sábado, 30 de abril de 2011







Matisse em Baltimore III - The Matisse Stories de A. S. Byatt




A terceira artista da casa, que só no final se revela e é reconhecida como tal, é Mrs. Brown, a funcionária negra da Guiana, o verdadeiro espírito protector e tutelar da casa, o seu totem. Ela acaba por se tornar a personagem central e mais interessante do conto, aliada de Debbie e em constante conflito com Robin. Sheba Brown é descrita como "um génio da justaposição" (Kelly, 59) - ela veste-se de modo surpreendente, usa tecidos floridos, malhas de todas as cores, feitas de restos de lã. Mrs. Brown confecciona a roupa que usa com restos de tecidos e roupas usadas que lhe dão. Quando uma elegante e requintada galerista visita a família Dennison para eventualmente expor a obra de Robin, é Mrs. Brown quem capta a sua atenção e acaba por ser escolhida para expor o seu recém-descoberto "artwork". A família Dennison não fazia ideia de quão pouco ingénua era afinal a arte de tricotar de Mrs. Brown... Sheba Brown pode ser vista como "a recycler of culture, reversing the flow of Western appropriation of the Third World" (Kelly, 58), como recicladora da Cultura Ocidental, retribuindo o gesto ocidental de reciclar a cultura do terceiro Mundo.

Debbie vê, por acaso, a exposição de Mrs. Brown na galeria de arte, transformada numa "cave de Aladino de cores brilhantes" (MS, 77). Mrs. Brown juntou restos de coisas, roupas da família Dennison, um vestido usado de Debbie, uma gravata que Robin deitou fora, para produzir uma arte de forte conteúdo feminista. Os objectos principais desta cave de Aladino são um dragão enorme, meio animal meio aspirador, feito, entre outros materiais, do vestido usado de Debbie, e uma boneca de trapos, acorrentada em soutiens retorcidos e saiotes. Debbie ainda tenta não falar da exposição ao marido, mas Jamie, um dos dois filhos do casal, chama os pais para ver Mrs. Brown na "telly", descrevendo o que vê como bizarro: "Ela tem uma exposição de coisas que parecem os Marretas, com aquela senhora da galeria que veio aqui a casa, venham ver, Pai, que bizarro!" (MS, 81) Como reacção à exposição e arte de Mrs. Brown, Debbie regressa com sucesso à arte da xilogravura que abandonara, e Robin começa a pintar de modo diferente, usando finalmente alguma emoção. Ambos retratam o rosto de Mrs. Brown, Debbie transformando-a em fada boa / fada má, Robin pintando-a como Kali, a deusa hindu da morte, que pode também significar vida nova (Kelly, 59).


O conto sugere que a arte contemporânea é algo também de colectivo, produzida por indivíduos em interacção com outros indivíduos, com a sociedade e com as suas instituições de arte. O artista não produz arte só porque assim quer, mas sim quando a sociedade, através das várias instituições ligadas à arte, galerias, museus, críticos e professores de arte, reconhece esse trabalho como tal.


(a continuar)



Bibliografia:


- Byatt, A. S., The Matisse Stories. NY: Vintage Books, 1996 (no texto como MS, traduções minhas)

- Kelly, K. C., A. S. Byatt. NY: Twayne Publishers, 1996


Texto publicado na PNETliteratura a 3 de Julho de 2009

Henri Matisse prepara um dos seus famosos "cut outs"
ou colagens (ou ainda "gouaches découpés")

Henri Matisse fala de desenho e pintura


Katy Rothkopf, curadora de Pintura e Escultura Europeia no Museu de Arte de Baltimore, apresenta a Cone Collection


domingo, 24 de abril de 2011







Matisse em Baltimore II - The Matisse Stories de A. S. Byatt


Na loja do Museu de Arte de Baltimore encontro a minha trouvaille, ou vice-versa: trata-se do livro de contos The Matisse Stories, de A. S. Byatt, conhecida como autora do romance Possession, vencedor do Booker Prize em 1990 e adaptado ao cinema em 2002. Escritas em 1993, as Matisse Stories são uma homenagem de A. S. Byatt a Matisse, o seu pintor preferido. Na capa, o enigmático quadro do pintor francês Le silence habité des maisons (1947). Os três contos, "Medusa's Ankle", "Artwork" e "The Chinese Lobster", dialogam com três desenhos de Matisse, respectivamente La chevelure (1932), L'artiste et le modèle reflétés dans le miroir (1937), Nymphe et faune (1932), e narram situações do quotidiano - uma professora universitária que vai ao cabeleireiro, um casal de artistas que contrata uma empregada que gosta de fazer malha, e dois professores universitários que discutem o futuro de uma aluna enquanto almoçam num restaurante chinês. Nestes quadros desenham-se tensões que virão a revelar situações insólitas e facetas inesperadas das personagens, desconhecidas até de si mesmas. Os dois primeiros contos partem da descrição de quadros de Matisse, o terceiro discute os próprios fundamentos da arte do pintor.

