemplo os cafés e a Academia das Belas-Artes, que só abre para elas a partir de 1897. Restava o Louvre, onde podiam conviver com os seus colegas pintores. O Salão permitia que pintoras expusessem, desde que o Júri assim o determinasse, mas prémios, medalhas e distinções eram atribuídas na grande generalidade aos pintores.
As quatro pintoras apresentadas nesta exposição e antologia possuem não só um estilo e assinatura artística individual própria, mas quatro histórias e destinos que representam a mulher no séc. XIX: Mary Cassatt, a pintora americana que viveu e criou em Paris, escolhe não casar para poder dedicar-se inteiramente à pintura; Eva Gonzalès morre de parto, com apenas 34 anos de idade, após o nascimento do primeiro filho; Marie Bracquemond acaba por abandonar a pintura, depois de longa insistência do seu marido autoritário, que a vê como concorrente e a pressiona, até ela desistir de pintar para assim garantir a paz doméstica. Das quatro, foi Berthe Morisot a única que pôde desfrutar do casamento como relação tranquila, pois o marido, irmão de Manet, sempre a apoiou na sua evolução como artista.
Cada uma destas pintoras desenvolveu um estilo próprio, diferente do estilo dos colegas impressionistas, tão moderno e inconfundível como o deles. Morisot foi considerada na época como "a mais impressionista dos impressionistas", os críticos admiravam o estilo poderoso e "masculino" de Cassatt e a representação não-sentimental de mães e filhos nas suas telas, Gonzalès era tida como pupila talentosa de Manet e excelente aguarelista, e Bracquemond era considerada como uma das grandes damas do impressionismo. A curadora Ingrid Pfeiffer atribui o desconhecimento dos nomes destas pintoras na história de arte do séc. XX ao facto de essa história ter sido escrita e inventada maioritariamente por homens, não sendo assim garantida qualquer objectividade e verdade na apreciação dos críticos. Só a partir dos anos de 1980 começou a iluminar-se a história da produção artística das mulheres, sujeita a condições tão especiais.
Quatro autoras, duas alemãs, uma francesa e uma holandesa, escrevem agora sobre estas pintoras: Alissa Walser (Berthe Morisot), Diane Broeckhoven (Mary Cassatt), Noelle Châtelet (Eva Gonzalès) e Annette Pehnt (Marie Bracquemond). Fazem-no de modo especialmente sensível, mostrando como estas mulheres ainda nos estão tão próximas nas suas dificuldades e nas suas aspirações. Walser mostra-nos a jovem Berthe Morisot, amiga e ocasionalmente modelo de Édouard Manet, quando o seu destino está em aberto, e ela não sabe ainda que virá a casar com um irmão de Manet, Eugène, que não a forçará a escolher entre arte e vida. Broeckhoven descreve-nos as horas nocturnas em que Mary Cassatt, com muita idade, fica suspensa entre a vida e a morte. O conto de Châtelet gira à volta do vestido de noiva de Eva Gonzàles, que a pintora quer pintar no corpo da sua irmã, Jeanne, que virá a casar com o marido de Eva após a sua morte, e a criar o seu filho. Pehnt faz-nos testemunhar na sua narrativa como Marie Bracquemond é gradualmente forçada por um marido mesquinho e dominador a abandonar a pintura.
O começo de uma vida de pintora, instantes de suspensão entre a vida e a morte, uma premonição que se vai formando, cambiantes de mudança nos quais se decide uma vida de artista - as quatro escritoras uniram-se num tema comum, fazer o retrato de uma pintora impressionista, e dão-nos narrativas que recriam na literatura o estilo impressionista da pintura, esboçando quadros do quotidiano destas pintoras, e criando simultaneamente verdadeiros instantes de vida como transição, também eles iluminados pelo talento das escritoras - elas também, como o objecto que retratam, Mestras da Luz.
Alissa Walser, Annette Pehnt, Diane Broeckhoven, Noelle Châtelet, Meisterinnen des Lichts. Ed. por Ingrid Pfeiffer. Ostfildern: Hatje Cantz Verlag, 2008

