Música e conspiração em The Lady Vanishes de Alfred Hitchcock
(...)
Miss Froy não corresponde
minimamente ao tipo de heroína dos filmes de espionagem, ela não é nenhuma Mata
Hari. É mais uma anti-heroína, uma pessoa comum, que serve o seu país num
momento difícil. Ela não triunfa dos seus inimigos conspiradores da Axis (as potências principais do Eixo
foram a Alemanha, Itália e Japão durante a Segunda Grande Guerra) nem pela
juventude, nem pela beleza física, nem pelo uso de tecnologia avançada. Ela
vence o Mal absoluto, que aqui se delineia nas personagens do grupo conspirador,
pela sua humanidade, poder de comunicação e porque está do lado do Bem. Depois
do caso Dreyfus em França, reinava na época uma espécie de pânico moral contra
estrangeiros e espiões[1] –
a personagem de Miss Froy de algum modo serve para humanizar a figura do espião
e o aproximar do público. Quando ela se apresenta a Iris no comboio, diz:
“Froy... rhymes with joy.”[2] As
personagens reunidas à volta do Dr. Hartz e da conspiração, pelo contrário,
agem mercenariamente (vemos o ilusionista Doppo a exigir mais dinheiro ao
médico). O Dr. Hartz diz mesmo a Iris e Gilbert que tenciona matar Miss Froy
durante uma operação que será mal sucedida, revelando-se um profissional de
Medicina a fazer um uso radicalmente errado da sua vocação e profissão. Quanto
a Iris e Gilbert, eles são o par romântico do filme mas, em termos da intriga,
são heróis acidentais, detectives amadores por necessidade das circunstâncias.
As personagens de Miss Froy e de todos os conspiradores agem sob disfarce, sob
uma falsa identidade. Esta perturbação da identidade garante a modernidade das
personagens e é um tema constante na obra de Hitchcock, sempre preocupado com a
perda da memória e/ou identidade[3].
O triângulo de personagens
centrais do filme está ligado entre si numa história de solidariedade e entreajuda,
que é simultaneamente uma história romântica de amor, uma aventura da qual Iris
sairá modificada e rejeitará um casamento de fachada, sem amor, optando por
ficar com Gilbert. A música é o elo que liga as personagens de Miss Froy e
Gilbert: Miss Froy apresenta-se como professora de música, Gilbert é um jovem
etno-musicólogo interessado em estudar a música e dança de Bandrika, e poderá
por isso memorizar facilmente a canção de Miss Froy. A melodia que, no final,
se revela como sendo a chave do filme, está presente logo no início do genérico,
sublinhando sobretudo o título do filme e o nome do realizador. Reaparecerá
numa longa cena que começa no restaurante do hotel, e se prolonga pela serenata
que Miss Froy escuta atenta à janela do seu quarto, repetindo e parecendo tomar
nota. A música de Levy estará ausente de toda a sequência do comboio, para
apenas voltar a aparecer quando Miss Froy pede a Iris e Gilbert para
transmitirem a mensagem codificada na canção ao Foreign Office em Londres. Na
cena que já citámos na carruagem-restaurante com o Dr. Hartz, Gilbert trauteia por
breves instantes as primeiras notas da canção, mas é como se fosse um
comentário musical do realizador, já que Gilbert não conhecia ainda a melodia.
Mas a música continua presente em toda a sequência do comboio, apesar de estas
cenas apenas terem som ambiente: “But even as the film eschews conventional
movie music, it absorbs us in musical jokes, games, stratagems, and
atmospheres.”[4]
A música continua a ser o elemento que
liga tudo em The Lady Vanishes: “Like
The 39 Steps, The Lady Vanishes is a giddy combination of love story, comedy, and
spy suspenser, all connected by music”[5]. Tal como
a personagem principal que desaparece, a música seria o elemento mais
importante do filme. Quando reaparece contém o “MacGuffin”, e fará a transição
para o final do filme: Iris e Gilbert estão juntos no Foreign Office para
transmitir a mensagem de Miss Froy, quando para seu desespero Gilbert verifica
que se esqueceu da canção reveladora – nesse momento ouve-se a melodia ao
piano, a porta abre-se e as três personagens principais dão as mãos. A música é
assim elemento de revelação e de reunião, bem como a principal força e
instrumento do grupo que se opõe à conspiração. Opondo-se à conspiração,
opõe-se também ao silêncio ligado ao silenciamento, secretismo e morte, ao esquecimento
e ao caos, atributos ligados à conspiração. A música neste sentido é memória e
ordem, tal como noutros filmes de Hitchcock do período britânico, nomeadamente
em Young and Innocent e em The 39 Steps. Neste filme, a personagem
de Mr. Memory, que actua durante um espectáculo de music-hall, permitirá repor a ordem e provar a inocência do herói,
falsamente acusado; e é também durante a actuação de uma orquestra num salão de
baile que se detecta o verdadeiro culpado de um crime de que o protagonista era
erradamente acusado, em Young and
Innocent. Nos dois casos a música é a pedra-de-toque, o meio que permitirá
avaliar a inocência das personagens ou a sua culpabilidade. Esta preocupação
com a memória está bem patente em alguns dos mais conhecidos filmes do
realizador, Spellbound e Marnie, ambos casos de amnésias ou de perturbações
da memória, e em Vertigo, história de
uma fobia e de uma obsessão.