"Medusa's Ankle" abre com uma descrição do quadro Pink Nude (1935) de Matisse, no texto designado como "Rosy Nude". Susannah, a professora de Linguística que confia ao cabeleireiro, Lucian, a "desintegração" (Byatt, 7) da sua cabeleira de senhora de meia-idade, não só tem os tornozelos inchados, mas também o poder da Medusa, contido já em potência no monumental nu pintado por Matisse no final de uma longa sequência de variantes. Na senda do ensaio de Hélène Cixous sobre o riso de Medusa, Byatt transforma a personagem de Susannah, no final do conto, numa figura afirmativa, positiva e - poderosa (Kelly, 56).

Mais estrutural ainda é a relação do quadro Le silence habité des maisons com o conto "Artwork". O misterioso quadro de Matisse é descrito pela voz narrativa que nos introduz no espaço narrativo do conto: um interior que retrata uma mãe e filho debruçados sobre um livro, poisado sobre uma mesa onde há também uma jarra de flores. O insólito do quadro está no facto de as figuras não terem traços fisionómicos, e o livro desmesuradamente grande estar em branco, sem quaisquer caracteres impressos. Mais, todo o interior tem um fundo negro, no qual a custo se distingue o esboço a giz de um círculo em cima de uma haste - um totem? - por cima de uns tijolos. A janela, que ocupa o lado superior direito do quadro, abre para uma paisagem de folhagem e sol, que contrasta com o interior sombrio e estranho e apenas tem afinidade com a jarra de flores e o livro aberto. Interrogamo-nos com a voz que narra: "Quem é o totem que está de vigia por debaixo do tecto?"

O texto continua a descrever o silêncio da morada do casal de artistas, habitado por sons como o da máquina de lavar roupa e da TV ligada sem ninguém estar a ver. Nesta casa, numa subtil dança de espelhos entre as personagens, vai estar em jogo a criatividade de cada uma delas e no seu conjunto, e vai perspectivar-se uma discussão implícita sobre o conceito de "arte" na sociedade contemporânea (vd. gravura que antecede o conto, L'artiste et le modèle reflétés dans le miroir). Quem é o modelo de quem neste conto? Quem inspira quem, e quem é que estabelece novos padrões artísticos, e baseando-se em que valores? A dedicatória do livro sugere - na emoção: "For Peter, who taught me to look at things slowly - with love." Ver, complementado com sentir. Uma lição que não é de agora e me faz recordar, entre outros textos, a novela Tonio Kröger de Thomas Mann. Olhar as coisas para realmente as ver, significa para A. S. Byatt olhar com tempo, com vagar - na dedicatória parece equivaler a - com emoção. O conceito de obra / trabalho de arte como algo produzido em limites rigorosamente individuais aparece como que desfocado, desestabilizado neste conto, muito apropriadamente intitulado "Artwork".

"Artwork" usa-se em três acepções: de modo mais geral, "um objecto ou objectos produzidos por artistas"; mais especificamente, "desenhos, fotografias ou ilustrações incluídas num livro ou numa revista"; finalmente, na acepção que apenas encontrei num dos dicionários consultados, "trabalho de artes gráficas ou plásticas, especialmente pequenos objectos decorativos ou artísticos feitos à mão".