Berthe Morisot Part 1 of 2

Mary Cassatt

Eva Gonzales

sexta-feira, 23 de julho de 2010

terça-feira, 13 de julho de 2010

Yves Montand - Page d'ecriture (Prevert-Kosma)

Max Ernst (Part 1/12)

Max Ernst (Part 8/12)







A procura da verdade na arte em "La Mise à mort" de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta vermelha"
O resultado da procura em "Oedipe" - a interferência de Anicet - permanece no domínio intra-textual: Oedipe encontra o crime que cometera na descrição feita por Anicet do assassínio do Professor Omme (esta figura representava Paul Valéry), e censura-se a si próprio pela falta de originalidade. O conto afirma deste modo os direitos da invenção na arte e mostra simultaneamente a sua insuficiência. Por um lado, reconhece-se o papel da fantasia, da hipótese, por outro lado rejeita-se a "fantasia pura", i.e., a fantasia desligada da realidade. Esta rejeição da procura dos sentidos na imanência do texto ou da arte mostra, de forma semelhante, a colagem Oedipe de Max Ernst, de 1931. Os surrealistas desenvolveram novas relações entre as artes, nomeadamente entre a poesia e a pintura, através da sua teoria da imagem. O interesse pela pintura é uma constante da obra de Aragon, desde o texto que escreve para a exposição de Max Ernst La peinture au défi, de 1930, passando pela personagem de Géricault no romance La semaine sainte, até à obra de maturidade Henri Matisse Roman. Max Ernst veio para Paris, deixando o movimento Dada de Colónia, e ajuda a escrever a história do surrealismo na área da pintura e artes gráficas com um dos mais originais contributos para a destruição da obra de arte individualista e orgânica (vd. Barck).
Aragon teria bem presente, com toda a probabilidade, esta colagem de Max Ernst ao escrever "Oedipe", o "Terceiro conto da pasta vermelha". Werner Spiess comenta sobre a colagem de Max Ernst que a confrontação mítica entre Édipo e a esfinge é transformada num só ser. Se tomássemos como ponto de partida nos quadros de Ingres ou de Moreau a antinomia dos géneros, poderíamos concluir agora que essa antinomia é substituída pela ficção andrógina. Mas penso que vale a pena compreender a colagem de Max Ernst num outro contexto: ao reunir pergunta e resposta num só ser, cria um símbolo para a sua obra, que não apela a ser decifrada como enigma, já que a pergunta, cuja resposta se procuraria, falta, não existe. É evidente o paralelismo com o aforismo de Wittgenstein ("Para uma resposta que não pode ser formulada, não pode igualmente formular-se a pergunta"), de que este ser andrógino parece ser uma ilustração. É que o sentido conhecido, o significado, do qual se parte para a formulação / invenção do enigma, é inexistente.
O mesmo acontece em "Oedipe", no qual está ausente um sentido imanente ao texto - apenas lá está pela sua ausência, e tem de ser criado pelo leitor no acto da leitura. Assim são ultrapassados quer a transcendência, quer o sentido trágico e absurdo da existência humana. Perspectivada de modo crítico é também a tendência surrealista para conceber a vida como enigma metafísico. Anicet distancia-se também quer do "acte gratuit" de Gide, quer do conceito de "absurdo" de Camus. Werner Spiess interpreta a colagem de Max Ernst como "alegoria da ontologia do factual" - este ser siamês constituído por pergunta / resposta é uma figura que impede a fuga em direcção a uma interpretação hermética ou de cariz religioso.
Quer a colagem de Max Ernst, quer o conto de Aragon surpreendem e chocam o leitor e estimulam-no deste modo distanciador a pensar mais além. O resultado intra-literário da procura em "Oedipe" não é suficiente e tem de ser colocado, para ser compreendido, num contexto extra-literário. Recorde-se o final de Anicet: Anicet não consegue estabelecer uma relação com Mirabelle. A hipotética "solução" oferecida em ambos os casos é determinada negativamente no texto / quadro e precisa de ser desenvolvida de modo positivo pelo leitor na esfera extra-textual.
Nota final da autora: a sequência de textos que tenho vindo a apresentar neste blogue baseia-se num dos capítulos da tese que preparei de 1980 a 1983 e defendi em Abril de 1984 na Universidade Humboldt de Berlim, intitulada Aragons La Mise à mort und die Rezeption romantischer Motive. Os meus orientadores foram o Prof. Manfred Naumann, da então "Akademie der Wissenschaften", a Prof. Rita Schober e o Prof. Siegfried Streller, da Universidade Humboldt.
Bibliografia seleccionada
Karlheinz Barck, "Differenzierung der Beziehungen zwischen künstlerischer und politischer Avantgarde. Blickrichtung: französischer Surrealismus". In: Künstlerischer Avantgarde. Berlin, 1979
Werner Spiess, Max Ernst - Collagen. Inventar und Widerspruch. Köln, 1975 (2ª edição)
Créditos das imagens:
Max Ernst, Das Innere der Sicht (Oedipus), 1931, http://www.derkunstblog.blog.de/