O título do romance no qual o filme se baseia,
The Wheel Spins, alude ao movimento
das rodas do comboio. O comboio é um poderoso símbolo de liberdade e mobilidade
por um lado, e de clausura e imobilismo pelo outro (a expressão “spin one’s
wheels” significa desperdiçar tempo, ficar numa posição neutra, sem avançar nem
recuar)[6]. Referimos
já atrás neste nosso texto como Jack Sullivan faz remontar ao primeiro filme
sonoro de Hitchcock, Blackmail, a
imagem da “human psyche spinning its wheels, a central Hitchcockian concept”[7].
Esta imagem do círculo, do remoinho, ou da espiral significa a obsessão das
paixões humanas, o tema central de Hitchcock, o seu traço melodramático, que
encontrará a forma mais acabada em Vertigo
(1958).
Em The
Lady Vanishes, o rodar da espiral das rodas do comboio está presente numa
montagem que acompanha o primeiro desmaio de Iris ao entrar no comboio, dando o
ponto de vista óptico dela: “The image blurs and dissolves into the
superimposed images of a whirlpool and multiple shots of her friend waving
goodbye that combine with images of a train conductor waving and the spinning
wheels of the train, whose rhythmic sound accompanies the montage”[8]. Esta montagem
aponta também para o poder hipnótico do comboio e das imagens do próprio filme,
e do cinema em geral. Na cena em que Iris e Gilbert vasculham a
carruagem-bagageira, encontram para além dos óculos de Miss Froy e de um cartaz
do ilusionista Signor Doppo, uma caixa daquelas que os mágicos usam para fazer
desaparecer e reaparecer pessoas. Gilbert diz então “In magic circles, we call it the
disappearing cabinet, you get inside and vanish”. Os três objectos
desta importante cena em termos simbólicos – os óculos, o cartaz e a caixa
mágica do ilusionista – apontam para a arte do cinema e para o seu poder, e
para este filme em especial, The Lady
Vanishes. O realizador também é um ilusionista, que nos envolve no seu
círculo mágico de imagens hipnóticas (o próprio projector de uma sala de cinema
tem esses cilindros que fazem rodar as bobinas com a película e projectar o
filme). Trata-se de uma reflexão sobre a arte do cineasta, do cinema, e o poder
das imagens, como que alertando para o carácter ilusório do mundo do cinema.
Mas enquanto que, por ex., em The Wizard
of Oz (1940) a montagem durante a qual também Dorothy desmaia nos conduz a
um mundo de ficção e de sonho, o do cinema por excelência, passando mesmo das
imagens a preto e branco para o filme a cores, em The Lady Vanishes a visão de Iris permanece bem real, afirmando-se
esta realidade no decurso da busca conjunta com Gilbert e no final.