O conto de A. S. Byatt inclui descrições do "artwork" de três personagens: Robin, o marido, o artista mais tradicional, trabalha no andar superior da casa, transformado num estúdio de arte, com o melhor espaço e luz. Nos anos 1960, como o próprio texto diz, Robin era um neo-realista avant la lettre, numa época em que quase toda a pintura era abstracta. Pintava superfícies e objectos em cores neutras, mas nunca nada que tivesse vida. O texto resume a apreciação da arte de Robin: a dois passos do kitsch ("just this side of kitsch"). Debbie, sua mulher, trabalha como editora de design de uma revista significativamente - e em tom de provocação que dá que pensar - chamada A Woman's Place. É ela quem mantém a casa com um bom salário, permitindo a Robin pintar a tempo inteiro. Debbie teve, no entanto, de abandonar a sua própria arte, a xilogravura ("wood engravings") e em silêncio nutre sentimentos contraditórios pelo marido, sobretudo por ele nunca mencionar a arte dela, que assim vai ficando por realizar. Robin é egocêntrico, ocupado só consigo mesmo, sem interesse pelas questões relativas ao governo da casa ou à educação dos filhos (cf. Kelly, 57-59).



(a continuar)



Bibliografia:



  • Byatt, A. S., The Matisse Stories. NY: Vintage Books, 1996 (no texto como MS, traduções minhas)

  • Flam, Jack, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001

  • Gowing, Lawrence, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979

  • Kelly, K. C., A. S. Byatt. NY: Twayne Publishers, 1996 (no texto como Kelly)

Texto publicado na PNETLiteratura a 22 de Junho de 2009

domingo, 10 de abril de 2011

Matisse em Baltimore I - A Cone Collection









Sempre associei o texto de Herberto Helder sobre o pintor que tinha um aquário e lá dentro um peixe vermelho - com Matisse. O texto é de Retrato em movimento, de 1967, e conta a história do pintor e do peixe vermelho que se transforma em peixe amarelo, depois de passar por mutações negras, ensinando a lição da metamorfose. É que Matisse pintou variações do motivo do peixe vermelho (poisson d'or) em datas diferentes, de 1909 até 1921. No quadro Zorah sur la terrasse, de 1912, o aquário com peixes vermelhos parece estar fora do contexto mas, por ser um motivo recorrente na obra de Matisse e pela sua colocação no canto inferior direito do quadro, funciona como assinatura do pintor.


Hoje é da relação de Matisse com a literatura que gostaria de vos falar.


Desde o Romantismo que as artes estão interligadas e os artistas se inspiram e dialogam entre si, independentemente da forma de arte que praticam. O autor alemão E. T. A. Hoffmann, romântico tardio, publicou o seu primeiro livro em 1815, Peças de Fantasia à maneira de Callot, que logo no título mostra a influência e a ligação entre a música e a pintura. Na mesma época, o compositor Robert Schumann dialoga, por sua vez, com Hoffmann e Jean-Paul, quando compõe as peças Carnaval, op. 9 (1834) e Kreisleriana, op. 16 (1838). Os exemplos multiplicam-se, e a influência recíproca das artes entre si nunca mais deixou de se acentuar desde então. A intertextualidade é uma das características mais importantes da arte contemporânea - basta pensar nas adaptações cinematográficas de obras literárias, mas também em tudo aquilo em que o cinema influenciou a arte narrativa. No campo teórico, acentuou-se a importância da perspectiva comparatista, inter e transdisciplinar e intertextual.


Que me lembre, Matisse ilustrou as Poésies de Stéphane Mallarmé e as Cartas Portuguesas e publicou Jazz, com texto e gravuras suas (Jazz e Lettres Portugaises de Mariana Alcoforado foram tema de exposições na Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva em Lisboa em 1996 e 2004, respectivamente). Louis Aragon escreveu Henri Matisse, roman (1971), fruto do diálogo com Matisse durante 27 anos, de 1941 a 1968. Toda a obra de Matisse parece, além disso, ter partido, como o título do próprio quadro de 1904 indica, Luxe, calme et volupté, de versos do poema de Baudelaire "Invitation au voyage". Esse convite ao imaginário e ao sonho virá a transmitir na obra de Matisse toda a beleza da sua visão interior, muito longe, no entanto, do instinto de morte ligado á beleza que se encontra em Baudelaire. Na obra de Matisse é antes, tal como pode ler-se no catálogo da exposição permanente do Museu de Arte de Baltimore, a vida que se afirma em cores vibrantes, que "cantam", e padrões cheios de ritmo, que "dançam".