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dreams designed by Dalí in Spellbound (1945)


A procura da verdade na arte em "La Mise à mort" de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta vermelha"
O "maravilhoso" significa na fase surrealista de Aragon um esforço para desvendar os "segredos" da realidade, e é como tal um conceito gnoseológico. Escreve no Paysan de Paris que a realidade é a ausência de contradição, e o maravilhoso a contradição que aparece na realidade. Aragon define surrealismo, em Une vague de rêves, como unidade de contradições, como síntese de realidade e não-realidade, e investiga a contradição como meio de conhecimento da surrealidade (não da sobre-realidade). As categorias hegelianas serviriam assim a intenção, comum a todos os surrealistas, de ultrapassar o conhecimento racional da realidade e atingir novas formas de conhecimento. Aragon e Breton recebem Hegel de modo diverso, e há diferenças na definição de "surrealismo" dos dois autores. É por isso justo interrogarmo-nos sobre o contributo de Aragon para a teoria do surrealismo. Em L'ombre de l'inventeur, Aragon equipara o conhecimento poético ao conhecimento filosófico, distanciando-se neste ponto de Breton, que procurava distinguir o conhecimento poético de todas as outras formas de conhecimento.
A estética surrealista do maravilhoso contém em Aragon uma forte componente gnoseológica, de tal maneira que podemos ver na procura da "beleza moderna" em Anicet uma etapa prévia da procura da verdade em La Mise à mort. No entanto, a procura da "beleza moderna" não poderia interpretar-se como meramente estética, os surrealistas sempre se pronunciaram contra a separação entre a arte e a vida. Mirabelle é, por um lado, a personificação da "beleza moderna": por detrás desta personagem esconde-se a "beleza moderna", venerada pelos membros de uma sociedade secreta, todos eles artistas, por detrás dos quais estão, segundo Aragon explica, pessoas reais. Anicet, por exemplo, é ele próprio, Bleu é Picasso, Pol é Charlie Chaplin, Baptiste Ajamais é Breton, etc. Mas Mirabelle é, por outro lado, uma mulher de carne e osso, ou não seria tão bela. A tentativa de unir arte e vida é tornada visível em Anicet através da figura de Mirabelle como personificação da "beleza moderna" - a equiparação da arte à vida é um aspecto desta tentativa. Em La Mise à mort, a solução deste problema é dada ao reunir a arte (do canto ou da escrita) e o amor na figura da mulher amada, Fougère, uma máscara de Elsa Triolet no romance. "Oedipe" não possui esta harmonia, já que Anthoine se distancia neste terceiro conto de Fougère, ao retomar um método de escrita da juventude, no qual não tinha ainda descoberto essa síntese harmoniosa.
(a continuar)

domingo, 11 de julho de 2010

sábado, 10 de julho de 2010

The Band Wagon, 1953 - Girl Hunt Ballet (Part 2 of 2)