Poderemos, pois, interrogar as
referências do filme ao tempo histórico. Bandrika (ou Bandrieka), o país
ficcional onde a acção se desenrola durante a maior parte do filme, poderá ser
uma variação de um nome jugoslavo, de um vale nas Montanhas Pirin, na Bósnia, o
Vale de Banderica. Miss
Froy diz que Bandrika é “One of Europe’s few undiscovered countries”. De
facto, Hitchcock acabou por aceitar realizar esta adaptação do romance The Wheel Spins, depois de uma tentativa
de rodar o filme na Jugoslávia ter falhado, porque os habitantes receavam que o
filme desse uma visão negativa do país. Bandrika poderá ainda aludir ao perigo
de uma nova Guerra Mundial que se desenhava na época, no imediato pré-Segunda Grande
Guerra, pela ligação da ex-Jugoslávia e da Bósnia ao incidente que foi a causa
próxima para o eclodir da Primeira Grande Guerra, o assassínio do Arquiduque
Franz Ferdinand da Áustria, herdeiro do trono austro-húngaro, e de sua mulher
Sophie Duquesa de Hohenberg, a 28 de Junho de 1914 em Sarajevo, por um grupo de
conspiradores e assassinos bósnios. Nomes de outras estações de
caminho-de-ferro que aparecem durante o filme são Zolnay, Dravka e Morsken –
Zsolnay é uma localidade na Hungria, Dravka na Croácia, e Morsken uma
localidade sueca, tanto quanto consigo verificar.
Vejamos finalmente quais são os sinais que apontam
neste filme para o perigo do fascismo em ascensão na Europa da época. O grupo
de conspiradores liderado pelo Dr. Hartz alude à Alemanha, embora a língua que
falem os habitantes de Bandrika seja um vernáculo ficcional. Hitchcock consegue
isto sobretudo através da representação da “Englishness” da época, no retrato,
também ele muito crítico, de personagens britânicas. A freira que vigia Miss
Froy acaba por trair o grupo de conspiradores, por solidariedade, ao saber que
a senhora de idade é inglesa: “You didn’t tell me the old girl was English?”, pergunta
ela, censurando o Dr. Hartz. O marido adúltero, um pacifista ingénuo, resolve
sair do comboio empunhando uma bandeira branca e é imediatamente morto a tiro,
mostrando a opinião de Hitchcock quanto às tentativas de “appeasement” da Inglaterra
de então com a Alemanha. Last but not
least, fica-nos o estranho sintoma no meio do discurso no vernáculo de
Bandrika proferido pelo gerente do hotel, Boris, sobrecarregado de trabalho pela
afluência de hóspedes na sequência da avalanche[9]:
“Oy vei zmir”, uma expressão em yiddish (a
língua hebraica falada pelos judeus na Europa Central e de Leste, uma mistura
de alemão com hebreu, línguas eslavas e outras línguas). Esta expressão significa “woe is me”, mostrando temor
ou ansiedade em relação ao que aconteceu ou está para acontecer, e pode ser
interpretada no contexto histórico do filme como sério aviso em relação ao Mal
absoluto que se avizinhava com a Segunda Grande Guerra e o Holocausto.
Embora alguns dos mais
emblemáticos filmes de Hitchcock estejam ligados a uma simbologia de apagamento
da figura feminina (Rebecca, de 1940,
será marcado pela ausência radical de uma mulher[10]),
The Lady Vanishes parte da tradição
bem concreta dos espectáculos de magia de finais do séc. XIX, que consistia em fazer
desaparecer senhoras. Esta temática foi tratada por Lucy Fischer no artigo de
1979 “The Lady Vanishes: Women, Magic, and the Movies” da perspectiva da teoria
feminista, salientando a predilecção do cinema desde a sua origem por fazer
desaparecer figuras femininas[11].
O pequeno filme de George Meliès intitulado Escamotage
d’une Dame chez Robert-Houdin, em inglês The Vanishing Lady, de 1896, é um dos mais antigos exemplos de um
truque cinematográfico que possibilitava a representação em filme desse número
de ilusionismo. O próprio Meliès teria sido ilusionista antes de fazer filmes e
teria comprado o Teatro Robert-Houdin em 1888[12].
Lucy Fischer acentua a violência simbólica destes números de ilusionismo e sua
continuação na convenção cinematográfica, e relaciona-os com a definição de
mulher de Simone de Beauvoir em Le
Deuxième Sexe como “o outro” e como mistério para o homem[13]. No
ensaio “Violent Vanishings: Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”[14], Karen
Beckman faz remontar a origem desta tradição no cinema aos números de
ilusionistas vitorianos, intitulados “Vanishing Lady Trick” ou “Vanishing Woman
Act” como executados por Charles Bertram, o ilusionista preferido da Rainha
Victoria, pela primeira vez em Agosto de 1886. Irá comparar The Lady Vanishes com um filme do mesmo
ano do realizador alemão Veit Harlan, Verwehte
Spuren (The Footprints Blown Away),
uma reescrita da lenda urbana do desaparecimento misterioso de uma senhora
durante a Exposição Mundial de 1889 em Paris, ao que parece baseada numa
história verdadeira, com a qual o filme de Hitchcock também está relacionado[15].