E a caminho de Baltimore, mais poderá surgir - vou pensando eu, dedicada seguidora daquilo a que os franceses chamam trouvailles, coisas que há muito procurávamos e que encontramos de repente, quando já não estávamos à espera, como por acaso. É nisto que vou pensando enquanto seguimos as indicações da auto-estrada 95, que liga a Flórida ao Canadá e nos leva de Washington, D.C., até Baltimore, em Maryland. O nosso destino é o Museu de Arte de Baltimore, onde desde 1957 existe a preciosa e prestigiada Cone Collection, a maior e mais importante colecção de obras de Matisse do mundo. A colecção é a jóia da coroa do BMA e inclui 500 obras de Matisse, entre as quais 42 óleos, 18 esculturas, 36 desenhos, 155 gravuras, 7 livros ilustrados, bem como 250 desenhos e gravuras do primeiro livro ilustrado por Matisse, Poésies de Stéphane Mallarmé. Algumas obras-primas da colecção são Mont Sainte-Victoire Seen from the Bibémus Quarry (c. 1897) de Cézanne, Vahine no te vi (Woman of the Mango, 1892) de Gauguin, Mother and Child (1922) de Picasso, e de Matisse os dois nus de 1907, Blue Nude, e de 1935, Large Reclining Nude, também conhecido como Pink Nude.

As coleccionadoras foram duas irmãs de Baltimore, Claribel e Etta Cone. Claribel (1864-1929), a mais velha, era médica e patologista, e Etta (1870-1949) era música amadora e tomava conta da casa. Claribel e Etta possuíam um rendimento anual generoso, proveniente da herança e dos bem-sucedidos negócios Cone, na área dos têxteis, que permitia às duas irmãs viajar e coleccionar obras de arte. Em finais dos anos 1890 travaram amizade com Gertrude Stein, que frequentava então a escola médica em Baltimore, na Universidade de Johns Hopkins. A família Stein encorajou as irmãs Cone a aprender mais sobre arte e estética, e apresentou em Paris Etta a Picasso em 1905, e a Matisse em 1906. Claribel e Etta mostraram uma intuição artística invulgar ao adquirir obras de rara qualidade de artistas inovadores, muito antes de serem reconhecidos e consagrados.

As duas irmãs apoiaram Matisse ao longo de mais de 40 anos. Desde a morte de Claribel em 1929, Etta aconselhava-se com o próprio Matisse para continuar a sua colecção de arte, e adquiriu óleos, esculturas, desenhos, gravuras e livros ilustrados, incluindo Interior with Dog (1934), Purple Rob with Anemones (1937), The Yellow Dress (1950). Como coleccionadora criteriosa que era, Etta quis dar um contexto histórico à sua colecção e comprou também obras de predecessores de Matisse no séc. XIX - Delacroix, Ingres, Corot, Degas, Cézanne, Toulouse-Lautrec, van Gogh e Gauguin. No testamento de Claribel estava estipulado que a colecção deveria ir para o Museu de Arte de Baltimore, se "o espírito de apreço pela arte moderna em Baltimore progredisse". Felizmente assim aconteceu, e a esplêndida Colecção Cone aí está para quem a quiser ver, atraindo a Baltimore visitantes interessados em ver a exuberante arte de Matisse.

(a continuar)

Bibliografia:



  • Louis Aragon, Henri Matisse - a novel. NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1971

  • Jack Flam, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001

  • Lawrence Gowing, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979

  • John Jacobus, Henri Matisse. NY: Abrams, 1973

Texto publicado na PNETLiteratura a 11 de Junho de 2009


Imagens: blogs.princeton.edu; christies.com; destination360.com;outandaboutnewspaper.com

domingo, 3 de abril de 2011





Lendo poesia - Vasco Gato



um dizer ainda puro


imagino que sobre nós virá um céu

de espuma e que, de sol em sol,

uma nova língua nos fará dizer

o que a poeira da nossa boca adiada

soterrou já para lá da mão possível

onde cinzentos abandonamos a flor.


dizes: põe nos meus os teus dedos

e passemos os séculos sem rosto,

apaguemos de nossas casas o barulho

do tempo que ardeu sem luz.

sim, cria comigo esse silêncio,

que nos faz nus e em nós acende

o lume das árvores de fruto.


diz-me que há ainda versos por escrever,

que sobra no mundo um dizer ainda puro.



In: Um Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000

Vd. comentário ao poema de Vasco Gato no post anterior

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Lendo poesia - "um dizer ainda puro", de Vasco Gato



As últimas palavras do poema de Vasco Gato "um dizer ainda puro" dão o título ao poema, fechando-o, arredondando-o em tom coloquial, sem maiúsculas. O início de cada uma das três estrofes - "imagino", "dizes" e "diz-me" - continua esse tom conversacional, acentuando o intimismo e quase sussurro das palavras e versos.