The Band Wagon, 1953 - Girl Hunt Ballet (Part 1 of 2)



A procura da verdade na arte em "La Mise à mort " de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta
vermelha"
4. - A interferência de Anicet em "Oedipe". O resultado da procura: a alusão intratextual
Roger Garaudy sublinha, na biografia Aragon - Une vie à changer, a unidade da obra do autor e, simultaneamente, o contrário, o movimento perpétuo desta obra multifacetada. No que respeita à interferência de Anicet ou le panorama. Roman em "Oedipe", haveria a investigar os elementos comuns que ligam os dois textos (as constantes na obra de Aragon); e a mudança de função do primeiro texto no texto mais tardio. Trata-se de conseguirmos seguir a unidade dialéctica da obra de Aragon e considerar os textos no conjunto da obra, mesmo quando a evolução do autor parece contraditória. Garaudy acentua esta necessidade de compreensão dialéctica da obra de Aragon, afirmando que as criações da juventude só revelam verdadeiramente o seu sentido quando se descobre nelas, em estado embrionário, a concepção de mundo que se desenvolve na obra da maturidade. Que Aragon regresse a Anicet em "Oedipe" não significa que o autor negue a sua evolução e procure refúgio nessa obra de juventude. Sendo La Mise à mort também uma autobiografia literária, trata-se mais do desejo de retomar uma etapa de desenvolvimento antiga que tinha sido interrompida de modo abrupto, e assim compreender um percurso artístico aparentemente contraditório. Este regresso não acontece como mero retomar do estilo e temática de Anicet, mas no registo de superação (síntese).
"Oedipe" está, quer estilistica quer tematicamente, muito próximo de Anicet - basta pensar-se na atmosfera parisiense e nos traços de romance policial, que partilham. Aragon usou em ambos os textos técnicas narrativas do filme e do romance policial. Os críticos acentuaram estes traços, por ex. "o estilo pele-vermelha", "o estilo western e vamp", "o estilo Nick Carter", e observam que o texto descreve muitos episódios de modo tão preciso, que seria possível filmá-los com base no texto; e enumeram técnicas do filme usadas por Aragon, tais como "montagem", "multiplicidade dos pontos de vista", "compressão e dilatação do tempo", "ralenti", "anotações de luz", "gosto pelo visual". A utilização destas técnicas narrativas, próprias do filme e do romance policial (que Aragon tinha fundamentado teoricamente nos ensaios "Du décor" e "Du sujet" em 1918-1919), significa em Aragon uma crítica a formas de representação naturalistas e uma procura de novas formas de produção estética. Estas novas formas deveriam transmitir o "maravilhoso quotidiano". Os surrealistas distanciam-se, assim, do conceito de obra de arte individualista e do estatuto autónomo da arte na sociedade burguesa. Conceitos narrativos básicos como autor, obra, leitor, vão assim sofrer uma modificação radical.
Mesmo ultrapassando a questão de saber se Anicet pode ou não considerar-se um romance (Aragon explica o título através da aliteração "... orama. Roman"), o mais importante texto de Aragon desta fase é uma "declaração de guerra" à concepção de romance então vigente. Apesar da crítica ao romance tradicional, Aragon distancia-se de Breton, que rejeita o romance como género formal. Anicet não segue as convenções do romance psicológico nem as fórmulas preestabelecidas de construção da intriga, criticando os "livres à formules". Uma das grandes constantes da obra de Aragon é, como vemos, esta permanente reflexão sobre o romance, que em Anicet e La Mise à mort toma a forma de uma crítica a formas tradicionais, "petrificadas", do género épico. Por outro lado, Aragon sempre se recusou a aceitar a divisão dos géneros literários, pois todos eles partilham, em sua opinião, da natureza da Poesia, a produção do Maravilhoso.
(a continuar)
Créditos da imagem: http://www.marxists.org/

sábado, 3 de julho de 2010













A procura da verdade na arte em "La Mise à mort de Louis Aragon - "Oedipe", o terceiro "Conto da pasta vermelha"