Beckman interrogar-se-á sobre o significado político do desaparecimento e como
o desaparecimento de mulheres poderá estar ligado ao apagamento do “outro” no
momento histórico que antecede a Segunda Grande Guerra.
Os romances e filmes de
espionagem deste período da História europeia entre as duas Grandes Guerras
adicionam uma nova figura às já tradicionais de crime contra o indivíduo e a
propriedade, o crime contra Estados soberanos[16].
Em The 39 Steps, o protagonista faz a
defesa de um mundo melhor no discurso improvisado durante um comício político
em que se vê envolvido durante a fuga, e no qual faz equivaler um mundo melhor
a um mundo sem conspirações:
I ask your candidate and all those
who love their fellow men to make this world a happier place to live in. A
world where no nation plots against nation, where no neighbor plots against
neighbor, where there is no persecution or hunting down, where everybody gets a
square deal and a sporting chance, and where people try to help and not to
hinder. A world from which suspicion and cruelty and fear have been forever
banished.
[1]
Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit.,
p. 432, e MILLER, Toby, “39 Steps to ‘The Borders of the Possible’: Alfred
Hitchcock, Amateur Observer and the New Cultural History”, in: Alfred Hitchcock. Centenary Essays, ed.
Richard Allen e S. Ishii-Gonzalès, London :
British Film Institute, 1999, p. 321 ss.
[2] Significativamente a lista de
alcunhas de membros dos serviços secretos britânicos da época denota essa “joie
de vivre”, como refere MILLER, Toby
(1999, p. 323).
[3]
Cf. id. ibid., p. 321.
[4]
Cf. SULLIVAN, Jack, op. cit., p. 52.
[5]
Cf. id. ibid.
[6]
Cf. MILLER, Toby/KING, Noel, op. cit.,
p. 444: “The train in both novel and film is a paradoxical object, a source of
both prison and liberty, incarceration and flight.”
[7] Cf. p. 3 do presente texto.
[8]
Cf. MCGILLIGAN, Patrick, op. cit., p.
173.
[9] Boris fala no telefone interno do
hotel e pede aos empregados que levem mais uma garrafa de champanhe ao quarto
de Miss Henderson (Iris), que festeja com as amigas a sua despedida de
solteira: “Bandrika may have a dictator but tonight we’re painting it red.”
[10] Este apagamento da figura feminina acaba
por ter o efeito contrário, e o filme é dominado pela presença/ausência
obsessiva e fantasmática de Rebecca, que nunca chegamos a ver.
[11] Vd. FISCHER, Lucy, “The Lady Vanishes: Women,
Magic, and the Movies”, in: Film Quaterly
Vol. 33, No. 1 (Autumn 1979), p. 30-40.
[12] Vd. id. ibid., p. 30.
[13] Lucy
Fischer resume assim o seu ensaio: “In summary, then, the rhetoric of magic –
in its theatrical and cinematic varieties – constitutes a complex drama of male-female relations. In the
guise of the magician figure, the male enacts a series of symbolic rituals in
which he expresses numerous often-contradictory attitudes toward woman: his
desire to exert power over her, to employ her as decorative object, to cast her
as a sexual fantasy, to exorcize her imagined powers of death, and to
appropriate her real powers of procreation.”, cf. op. cit., p. 37.
[14]Vd.
BECKMAN, Karen, “Violent Vanishings:
Hitchcock, Harlan, and the Disappearing Woman”, in: Camera obscura, September 13, 1996, p. 77-103.
[15] Vd. nota 27 do presente texto.
[16] Vd.
MANDEL, Ernest, Delightful Murder: A
Social History of the Crime Story. London :
Pluto, 1984.
Ana Maria Delgado
(Universidade de Leipzig, Alemanha /Instituto Camões /CLEPUL)
In: Letras Com Vida 5, 2012
Texto concluído a 8 de Julho de 2012 em Leipzig, em resposta a um desafio da revista Letras Com Vida para o dossiê sobre o tema "Conspiração".
Ler o texto completo aqui
Imagens:
Para ver o trailer de The Lady Vanishes: aqui
Para ver o filme: aqui
Georges Méliès, Escamotage d'une dame chez Robert Houdin 1896: aqui