A primeira estrofe do poema introduz a imagética que irá ser desenvolvida: de uma situação caracterizada pela renúncia e frustração - "poesia da nossa boca adiada", "soterrou", "cinzentos abandonamos a flor" - o eu lírico imagina que, num futuro próximo e no quotidiano ("sol a sol") "uma nova língua", uma nova forma de expressão recuperará o que ficou sem chama e se deixou murchar. Toda esta imagética é de origem bíblica, embora possa encontrar-se também em relatos de criação do mundo de várias religiões e culturas. O ponto alto da primeira estrofe, contraponto das imagens negativas já citadas, é "um céu de espuma", imagem totalizante típica dos relatos de origem do mundo, sempre relacionados com o elemento água.

A segunda estrofe introduz mais claramente o elemento dramático, o interlocutor, que não é o leitor, mas sim o segundo elemento da relação de que o poema nos fala. A componente da presença física da primeira estrofe - "nossa boca adiada", "para lá da mão possível" - continua com "os teus dedos" e "nus". O tema principal é agora o tempo, contrastando o passado incaracterístico - "séculos sem rosto", "tempo que ardeu sem luz" - com um presente no qual o silêncio, que equivale ao "céu de espuma" da estrofe anterior, apaga o barulho e permite o regresso à inocência perdida. Os vários finais desta estrofe ecoam fortemente o "Génesis", o tempo da inocência antes da queda em que a nudez não provocava vergonha e o desejo não era pecado ("em nós acende o lume das árvores de fruto").


Continuando o imperativo "põe" e "cria comigo", o eu lírico pede, na última estrofe, à companheira que lhe diga que há ainda inocência no mundo, permitindo "um dizer ainda puro", garantia única do que possa vir a ser escrito - "versos por escrever". Esta novidade não se situa, a rigor, no mundo, ela como que sobeja dele, está a mais e pertence a outra esfera, a esfera do poema e da relação, que deste modo se reconhece e deseja.


Não muito longo e cheio de musicalidade, o poema de Vasco Gato podia ser uma canção. A criação de atmosfera, disposição íntima (Stimmung) consegue-se através da imagética, impregnando de subjectividade e emoção a objectualidade, processo típico da lírica. A musicalidade não vem aqui do uso de rima nem de artifícios formais ao nível sonoro, mas da criação de uma atmosfera de grande intimismo e comunicação quase sem palavras, a tender para o silêncio, em que poderia dizer-se, quase paradoxalmente, que as palavras cessam mas o poema nasce.


Esse é o tema de "um dizer ainda puro": a possibilidade e condições da criação do poema, que nasce do silêncio, que é inocência, é luz (com toda a sua simbologia como criação). A interrogação da possível novidade de "um dizer ainda puro" desenrola-se como encontro, que passa pela materialidade dos corpos e é ao mesmo tempo relação, comunicação conseguida, e poema que assim se faz. O sentimento é realmente misto, a um tempo de realização, melancolia e nostalgia, porque o poema se faz no presente usando o futuro ("sobre nós virá") e reformulando o passado ("tempo que ardeu sem luz"). Que se trata de uma dupla realização, interrelacional e lírica, demonstra-se no próprio desenrolar conversacional do poema, a cujo "fazer" assistimos, lendo. A nostalgia diz aqui respeito à inocência, enfim à infância (como no belo filme sobre Marin Marais, Tous les matins du monde, de Alain Corneau, 1991, segundo o romance de Pascal Quignard), e não como no modernismo a um desejo da palavra perfeita, de cratilismo da linguagem, em que significante e significado pudessem coincidir e fossem capazes de criar mundo. Não é de criar mundo que aqui se trata, mas sim de algo que decorre da interrelação humana, que "sobra do mundo" e é poema, sendo essa novidade arcaica conseguida como "nova língua" e realizada como "um dizer ainda puro". O "regresso ao presente" é duplo, regressa-se do futuro ("sobre nós virá") e do passado ("passemos os séculos sem rosto"). O poema é presença, imanência, relação humana e encontro.

Penso que Martin Buber teria gostado muito, mas cada leitura resulta da intersecção do mundo do texto com o mundo do leitor...


"um dizer ainda puro" in: Mover de Mão, 2000


Fotografia de Vasco Rato in:


http://www.quintasdeleitura.blogspot.com/



O meu texto sobre "um dizer ainda puro" data de 2005