O sentido da narrativa de "Oedipe" reside na ausência dos elementos característicos do romance policial, criados pelo autor e esperados pelo leitor. Todas as expectativas do leitor são frustradas desde o início do conto - em consequência, tem de procurar o sentido da narrativa fora do quadro tradicional do romance policial. É nesta busca, que faz de "Oedipe" uma obra-prima da reflexão metaliterária, que se constitui o sentido do texto. Este corresponde ao sistema da "carta roubada" de E. A. Poe, que está presente como sinal da sua ausência. Em "Oedipe" são rejeitadas duas concepções de literatura: literatura como mera cópia da realidade, mas também a literatura que se entende como criando a sua própria realidade, imanente a si própria e independente de qualquer outra realidade. A inclusão do leitor aponta para a verdadeira problemática do conto: trata-se em "Oedipe" do efeito ("Wirkung") da literatura. Esta questão da realidade da literatura liga-se à questão política da crítica ao culto da personalidade (esta crítica é acentuada por Delf Schmidt como crítica também à concepção dogmática do realismo socialista). Aragon critica aqui também uma concepção demasiado estreita de "contemporaneidade" na literatura e arte por não deixar, em sua opinião, espaço para a invenção, antecipação e descoberta. Acentua, no entanto, que a designação "literatura contemporânea" é uma tautologia, pois todos os textos se referem, em última análise, à contemporaneidade, ao presente.



Aragon coloca em "Oedipe" a questão do efeito da literatura, questionando simultaneamente a relação da literatura com a realidade. O texto pergunta como se poderia estimular a participação do leitor no acontecer textual - tanto mais interessante se torna assim a reacção dos críticos, ao interpretar "Oedipe" como a narrativa de um louco. Aquilo que se critica com esta paródia do romance policial é a concepção da vida humana como absurda. Rei Édipo e Macbeth são os exemplos mais acabados desta mundivisão. No "Terceiro conto da pasta vermelha" criticam-se tanto o "acto gratuito" de Gide como o entendimento de Camus de "absurdo". Pois o que seria a vida de alguém cujo curso de vida estivesse predeterminado, a não ser uma história absurda, "a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, / Signifying nothing." Aragon tenta fazer com que a sua personagem dê um sentido ao mundo que habita e à sua própria existência, formulando deste modo em "Oedipe" a tese do anti-fatalismo.



No mito clássico, a verdade é equiparada a uma predeterminação, a uma fatalidade inelutável, através do enigma da esfinge e do oráculo de Tirésias. Em "Oedipe", Aragon distancia-se desta predestinação e fatalismo. O "acto gratuito" de André Gide é uma primeira tentativa de afastamento do mito, da predeterminação, mas apenas como pura negação. O "acte gratuit", como oposto extremo do mito, não produz mais nada a não ser um outro mito, o da liberdade individual, ou da ilusão desta liberdade. Em Albert Camus o mito é reconstruído com base na pergunta humanista do que deve o ser humano fazer numa época que é, ela mesma, um mito. O mundo é aceite, apesar de ser um mito. As concepções de "acto gratuito" (Gide) e de "absurdo" (Camus) não constituem para Aragon uma solução, em vez disso ele propõe uma desconstrução do mito. A dimensão de texto aberto de "Oedipe" (um texto que implica mais activamente o leitor na constituição de sentido) coloca o leitor num novo espaço de tensões e liberta-o de uma verdade predeterminada, sem no entanto lhe propor uma solução. O leitor é que terá de se libertar do mito (também do culto da personalidade), pois o texto exige a maioridade do leitor. O romance psicológico é igualmente criticado, porque o autor conhece a "verdade" e se limita a descrever o decurso da acção. O romance de juventude de Aragon Anicet ou le panorama. Roman e o período surrealista funcionam, neste contexto, como uma primeira tentativa de libertação de clichés e convenções na prática ficcional.



(a continuar)




Imagens e créditos: Albert Camus (http://www.literatur-nobelpreis.de/), André Gide (http://www.myspace.com/)